sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

Castanha, o maior desmatador da Amazônia

Detido pela Polícia Federal, empresário fez fortuna desmatando e vendendo ilegalmente terras por até 20 milhões de reais. Em sua cidade no Pará, ele despertava suspeitas, mas lei do silêncio imperava.


Em sua cidade, a paraense Novo Progresso, diz-se que Ezequiel Antônio Castanha mandava mais do que o prefeito. Empresário da região incrustada na Amazônia, ele era dono de supermercado, concessionária de automóveis, hotel e empresas de outros ramos. E, apesar de despertar suspeitas, o silêncio sobre seus negócios ilícitos imperava entre moradores.

Castanha, considerado o maior desmatador da Amazônia, foi preso no sábado (21/02) após uma operação da Polícia Federal e do Ibama na cidade de Itaituba, onde estava a negócios. A prisão do grileiro desarticulou a maior organização criminosa da região, que chegou a vender lotes de terra ilegalmente por até 20 milhões de reais.

“Nessa região, alguns cidadãos como ele, que possuem várias empresas, não são pessoas acima de qualquer suspeita”, diz Everaldo Eguchi, chefe da delegacia de repreensão a crimes contra o meio ambiente da Polícia Federal, em Belém. “Mesmo assim, os moradores não comentavam nada. Praticamente ele era o dono da cidade.”

Ele e suas empresas – muitas delas de fachada, segundo a polícia – são as principais fontes de emprego da região. Economicamente, Castanha dominava Novo Progresso, cidade de cerca de 25 mil habitantes. Por isso, parte da população preferia não denunciá-lo.

“A lei do silêncio imperava. Ele não era acima de qualquer suspeita. Quando ocorre esse tipo de crime, todos da região sabem quem está por trás. É um crime lucrativo que tem um retorno rápido para a pessoa. Ele investia em fazendas esse dinheiro obtido de forma irregular”, afirmou uma fonte do Ibama.

Empregados em condições de escravidão

Castanha e sua quadrilha são considerados responsáveis por cerca de 20% de todo o desmatamento registrado às margens da BR-163 (rodovia que liga Santarém a Cuiabá), entre os municípios paraenses de Novo Progresso, Itaituba e Altamira. A região é onde o Ibama vem detectando os maiores focos de desmatamento ilegal na Amazônia. O prejuízo ambiental seria de pelo menos 540 milhões de reais.

Só no ano passado, a quadrilha teria invadido florestas, reservas indígenas, assentamentos e desmatado uma área equivalente a 15 mil campos de futebol. Pelo fato de os grileiros estarem na região há mais de dez anos, é possível que a área devastada seja muito maior. O grupo, segundo as investigações, invadia terras públicas, desmatava e incendiava as áreas para formação de pastos, e depois vendia as terras como fazenda.

Na região, a falta de organização e fiscalização dos órgãos públicos facilita a vida de quadrilhas como a de Castanha. Na Amazônia, a maioria das terras não tem registro em órgão público, e não há procedimento para legalização de um terreno.

Pelo menos 15,5 mil hectares teriam sido desmatados pela quadrilha. Todas as áreas invadidas ficarão bloqueadas e não serão objeto de regularização fundiária. O esquema desmontado pela Polícia Federal envolvia intermediários, que faziam a negociação das terras invadidas junto a pecuaristas da região amazônica, além de Sul e Sudeste do país.

“Pelo menos desde 2006, ele tinha essa conduta. Ele aliciava trabalhadores com condições análogas à escravidão e os colocava acampados nas áreas escolhidas. O objetivo era ‘abrir' a floresta o mais rápido possível”, afirma Daniel Azeredo, procurador da República, em entrevista à DW. “Dois ou três anos depois, com a área já pronta, ele usava os corretores para comercializarem as áreas.”

Pena de 46 anos de prisão
O esquema desviou ao menos 100 milhões de reais em sonegação de impostos e lavagem de dinheiro. Só de multas, o núcleo familiar de Castanha deve quase 50 milhões de reais ao Ibama, sem contar os autos de infração em nome dos demais membros da quadrilha.

Castanha foi preso seis meses depois do fim da Operação Castanheira, quando outras seis pessoas foram detidas. Integrante da quadrilha, Edivaldo Dalla Riva, conhecido como “Paraguaio”, também está na cadeia. Já Giovani Marcelino Pascoal, o “Giovani do Hotel Miranda”, que também teve a prisão decretada, segue foragido.

Em declaração à TV Globo, o advogado de Castanha, Alberto Vila Cabano, disse que o empresário está sendo vítima de acusações infundadas e que vai provar a inocência no decorrer do processo.

O "rei do desmatamento" será julgado pela Justiça Federal e poderá receber pena de mais de 46 anos de prisão pelos crimes dos quais é acusado, como devastação ilegal de mata, formação de quadrilha, lavagem de dinheiro e uso de documentos falsos.

Fonte: DW

Brasil não é país para os sem terra em tempos de Dilma

O Brasil se mantém como um dos países do mundo com maior concentração de terras e cerca de 200 mil camponeses continuam sem ter uma área para cultivar, em um problema que o primeiro governo da presidente Dilma Rousseff fez muito pouco para aliviar.
Fotografia: Douglas Mansur

Por Fabíola Ortiz*

A Comissão Pastoral da Terra (CPT) realizou um balanço dos fatos ocorridos no período 2011-2014, que mostra que nesse quadriênio aconteceram os piores indicadores em matéria de reforma agrária dos últimos 20 anos, disse à IPS Isolete Wichinieski, uma de suas coordenadoras. “Historicamente, existe alta concentração de terras no Brasil”, afirmou, mas o preocupante é que, durante o primeiro mandato de Dilma, “a terra se concentrou ainda mais”.

“Houve uma redução dos números de novos assentamentos rurais ou de titulação de territórios indígenas e de quilombos (comunidades de descendentes de escravos africanos), sendo que, por outro lado, aumentou o investimento no agronegócio”, assegurou Wichnieski.

Os movimentos sociais alimentavam a esperança de que Dilma, do esquerdista Partido dos Trabalhadores, como seu antecessor, Luis Inácio Lula da Silva (2003-2011), tomasse a democratização da terra como bandeira. Mas a política econômica de seu governo se voltou para os incentivos à agroindústria, à mineração e a grandes projetos de infraestrutura.

Segundo o documento da CPT, no primeiro mandato de Dilma foram assentadas 103.746 famílias, o que resulta um dado enganoso, porque 73% delas correspondem a processos que já estavam em andamento antes e haviam sido quantificadas em anos anteriores. Se forem computadas apenas as novas famílias assentadas em novas áreas, o número cai para 28 mil. Em particular, durante 2014, o governo reconhece ter regularizado apenas 6.289 famílias, um número considerado insignificante pela CPT.

A partir de 1995 foi dado um renovado impulso à reforma agrária, com um Ministério especial vinculado à Presidência e outros instrumentos legais, em grande parte forjados por pressão em todo o país do Movimento de Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Como resultado, no mandato de Fernando Henrique Cardoso (1995-2003) foram assentadas 540.704 famílias, número que subiu para 614.088 nos dois mandatos de Lula, segundo o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), que afirma que neste século foram criados 9.128 assentamentos rurais.

Para que a reforma agrária seja efetiva, argumenta a CPT, é preciso criar novos assentamentos e reduzir a concentração da propriedade rural nesse país de 202 milhões de pessoas. Mas não se acredita que Dilma avançará nessa direção, admitiu Wichinieski.

A questão da reforma agrária não fez parte da campanha eleitoral que levou a presidente à reeleição em outubro e a nova composição do governo inclui nomes da bancada ruralista do Congresso, como são definidos os parlamentares vinculados ao poderoso setor do agronegócio. A ministra da Agricultura é a senadora e presidente da Confederação Nacional da Agricultura, Kátia Abreu. Em uma entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, no dia 5 deste mês, surpreendeu ao assegurar que já não há latifúndios no Brasil.

Kátia Abreu tem visões retrógradas sobre a agricultura, nega a existência do trabalho forçado no campo, não se preocupa pela preservação do ambiente e argumenta a favor do uso intensivo de agroquímicos na produção de alimentos”, criticou Wichinieski.

O conflito pela terra se intensifica, de acordo com a CPT, ao vincular-se com a expansão da pecuária e das monoculturas, como soja, cana-de-açúcar, milho e algodão, e onde há um alto componente especulativo no manejo dos grandes latifúndios, com fortes ligações com os políticos.

Esse parece ser o caso da fazenda Agropecuária Santa Mônica, de mais de 20 mil hectares, a 150 quilômetros de Brasília, no Estado de Goiás e ocupada parcialmente pelo MST. A propriedade, qualificada pelas autoridades como produtiva, pertence ao senador Eunício Oliveira, o político com maior número de bens registrados no Brasil, entre os que aspiraram governar algum Estado nas últimas eleições.

No Senado, Oliveira lidera o PMDB, principal aliado legislativo de Dilma. Também foi ministro das Comunicações de Lula no biênio 2004-2005 e no ano passado perdeu as eleições para governador do Estado do Ceará.

Valdir Misnerovicz, um dos dirigentes do MST, afirmou à IPS que essa fazenda é improdutiva e sua finalidade é a especulação. Localizada estrategicamente entre os municípios de Alexânia, Abadiânia e Corumbá, a Santa Mônica representa a maior ocupação de terra promovida pelo MST nos últimos 15 anos. Tudo começou em 31 de agosto de 2014, quando três mil famílias rumaram a pé e em 1.800 veículos para a fazenda e a ocuparam por várias horas.

Desde então, mais de dois mil homens, mulheres, crianças e idosos controlam 400 hectares da propriedade e resistem em um precário acampamento, decididos a conseguir um pedaço de terra para cultivar. Essa é uma da estratégias do MST, ressaltou Misnerovicz. “Ocupamos grandes áreas improdutivas. No acampamento produzimos alimentos diversificados como hortaliças, mandioca, milho arroz, feijão e abóbora. Todas as famílias plantam alimentos saudáveis em hortas comunitárias agroecológicas e sem químicos”, acrescentou.

As barracas do acampamento Dom Tomás Balduíno se amontoam na margem do rio que atravessa a propriedade, que engloba 90 parcelas de terra que foram adquiridas ao longo de duas décadas pelo senador. “No dia em que entramos, tentaram nos impedir, mas éramos milhares de pessoas. Nunca vamos armados. Nossa força é o número de camponeses que nos acompanham”, ressaltou Misnerovicz.

Em novembro, um tribunal decidiu a favor do direito de recuperação por Oliveira da propriedade, que até agora está em suspenso. O dirigente confia que, apesar do risco de despejo dos camponeses, se consiga que a fazenda Santa Mônica seja expropriada para fins de reforma agrária. Misnerovicz assegurou que o próprio governo incentiva os camponeses ocupantes a prosseguirem com as negociações.

“Ali seria possível, ao final de um ano, realizar o maior assentamento dos últimos tempos no Brasil. Em janeiro estivemos com a presidente Dilma, que manifestou o compromisso de um plano de metas de assentamento para famílias acampadas em todo o país”, contou Misnerovicz. O Incra evita se pronunciar sobre o caso específico, mas recordou que, por lei, “todos os bens ocupados estão impedidos de serem inspecionados para sua avaliação com vistas a destinação à reforma agrária”.

O administrador da Santa Mônica, Ricardo Augusto, assegurou à IPS que a área invadida é uma propriedade agrícola onde se cultiva soja, milho e feijão. “A compra da propriedade foi registrada em cartório. O MST falta com a verdade. Defendemos uma solução negociada e pacífica. Terras produtivas e invadidas não podem ser expropriadas, e não há interesse em vender a propriedade”, destacou.

Porém, João Pedro, dono de uma parcela em um município vizinho à Santa Mônica, vê de modo diferente a situação. Durante um ato em favor da ocupação, no dia 21 deste mês, nas imediações do acampamento, o camponês afirmou que as famílias acampadas buscam cumprir o que dizem as leis brasileiras: “a terra tem uma função social, e é só isso que queremos, que seja aplicada a Constituição”.

Fonte: IUH - Publicado originalmente pelo portal Envolverde/IPS

O STF golpeará a Constituição Federal e os Povos Indígenas em benefício do ruralismo no Brasil?

Cleber Buzatto*

Recentes decisões da 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) restringem, de forma violenta e radical, o alcance do conceito de terra tradicionalmente ocupada pelos povos indígenas consignado no Artigo 231 da Constituição brasileira. Ao decidir o caso da Petição 3388, o Pleno do STF designou a data da promulgação da Constituição como referência para caracterizar a referida tradicionalidade, destacando, porém, que o fato dos indígenas não estarem na posse da respectiva terra devido à ocorrência de “renitente esbulho” por parte de não indígenas seria a garantia de que o direito desses povos sobre suas terras estavam mantidos.

Ao dar provimento ao Agravo Regimental no Recurso Extraordinário 803.462, relativo à Terra Indígena Limão Verde, do povo Terena, MS, em dezembro de 2014, o ministro Teori Zavaski, seguindo o ministro Gilmar Mendes - intelectual orgânico do ruralismo dentro do Supremo e redator dos acórdãos de outros dois agravos, também da 2ª Turma, que anularam portarias declaratórias de terras dos povos Guarani-Kaiowá, MS, e Canela-Apãniekra, MA -, caracterizou, a nosso ver de maneira reducionista e antiindígena, o conceito de “renitente esbulho”.

Para ele, “Renitente esbulho não pode ser confundido com ocupação passada ou com desocupação forçada, ocorrida no passado. Há de haver, para configuração de esbulho, situação de efetivo conflito possessório que, mesmo iniciado no passado, ainda persista até o marco demarcatório temporal atual (vale dizer, a data da promulgação da Constituição de 1988), conflito que se materializa por circunstâncias de fato ou, pelo menos, por uma controvérsia possessória judicializada”. Zavaski fez uso dessa caracterização para negar o direito dos Terena à sua terra tradicional. Leia aqui.

Na prática, tal interpretação do Artigo 231 da Constituição reduz o direito dos povos às suas terras tradicionais a duas situações hipotéticas absurdamente limitadas. Ou seja, para terem o direito às suas terras, os indígenas teriam que estar fisicamente sobre elas em 5 de outubro de 1988 ou, na hipótese de não estarem fisicamente sobre as terras, deveriam estar disputando judicialmente ou em “efetivo conflito possessório” com os fazendeiros na mesma data.

Diante dessa decisão, cumpre-nos perguntar: era a intenção do Constituinte, ao grafar o Artigo 231 na Constituição brasileira, reconhecer, aos povos indígenas, o direito restrito apenas àquelas terras que eles já detinham a posse física na data da promulgação da Constituição ou que estivessem disputando essa posse judicialmente ou por meio do conflito deflagrado, ou seja, em estado de guerra, com os fazendeiros invasores? É óbvio que não.

Estamos diante de uma situação profundamente sensível. Uma eventual confirmação dessa decisão pelo Pleno do STF seria uma sinalização evidente, para os povos indígenas, de que a guerra é um mecanismo, mais do que legítimo, necessário para que mantenham o direito sobre suas terras tradicionais. É esse mesmo o sinal que o STF está disposto a dar para os povos indígenas do Brasil? A mesma decisão seria, concomitantemente, uma sinalização evidente, para os históricos e novos invasores de terras indígenas, que o mecanismo da “desocupação forçada” dos povos é, mais do que legítimo, conveniente e vantajoso para os seus intentos. É esse mesmo o sinal que o STF está disposto a dar aos inimigos dos povos indígenas do Brasil?

Rogamos que os ministros do Supremo usem o bom senso e o senso de justiça como alicerces de suas decisões e revoguem a decisão em questão propalada pela 2ª. Turma. A Suprema Corte do Poder Judiciário brasileiro não pode ser transformada num lavatório das mãos daqueles que as sujaram e sujam com o sangue dos povos e lideranças indígenas de nosso país.

*É secretário executivo do Conselho Indigenista Missionário (Cimi)

Empate no Jari

Por Rogério Almeida*

Na espera eterna pela regularização das terras comunitárias, extrativistas do Pará reeditam prática de resistência de Chico Mendes para impedir o avanço do Grupo Jari na floresta que habitam há mais de cem anos

Amazônia brasileira, parte oriental, divisa entre Pará e Amapá. É tempo de chuva. Enquanto a maioria das famílias organizava suas ceias e confraternizações de Natal, extrativistas de Repartimento dos Pilões – comunidade do distrito de Monte Dourado, no município de Almeirim – juntaram-se para impedir que cerca de 200 trabalhadores de uma empresa contratada pelo Grupo Jari continuassem a extrair madeira de lei de seu território secular.

Em manifesto assinado pela Associação dos Micros e Mini Produtores Rurais e Extrativistas da Comunidade de Repartimento dos Pilões e Vila Nova (Asmipps) e pela Rede Intercomunitária Almeirim em Ação (RICA), os extrativistas argumentam que a área de floresta primária em que coletam a castanha do Pará – e onde moram há cerca de cem anos – tem 61 mil hectares. O que significa que a extração de madeira de lei estaria dentro do território da comunidade, que reivindica do Instituto de Terras do Pará (Iterpa) a concessão do título coletivo sobre a área.


A comunidade de Repartimento de Pilões no Extremo Norte do Pará / Foto: Rogério Almeida

Mas a Secretaria de Meio Ambiente do Estado do Pará (Sema) autorizou as atividades da Jari ao expedir o Plano Operacional Anual (POA) apesar de ter se comprometido em acordo firmado em maio de 2013 – e lavrado em ata – a não liberar a área até a resolução sobre a questão fundiária. Outro ponto destacado pelos extrativistas é que a castanheira, proeminente no local, é protegida por lei, e não pode ser explorada economicamente.

Ainda assim, a pedido da empresa, a Sema aprovou a Unidade de Produção Anual (UPA) de nº 09 nas proximidades do território requerido pela comunidade. O manifesto dos extrativistas denuncia indícios de erros técnicos sobre a delimitação da área, ou sobreposição, que teriam que ser investigados antes de qualquer decisão. Mas o secretário adjunto de Gestão e Regularidade Ambiental da Sema, Hildemberg Cruz, nega irregularidades. Segundo ele, o pedido da empresa era de 15 mil hectares e a secretaria autorizou uma área de 9 mil hectares, justamente para excluir áreas sobrepostas com Áreas de Manejo Florestal (AMF), áreas de comunidades ou fazendas com decisão judicial favorável ao Estado.

No final de 2014, quando já tramitava na Justiça um pedido de interdito proibitório movido pela associação dos extrativistas – com parecer favorável na Vara Agrária de Santarém – a Sema liberou novas licenças de exploração para a Jari, que os associados acusam de avançar sobre os castanhais e outras espécies da área de Repartimento. Segundo eles, a empresa se recusou a conversar com os moradores, alegando que a madeira seria retirada de qualquer maneira. “Temos tudo gravado”, conta um deles. “Desde a criação da associação a empresa se afastou. Conversam apenas com uns dois moradores que apoiam o projeto”, diz outro (os nomes foram preservados para evitar represálias).

Projeto de extração de madeira de lei da Jari na área de coleta de castanha da comunidade / Foto: Rogerio Almeida

Sem diálogo com a empresa, os extrativistas decidiram partir para o “empate”, uma estratégia de resistência pacífica em que famílias inteira formam um cordão humano, com o objetivo de convencer os peões a desligar as motosserras e manter a floresta em pé. O empate nasceu no fim dos anos de 1970, no estado do Acre, entre os extrativistas então liderados pelo seringueiro Chico Mendes, assassinado em 1988, às vésperas de outro Natal.

O restabelecimento da democracia não interrompeu o ciclo de morte e violência do Estado contra as comunidades amazônicas, inaugurado com a política de integração econômica imposta pelo regime militar, que concentrou terras nas mãos de empresas nacionais e multinacionais. Foi na ditadura, em 1967, que o multimilionário estadunidense Daniel Ludwig chegou à região para instalar o Projeto Jari, um complexo agroindustrial que desmatou mais de 200 mil hectares de floresta densa. A Gmelina e o Pinus, árvores destinadas à produção de celulose, passaram a ocupar o lugar de castanheiras e maçarandubas; 20 mil hectares de arroz e 80 mil hectares de banana e dendê foram plantados, além de pastos para criar 100 mil cabeças de gado e 40 mil de búfalos, como conta o jornalista Lúcio Flavio Pinto no livro Jari: Toda a Verdade Sobre o Projeto de Ludwig (Clique para ler a história completa da disputa pela terra na região do Projeto Jari). Desde 1999, o Grupo Orsa controla o Grupo Jari – composto pela Jari Celulose, Jari Florestal, Jari Minerais, Ouro Verde da Amazônia, Fundação Jari e Marquesa.

O papel da Fundação Jari seria fazer a mediação com a população impactada pelo empreendimento, sob o guarda-chuva da estratégia de responsabilidade social. Como se vê no caso dos Pilões, isso está bem longe de se realizar na prática. O Estado também não cumpre sua função de regularizar as terras públicas conforme a determinação constitucional. Aos extrativistas, sobrou a coragem para resistir.

Natal na floresta
Quando os quatro ônibus chegaram trazendo os peões na manhã do dia 24 de dezembro, deram de cara com uma dúzia de pessoas da comunidade que, desde a véspera, estavam à sua espera. Os acampados os informaram da situação. Não houve conflito. Os trabalhadores compartilharam o rancho com o grupo. Dias depois voltaram para apanhar os equipamentos. Ficaram felizes em não trabalhar no dia de Natal, contam os acampados. “Existe um acordo: nós não entramos nos locais deles, e eles não entram no nosso. Quando soubemos do estrago que estavam fazendo, a gente se uniu e ocupou aqui. Aí a gente falou, nada disso compadre, aqui é nosso. Nós temos garantia que a terra é nossa. Aqui tá embargado pela justiça”, diz um deles.

Visitei o local no dia 13 de janeiro a convite do Instituto Internacional de Educação do Brasil (IEB), quando já havia perto de 60 pessoas no barraco instalado no meio da floresta, onde a Jari Florestal explorava a madeira de lei. Homens e mulheres, jovens, idosos e crianças dividiam a lona preta na manhã quente de sol, de estrutura forte o bastante para sustentar as muitas redes armadas. Um grupo de acampados toma conta da cancela que dá acesso ao território violado pela empresa. Qualquer um que chegue é filmado e fotografado.

O acampamento do Empate, com a família dos extrativistas / Foto: Rogério Almeida

O sustento ganha o reforço da caça e da pesca de surubim e trairão em igarapés com nomes como Caracu, Inferno e Pacanari. “É a floresta que protege os nossos igarapés”, explica um morador. “A nossa maior dificuldade aqui foi a água. Depois que a gente se situou direito no trecho, tudo funcionou”, conta. Os moradores se cotizaram e contaram com a solidariedade de parceiros como o IEB para se instalar. Hoje a barraca tem luz a motor, TV, DVD, e antena parabólica. Além da água dos igarapés, existem galões de água mineral.

Para chegar ao acampamento, foram umas duas horas de viagem de carro em estrada de terra batida a partir da sede de Repartimento. Em boa parte do trajeto, o eucalipto domina a paisagem. Percebe-se claramente a separação entre a floresta nativa e a monocultura nas proximidades do local. Vimos um pátio com a madeira puxada de dentro da mata; montes de troncos de maçaranduba, angelim vermelho, piquiá, e outras espécies nobres, identificadas por códigos conforme a sua procedência. Nos locais onde algumas árvores foram retiradas os extrativistas registraram espécies tombadas com menos de 50 centímetros de raio (árvores jovens), violando a legislação. Este é um dos motivos que os fazem questionar o modelo de manejo sustentável aplicado pelo Grupo Jari.

Certificação Florestal em Xeque
Em seu site, a Jari Florestal afirma ser referência mundial no manejo florestal sustentável nos trópicos, festejando a conversão de 545.000 hectares de floresta nativa em área para exploração de madeira de lei. Trata-se da maior extensão territorial do mundo para exploração de madeira tropical certificada. O mercado europeu é o principal destino de 25 espécies nativas da Amazônia processadas industrialmente.
O selo verde, como é conhecida a sigla FSC – Forest Stewardship Council – (Conselho de Manejo Florestal em português), é a certificação ambiental mais conhecida do mundo, com presença em 75 países. Vinte princípios devem ser obedecidos para que a empresa receba a grife ambiental, que teoricamente garante que a exploração dessa madeira – certificada – promove o desenvolvimento sustentável. O FSC Brasil nasceu em 2001. Até 2007 os negócios no setor de madeira certificada atingiram o patamar de R$ 3 bilhões, informa o site da WWF.

As entidades extrativistas, porém, questionam a renovação do selo verde da Jari Florestal. Em 5 de setembro de 2014, a Assimpps já havia encaminhado Carta da ASMIPPS ao conselho do FSC Brasil, questionando o relatório produzido pela Sysflor, empresa com sede em Curitiba, contratada pela Jari para desenvolver a pesquisa que subsidiou o relatório para renovação do FSC da empresa. A certificação vale por cinco anos e foi renovada em julho de 2014.

Na carta, a associação acusa o relatório da consultoria de mentir ao afirmar que entrevistou moradores da comunidade, e afirma ser equivocada a informação de que não existe comunidade tradicional na área de exploração de madeira. Ressalta que o documento omite as situações de conflitos entre moradores e a Jari Florestal, e questiona os serviços da Fundação Jari à comunidade citados no relatório: segundo os moradores nunca existiu um único projeto social em Repartimento. A Associação dos Moradores das Comunidades do Rio Parú e Amazonas também declararam em Carta da Associação do rio Paru e Amazonas enviada ao FSC que nunca foram visitados pela Sysflor.

Manuel Amaral, representante do IEB no Conselho da FSC Brasil, afirma que existem evidências de falhas no comportamento da Sysflor. “O caso é muito sério e precisa ser investigado. As associações de moradores já manifestaram insatisfação. E por conta disso o MPE contestou o relatório de recertificação. O Greenpeace também repercutiu o caso como um dos problemas delicados da certificação no mundo. Tudo isso deverá ser respondido pelo FSC Internacional, que tem competência para se posicionar”, afirma o engenheiro.

Amaral informa que até então não havia registros de suspeitas sobre a certificação socioambiental impactando negativamente a relação empresas-comunidades. “Pelo contrário, conheço muitos casos de que tenha servido para mediar conflitos e acomodar relações promissoras”, diz.

No dia 29 de novembro de 2013, o Ministério Público do Estado do Pará, comarca de Santarém, pediu a suspensão de todos os Planos de Manejo da Orsa Florestal, Jari Celulose e a Papel e Embalagens S.A, nos limites das unidades de conservação integral ESEC Jari, Rio Paru, e Amazonas.

O documento toma como base a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que trata dos povos tradicionais e de sua participação na administração e conservação dos recursos da natureza; e o artigo 186 da Constituição Federal, que estabelece a função social da terra e o uso racional dos recursos naturais. A promotora de Justiça de Santarém, Ione Missae da Silva Nakamura, recomendou à Sema a suspensão de Planos Operacionais Anuais, Cadastro Ambiental Rural (CAR) e a Autorização de Exploração Florestal em áreas de floresta nativa.

Na bacia do “Rio do Senhor”
Em tupi Jari significa “Rio do senhor”. As águas em tom escuro nascem na Serra do Tumucumaque, na fronteira com o Suriname, e cortam a vida de pelo menos cem mil pessoas nos estados do Pará e Amapá até desaguar em frente à Ilha de Grande de Gurupá, no estuário do Amazonas. O parque nacional Montanhas do Tumucumaque é o maior do país, com área de 38.464 km², pouco menor que a da Suíça. O complexo ambiental abrange seis unidades de conservação, criadas na década de 1990, sendo três estaduais (a Floresta Tropical do Parú, a Reserva do Desenvolvimento Sustentável Iratapuru e Reserva Biológica Maicuru) e três federais: Parque Nacional do Tumucumaque, Estação Ecológica Jari e a Reserva Extrativista de Cajari. Rio Pau D´Este e Waiapi são as terras indígenas. Na fauna, considerada rara, são encontradas entre as outras espécies: Gavião-de-penacho, Jacu, Choquinha, Mãe-de-Taoca-de-Garganta-Vermelha, Pássaro-Boi, Maú, Araponga-Branca, Galo-da-Serra e a Gralha.

O regime hidrográfico da bacia é bem definido. O período de maior cheia ocorre entre os meses de março a julho, enquanto a quadra mais seca compreende os meses entre outubro a dezembro. Em tempos de crise hídrica a água abunda nesta latitude. Conforme a Empresa de Pesquisa Energética (EPE) a disponibilidade hídrica da bacia do rio Jari é mais de 10 vezes superior à disponibilidade hídrica nacional. A baixa demografia regional colabora para a construção do indicador.


As muitas corredeiras e cachoeiras dificultam a navegação do largo rio. Numa delas foi erguida uma hidrelétrica, a de Santo Antônio que gera 373,4 MW de energia. Cinco vezes mais do que a necessidade do estado do Amapá. A obra inundou mais de cem mil metros de floresta e foi finalizada ano passado pelo Consórcio EDP, integrado pelo grupo paulista ECE Participações S.A. (90% das quotas) e a Jari Energética S.A. (10% das quotas). É neste perímetro, na localidade de Mulungu, que a Jari Celulose controla o porto fluvio-marítimo.

A cachoeira Santo Antônio, alterada pela usina, era considerada de grande beleza, fonte de lazer e água potável para a população nativa. Fica no município de Laranjal do Jari, no Amapá, uma cidade dormitório que cresce desordenadamente na área de influência do Grupo Jari e suas terceirizadas. Beiradão ou beira é como os moradores da região tratam o local. A moradia é precária, a maioria das casas são de madeira. O aspecto é de favela.

A travessia do rio Jari de catraia (lancha voadeira) custa um real. Menos de vinte minutos de viagem separam Laranjal do Jari de Monte Dourado, a company town do projeto Jari, localizada no município de Almeirim, Pará. Planejada para abrigar funcionários do Projeto Jari, a pacata vila chegou a ter perto de 16 mil operários no auge do projeto. Asfaltada, conta com serviços bancários públicos e privados, e pequeno comércio. As casas seguem padrões hierarquizados conforme a função do operário. Nos locais onde o distrito avança para dentro da floresta, chamados de “silvivilas”, a empresa controla a vida laboral e privada. Estabelece regras rígidas, em particular com relação ao consumo de álcool.

As terras comunitárias
Também no distrito de Monte Dourado, a comunidade de Repartimento de Pilões é completamente diferente da company town. Seu moradores são migrantes nordestinos, ênfase a maranhenses, que vivem do extrativismo da castanha, seringa, balata, açaí, cipós, pesca, caça, lavouras de cacau, feijão, milho, arroz e hortifrutigranjeiros. Os mais antigos possuem algum grau de parentesco, compadrio e proximidade, a exemplo do que ocorre com a família Araújo, onde o senhor Getúlio é tido como o pioneiro.

O território é coletivo, marcado por áreas de uso individual. Castanha, angelim vermelho, maçaranduba, cedro, andiroba, copaíba e piquiá são algumas das espécies que integram uma parcela de floresta nativa do lugar. onde circulam veados, pacas, tatus, antas. De acordo com os moradores, a área é a derradeira de floresta primária densa na geografia marcada pelo monocultivo do eucalipto do Projeto Jari.


A escola local atende a cerca de 20 alunos até a quarta série, os demais são obrigados a estudar fora, na comunidade de São Miguel, 60 quilômetros distante em estrada de chão batido. No verão enfrentam a poeira do inclemente trópico úmido. No inverno a lama. Não existe serviço de energia elétrica. As famílias com melhor poder aquisitivo garantem energia graças a um pequeno gerador movido a diesel ou gasolina. Na sede da comunidade árvores frutíferas circundam as casas, entre elas o cupuaçu, manga, açaí e carambola.

O abastecimento de água segue a mesma lógica da energia, construção de poço individual e bomba que ajuda a encher as caixas d’água. O igarapé tem reduzido a cada ano por conta do assoreamento produzido pela cultura homogênea do eucalipto e o intensivo uso de herbicida de acordo com as comunidades espalhadas pela região. Segundo a engenheira florestal do IEB, Wandréia Baitz, a monocultura de eucalipto provoca também o afugentamento de espécies e a redução da biodiversidade, da flora, fauna e microfauna, e, para alguns pesquisadores, déficit hídrico.

A população de Pilões não conhece saneamento básico, e o lixo é queimado individualmente em buracos. Uma igreja evangélica, outra católica e um campo de futebol compõem os espaços coletivos, algumas bodegas comercializam gêneros de primeira necessidade. O tempo corre lento, com vizinhos proseando nas portas das casas de madeira cobertas por telhas de amianto. O rádio continua sendo a principal fonte de informação; a TV é ligada somente no período da noite, nos horários de telejornais e novelas.

Visitamos outras comunidades nos ramais, como são chamadas as estradas vicinais na Amazônia, sob a fina chuva que caía sobre a floresta. O condutor da moto explicou que todo dia chove pelos menos umas três vezes. O clima é suave por causa da proximidade da floresta, e o solo escorregadio, cheio de poças de lama.

Água Azul – Ramal da Família Batista
Um igarapé corre no quintal de dona Francisca Batista. Galinhas ciscam no terreiro. O porco passeia, enquanto dois homens produzem farinha. Filhos, noras, genros e netos estão na casa. Umas oito pessoas ao todo. No dia anterior, dona Francisca havia prometido uma galinha caipira para o almoço. Mas, serviu carne de caça cozida num fogão à lenha feito de barro. Por mais pobre que seja a família da roça, sempre há algo a oferecer. Ela trabalha numa área de 100 hectares. É a média da região.

Dona Francisca e familia na comunidade de Água Azul/ Foto: Rogério Almeida

Francisca é evangélica, como a maior parte da família, dona de traços indígenas e estatura pequena. Está no segundo casamento – o primeiro foi aos 18 anos de idade, quando ainda morava na comunidade de Pimental, no mesmo perímetro. A mãe de cinco filhos já trabalhou em terceirizada do projeto Jari. É uma espécie de líder do ramal que abriga as 13 casas dos Batistas. Ela e o atual companheiro, Jacinto, sobrevivente de uma picada de cobra comboia, relatam ter sofrido inúmeras ações de coerção da empresa.

O casal chegou a ser expulso dali e reassentado na comunidade de São Miguel. Ameaçados por um morador, os dois decidiram voltar ao ramal de origem, na localidade de Água Azul, uma espécie de loteamento popular. Estão lá desde 2005.

A família conta que sob as ordens de um senhor que atendia pelo nome Almeida, ligado à Jari, teve a casa derrubada em cinco ocasiões. Em junho de 2013, pessoas ligadas ao Projeto Jari entraram à noite com trator e derrubaram 36 hectares de roça dos Batistas para plantar 15 mil pés de mogno, detalham. Além de Almeida, a família cita os nomes dos senhores Gilberto e Nilson, do setor de segurança da empresa, como seus perseguidores. E explica que só conseguiu fazer boletim de ocorrência com a intervenção do Ministério Público do Estado (MPE). “Quando a gente chegava para fazer ocorrência contra a empresa, o delegado se negava”, contam. Dados divulgados pela assessoria jurídica da Jari Florestal revelam que 95 ações de reintegração de posse em favor do empreendimento foram realizadas na última década.

Na manhã do dia 14 de janeiro de 2015 um ônibus que faz linha para o Loteamento Sarney, em Laranjal do Jari, adentrou a área em litígio da comunidade. Carregava 40 operários da prestadora de serviço NDR, que realiza manejo de madeira de lei. Jacinto interveio, alegou que área estava na justiça. Nela o agricultor cultivava mandioca, melancia, feijão e milho. O coordenador da equipe acatou o pedido do camponês.

Marcos Batista da Silva, filho de Francisca, mora há 10 anos no lugar. Ele e a mãe receberam o título de posse do Iterpa. Mas teme perder a terra. “A empresa chega aqui com liminar. A gente não sabe de nada. Já tive a minha casa derrubada três vezes, e o meu roçado destruído umas duas. Saí para trabalhar fora, cheguei tava tudo no chão. Deixei um monte de maniva. Eles chegaram de caminhão e levaram tudo. Na outra vez foi o açaí. A gente vive ameaçado e com medo. A gente não trabalha sossegado. Isso ocorre desde 2007 pra cá,” relata Marcos.

Ele conta que faz poucos dias o pessoal da segurança o visitou: “O Gilberto veio aqui. Ofereceu emprego, terra em outro lugar. Falei a ele que não trairia a minha família. Sou evangélico”. Apesar do receio em ser expulso, mantém um viveiro de mudas de açaí. Sonha cultivar um açaizal em paz. “A gente é coloneiro. Tem de fazer várias coisas pra viver”, explica o extrativista.

A família paráucha

Carlos Gotardo, filho do gaúcho Eugênio, vive na comunidade de Pilões. A família morava no município de Medicilândia, no sudoeste do estado. Lá cultivava cacau. O pai, senhor Eugênio, avaliou que a cidade estava muito agitada. Ela fica perto de Altamira, onde está sendo erguida a hidrelétrica de Belo Monte. A especulação tomou conta do lugar. O patriarca resolveu mudar para Repartimento de mala e cuia. Os quatro filhos nasceram no Pará, dois homens e duas mulheres.

Conseguiu área para trabalhar em 2005, ano em que iniciou o pagamento do Imposto Territorial Rural (ITR). Desmatou no ano seguinte, e foi multado em cem mil reais por isso. A família recorreu da multa, e fez o replantio de cacau, que é nativo da região. Em 2007 tinha 25 mil pés de cacau plantados, cinco mil pés de banana, três mil pés de mamão Havaí. E cultivava pepinos, tomate e outros hortifrutigranjeiros.

Em 2010, no dia de 31 de novembro a família teve todo o trabalho destruído por força de liminar expedida em favor do grupo Jari pelo juiz da vara civil do estado. Cem homens armados de foices sepultaram em algumas horas a labuta de cinco anos. A ação era movida contra o pai de Carlos, mas, os peões devastaram também as plantações dele. A área ficou um capoeirão. O processo continua na justiça.

A empresa Jari Celulose acusa os moradores de ocupar uma área de cinco quilômetros. Segundo Carlos e outros moradores, a empresa usa como prova de direito ao território um título da fazenda Santo Antônio da Cachoeira, que é questionado na Justiça. “Minha família e os demais camponeses somos perseguidos de todo jeito: polícia, Adepará (Agência de Defesa Agropecuária do Pará), e por aí vai”.

O repórter enviou email à assessoria de imprensa da Jari, que não se manifestou sobre as acusações.

Grileiros x extrativistas

Investigações do jornalista Pinto, nos arquivos do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), sublinham que a Jari possuía, em 10 de outubro de 1977, uma área total de 1.006.261 hectares, dos quais 576.222,3 hectares no estado do Pará e 430.039,6 no Amapá; já o Grupo Jari assegura que a área oficial era de 1.632.121 hectares, porém menos de um terço teria título definitivo. Alguns de seus diretores e advogados chegaram a declarar que a empresa teria até mais de 3 milhões de hectares.

Aqui reside o principal nó da questão, não somente no caso do Projeto Jari, mas, em toda a região. O caos fundiário, nublado por grilagem de terra de toda ordem e sorte. 6.102 títulos de terra registrados nos cartórios estaduais do Pará possuem irregularidades. Somados, os papéis representam mais de 110 milhões de hectares, quase um Pará a mais, em áreas possivelmente griladas. Os dados resultam de três anos de pesquisa dos órgãos ligados à questão fundiária no estado, através da Comissão Permanente de Monitoramento, Estudo e Assessoramento das Questões Ligadas à Grilagem (Tribunal de Justiça, do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, Advocacia Geral da União, Ordem dos Advogados do Brasil, Federação dos Trabalhadores na Agricultura, Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos, Comissão Pastoral da Terra e a Federação da Agricultura do Estado do Pará). O documento foi apresentado em 30 de abril de 2009 no auditório do Ministério Público Federal (MPF).

Conforme o Ministério Público do Estado (MPE) existem 104 documentos fundiários que compõem a área que a empresa diz ter o domínio, cerca de 956 mil hectares. No entanto, parecer da Procuradoria Geral do Estado (PGE) de 2005\6, aponta que uma parte dessa área pretendida é terra pública. A PGE ingressou com ação judicial para reconhecer que a Fazenda Saracura, com aproximadamente 255 mil hectares é de domínio público do Estado, e não propriedade da Jari. A empresa recorreu da decisão do juiz da Vara Agrária, que reconheceu o domínio público da área da fazenda. Cabe ao Tribunal de Justiça do Estado (TJE) a confirmação ou não da sentença.

O Iterpa realiza estudos e georreferenciamento na área do Jari, e existe um grupo inter-instituicional (composto pelo Iterpa, Sema, MPE e Defensoria Pública com o objetivo de equacionar a situação fundiária A situação de conflito é acompanhada pela Ouvidoria Agrária Nacional.

Vitória no Empate
No dia 15 de janeiro de 2015, a Vara Agrária de Santarém proibiu a Jari Florestal de extrair madeira de lei do território da comunidade de Repartimento dos Pilões. A sentença em favor dos extrativistas da Comunidade de Repartimento dos Pilões foi assinada pelo Juiz André Luiz Filo-Creão G. da Fonseca, e publicada no dia 13 deste mês do processo de número 0000205-84.2015.8.14.00.

Pátio de estocagem da madeira retirada da área onde extrativistas realizaram o empate / Foto: Rogério Almeida
A medida foi tomada por temer um conflito entre as partes envolvidas. Assim a empresa Jari Florestal está impedida em explorar os recursos da comunidade. Agora resta decidir sobre o destino que será dado a madeira que já foi extraída. Nos dias seguintes o acampamento foi desfeito, mas, conforme a associação de moradores do lugar, um grupo fiscaliza o local em sistema de revezamento.

Na mesma semana, em Monte Dourado, no bairro do Matadouro, moradores enviaram a este repórter vídeos e fotos da ação de seguranças e policiais expulsando famílias de área ocupada. Por sua vez, por causa de salários atrasados, operários das empresas terceirizadas Leão Transportes e NDR realizaram paralisações.

No fim de janeiro, porém, o desembargador Noronha Tavares suspendeu liminar do Juiz André Luiz Filo-Creão G. da Fonseca. Noronha justificou a decisão alegando que a empresa tinha apresentado farta documentação que comprovaria a posse da terra, entre elas Certidão de Autenticidade nº 101, expedida pelo Instituto de Terras do Pará (ITERPA), em março de 2012.

Na sentença o desembargador avalia que Fonseca foi induzido ao erro, e que os documentos anexados ao processo são insuficientes. Ele defende que o Cadastro Ambiental Rural (CAR) dos extrativistas, datado de 2015, é recente. O cadastro foi criado no ano de 2012, e necessita de uma série de procedimentos até ser expedido.

O desembargador parece desconhecer que o ITERPA ainda não apresentou os resultados dos trabalhos iniciados em 2006. A peleja no Jari ganha mais um capítulo em sua vasta história de incertezas nas terras jamais regularizadas do Pará.

Fonte: A Pública

Grilagem e desmatamento contam a história do Jari

O avanço de particulares sobre terras públicas da Amazônia ameaça o território das comunidades tradicionais há mais de um século, sob os olhos cúmplices do Estado

O cearense José Júlio de Andrade é tido como o latifundiário pioneiro da região do Jari. Chegou à Amazônia no apogeu do ciclo da borracha, final do século XIX, e se apossou de uma extensão de terras maior que o território do Jari. Para subordinar a população local o coronel Andrade usava a prática do aviamento, ou seja, comprava borracha, balata ou a castanha em troca do fornecimento de insumos para as populações extrativistas. Como os preços sempre favoráveis ao comerciante, os coletores estavam sempre ao devendo ao dono do barracão, e eram obrigados a trabalhar de graça para ele. O expediente ainda hoje é usado na Amazônia.

Mas os extrativistas se revoltaram, e Andrade teve que fugir para o Rio de Janeiro. Além de comerciante, o grileiro de terras foi prefeito em Almeirim quando Magalhães Barata mandava na política do Pará, e Getúlio Vargas, no país.

Em 1948 um grupo de portugueses e um brasileiro passaram a dominar terras e o mercado deixado por Andrade. Para explorar produtos extrativistas e agrícolas da região, criaram três empresas: a Jari Indústria e Comércio e a Companhia Industrial do Amapá para a comercialização dos produtos, e a Companhia de Navegação Jari S\A, a partir de José Júlio. É deste grupo que o multimilionário Daniel Ludwig adquiriu parte das terras no final da década de 1960. O estadunidense chegou a controlar mais de 200 empresas espalhadas pelo planeta nos setores da finança, do transporte, da mineração e da agroindústria.

O Jari de Daniel Ludwig

Ludwig não foi o primeiro estadunidense a tentar subordinar a floresta Amazônia aos seus interesses. Em 1927 o também milionário Henry Ford fundou seu próprio reino – a Fordlândia – na cidade de Aveiro, às margens do rio Tapajós, oeste paraense. A domesticação da seringueira em grande escala fracassou. Ainda hoje existem vestígios da fábrica, vila e do monocultivo.

O compatriota Daniel bem que poderia ter atentado para a experiência de Ford. Ele chegou na Amazônia no ápice do estado de exceção e, com apoio do governo militar, instalou um complexo agroindustrial que englobava a produção de celulose em grande escala, arroz, criação de gado, e o extrativismo mineral de bauxita e caulim. Aeroporto, porto, rodovia e ferrovia compunham a infraestrutura, além de uma fábrica para a produção de celulose importada do Japão.

O desmatamento de mais de 200 mil hectares de floresta densa, para o cultivo de espécies exóticas – com o objetivo de produzir celulose – foi primeiro ato do polêmico projeto do milionário, que invadiu o território de indígenas e ribeirinhos que viviam do extrativismo no entorno dos rios Paru e Cajari. Os conflitos entre os seguranças da empresa e os moradores tradicionais eram constantes.
Crise do Projeto e Novos Donos

Nos anos 1980 e 1990 o debate ambientalista abriu espaço na agenda política do país, e transbordou as fronteiras nacionais com a militância do seringueiro Chico Mendes, executado em 1988. As críticas contra o Projeto Jari ganharam o mundo.

O jornalista Lúcio Flávio Pinto, que escreveu um livro sobre o assunto (Jari: Toda a Verdade Sobre o Projeto de Ludwig), conta que no início dos anos da década de 1980, os lucros sumiram e o Jari foi transferido a um grupo de 27 empresários brasileiros, liderado pelo Banco do Brasil e por Augusto Trajano de Azevedo Antunes, do Grupo Caemi, em operação coordenada pelo ministro Antônio Delfim Netto. Avalizado pelo governo, o grupo comprometeu-se a pagar a quantia de 280 milhões de dólares em 35 anos.

Mas a crise continuou. Em 1999 o Projeto foi adquirido por dois acionistas de São Paulo da direção do Grupo ORSA, presidido pelo empresário Sérgio Amoroso, pela soma simbólica de 1 dólar – as dívidas totalizavam cerca de 414 milhões de dólares. A negociação com o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) durou dois anos. O projeto passou a ter o nome de Grupo Jari, e os empresários firmaram compromisso em sanar passivos sociais e ambientais.

*Fonte: A Pública

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

Famílias acampadas devem ser despejadas em RO após sumiço de processos no Incra

Por: Josep Iborra Plans*

Mais de 50 famílias de acampados podem sofrer uma nova reintegração de posse em Rondônia – essa seria a oitava vez que os acampados deixariam as terras.  A área reivindicada pelas famílias são os Lotes 30-R e 30-A da Gleba Corumbiara, na Linha 65, no município de Parecis.  O local também é conhecido como Acampamento Arraial do Cajueiro.
Há 12 anos essas famílias reivindicam que as terras ocupadas sejam destinadas para reforma agrária. Segundo informações da CPT Rondônia, que acompanha o caso, os acampados sofrem, há anos, por conta do conflito com a Fazenda Cristo Rei. Além disso, conforme a CPT, as famílias estão em uma área abandonada da fazenda.
De acordo com a CPT Rondônia, o INCRA em Rondônia diz ter perdido o processo que justificou, há anos, o pedido de retomada da área para o domínio público, um CATP (Contrato de Alienação de Terras Públicas) de título provisório, dificultando assim a análise pelo Programa Terra Legal. “A responsabilidade é grave e deve ser apurada”, afirmam representantes da CPT no estado. “O desaparecimento dos processos administrativos no INCRA Rondônia dificultou a defesa das 50 famílias camponesas”, ressalta a pastoral.
Os processos, oficialmente, tramitavam na Procuradoria Federal Especializada do Incra (PFE/INCRA), porém não foram localizados nesse setor. Contudo, a perda dos processos foi confirmada pela procuradora Especializada do INCRA em Rondônia, Evelyn Yumi Fugimoto, que informou, ainda, que já havia realizado buscas em todas as seções do INCRA.
A informação sobre o desaparecimento dos processos também foi confirmada pelo Coordenador do Programa Terra Legal de Porto Velho, Francisco Sales, no dia 16 de dezembro de 2014, durante reunião da Comissão Nacional de Combate a Violência no Campo, no INCRA de Porto Velho.
Comissão Nacional de Combate a Violência no Campo
A situação de conflito do Acampamento Arraial do Cajueiro já havia sido debatida em reunião da Comissão Nacional de Combate a Violência, realizada no município de Ji-Paraná, em 14 de Outubro de 2014, como informou a CPT Rondônia na página Notícias da Terra.
Na época, a Ouvidoria Agrária pediu à Justiça o adiamento da reintegração de posse até o dia 14 de dezembro de 2014. Com isso, o Programa Terra Legal teria prazo para examinar o cumprimento ou não das cláusulas resolutivas dos títulos provisórios em questão. Na data marcada, nem o INCRA tinha oficiado o Terra Legal, pedindo esclarecimentos, nem o processo tinha sido localizado na autarquia de Porto Velho, como já foi dito.
Já na reunião de 16 de dezembro de 2014 com a Comissão Nacional de Combate a Violência no Campo, o representante dos acampados e presidente da Associação dos Produtores Rurais do Vale do Cajueiro, Jurandir Marinheiro de Lima, registrou em ata seu descontentamento com o INCRA, assim como o “desentendimento” entre INCRA e Terra Legal. Pois, segundo o presidente, essa falta de “sintonia” entre os órgãos tem prejudicado as famílias de acampados. Todavia, Jurandir pediu ainda a intervenção do Ministério Público Federal (MPF) no conflito. Na ata da reunião ainda foi registrada a ausência dos representantes do INCRA.
Após o encontro, o INCRA informou que o superintendente de Rondônia, Luiz Flávio Ribeiro, estava em período de férias e a substituta dele, Maria Elayne Friozo del Ponte, tinha saído para uma reunião com a Emater, em Porto Velho.
Para a Comissão de Combate a Violência no Campo reintegração deve ser cumprida
Em mais uma decisão contrária aos pequenos agricultores, apesar das claras dificuldades da administração (INCRA, Terra Legal) em defender as Terras da União e a legítima demanda de regularização fundiária dos pequenos agricultores da Associação do Vale do Cajueiro, a Comissão de Combate a Violência no Campo encerrou a reunião, de 16 de dezembro de 2014, com a recomendação, à Justiça de Santa Luzia, do despejo dos camponeses.
Apesar de ter perdido os processos e da inoperância do INCRA e Terra Legal em examinar a validade dos títulos provisórios, a Comissão decidiu orientar a Justiça de Santa Luzia comunicando que “não foi possível resolver amigavelmente o conflito agrário nos imóveis rurais denominados 30-A e 30-R (fazenda Cristo Rei II) situados na Linha 65, Gleba Corumbiara, no município de Parecis, (…) devendo em consequência serem cumpridos os respectivos mandatos de reintegração de posse com apoio da Policia Militar”.
A ordem de cumprimento da liminar de reintegração pela Polícia Militar foi decidida em 26 de janeiro de 2015 pelo juiz Artur Augusto Leite Júnior, da Comarca de Santa Luzia do Oeste.
Por meio da Paróquia de Santa Luzia e da Diocese de Ji-Paraná, a CPT Rondônia foi informada que a Polícia Militar do município de Rolim de Moura está se preparando para uma possível reintegração de posse.
Colheita da roça
Na tentativa de adiar a reintegração, a Ouvidoria Agrária ainda tentou um prazo até fevereiro de 2015 com o atual titular da antiga área de CATP, Afonso Tomal Júnior, o qual foi negado.
Diante da iminência de reintegração de posse, a defesa das famílias dos acampados também pediu mais 60 dias para que os camponeses pudessem colher as roças, no entanto o pedido não foi admitido pelo fazendeiro Afonso Tomal Junior.
Histórico
Na última reintegração de posse sofrida pelos acampados, em agosto de 2011, as famílias estavam na beira da estrada, próximo à área reivindicada, quando foram despejadas pela polícia. A decisão de reintegração foi considerada um “absurdo jurídico” pelos defensores dos camponeses.
Durante mais de uma década de acampamento, as famílias do Arraial do Cajueiro tem denunciado a extração ilegal de madeira na fazenda, assim como um grave acidente acontecido na área durante a construção do “linhão” das usinas do Rio Madeira.
Os títulos provisórios: entenda
Os Contratos de Alienação de Terra Pública (CATP`s) eram títulos entregues no período de colonização amazônica, promovida pelo regime militar, que repassavam, de forma provisória, consideráveis áreas de Terra da União para particulares, sob condição de pagamentos e de realizar um projeto de colonização agropecuária no local em cinco anos.
Em muitos dos CATPs, estas condições (cláusulas resolutivas) não foram cumpridas e o INCRA tinha obrigação de retomar as terras para a União após o prazo estipulado.
Em vez disso, muitos dos títulos, mesmo provisórios e inadimplentes, foram registrados em cartório, vendidos de forma ilegal e repassados para terceiros. Muitas dessas terras, abandonadas pelos seus titulares e sem aproveitamento, foram sendo ocupados por grupos de camponeses sem terra, virando posseiros das áreas.
A situação destes posseiros somente pode ser regularizada com a anulação dos CATPs.
Se as cláusulas do título provisório concedido anos atrás não foram cumpridas e a terra não tinha sido beneficiada, os títulos provisórios dos CATPs devem ser anulados e, pela lei, a terra deve ser restituída ao INCRA como Terra da União. Posteriormente, disponibilizando-as para regularização fundiária ou para reforma agrária, como solicitam os camponeses do Arraial do Cajueiro.
*Fonte: CPT

Nota: Massacre em Conceição do Araguaia

Da Diretoria e Coordenação Executiva Nacional da CPT
A Diretoria e Coordenação Executiva Nacional da CPT, profundamente chocadas com a notícia do massacre de seis pessoas de uma mesma família, na área rural de Conceição do Araguaia, Pará, vêm a público para externar sua indignação diante de tão brutal crime e para exigir medidas que ponham um fim a situações que propiciem a ocorrência de tão execráveis atos.
Eram passados somente cinco dias da recordação dos 10 anos da morte de Irmã Dorothy Stang, quando o massacre ocorreu. Neste intervalo, vozes do governo haviam afirmado que, devido às medidas adotadas após o triste episódio do assassinato da missionária, os conflitos e a violência no campo no estado do Pará haviam diminuído drasticamente.
O massacre de Conceição do Araguaia, porém, veio desmontar a fala das autoridades. Se de um lado é certo que houve diminuição nos números das violências e dos conflitos, continuam sempre muito presentes as condições que levam, a qualquer momento, a situações como a do massacre que hoje deploramos.
Permanecem inalterados:
- a morosidade dos processos burocráticos que se estendem por anos, enquanto as famílias aguardam o assentamento em acampamentos ou ocupações mais que precários;
- os julgamentos que erigem a direito maior o “direito à propriedade”, em detrimento das exigências do cumprimento da função social da propriedade.
A isso se soma o esfacelamento dos órgãos responsáveis pela reforma agrária, acompanhados de cortes no seu orçamento.
Tudo isso é um triste sinal, uma trágica parábola de como está sendo deixada à barbaridade selvagem, a questão agrária.
Neste caso de Conceição do Araguaia, como sempre em casos de repercussão nacional, ouvimos que dentro de 90 dias, a situação da área onde houve o massacre será resolvida.
A Coordenação da CPT, porém, não acredita em soluções que simplesmente resolvem uma situação concreta, mas nada muda do que as sustenta. São necessárias ações que facilitem o acesso à terra, para os que dela necessitam. O Congresso Nacional, ao invés de propor emendas constitucionais e projetos de lei que limitam os direitos dos povos e comunidades aos territórios dos quais foram esbulhados, deveria aprovar projetos de lei que abram caminhos para o rápido assentamento das famílias sem terra, como propõe a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, CNBB, na sua 52ª Assembleia, em 2014:
“aprovação do projeto de lei, em tramitação na Câmara dos Deputados, que determina a imissão imediata do INCRA na posse dos imóveis desapropriados para fins de Reforma Agrária, uma vez comprovado o cumprimento dos requisitos legais para expedição do mandado, resolvendo-se em ações separadas as impugnações relativas à improdutividade da terra e ao valor do imóvel.” (A Igreja e a Questão Agrária Brasileira no Início do Século XXI, nº 197).
E o poder Judiciário deveria tomar medidas para que os juízes não emitam “sentenças liminares nos conflitos possessórios sem que sejam ouvidas todas as partes, seja verificada a função social da propriedade e seja analisada a consistência das matrículas e dos registros cartoriais dos imóveis em disputa.” (Nª 205)
Só com ações profundamente saneadoras poderão se evitar massacres como o do último dia 17.
Goiânia, 23 de fevereiro de 2015.

Fonte: CPT

Flexibilidade da lei dificulta combate à madeira ilegal

Empresa denunciada por receptar madeira ilegal é liberada para comercializar enquanto está sob investigação
Pátio da madeireira Rainbow Trading, em Santarém, Pará.
A Rainbow Trading, serraria que receptou madeira ilegal, conforme foi revelado em investigação do Greenpeace, e que já acumula quase meio milhão de reais em multas junto aos órgãos ambientais, acaba de ser liberada pelo governo estadual do Pará para voltar a comercializar madeira.
Em novembro de 2014, a empresa recebeu quatro multas da Sema-PA (Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Pará) por uma série de infrações, tais como: vender centenas de metros cúbicos de madeira ilegal, vender madeira com créditos falsos ou fraudulentos e inserir informação falsa no Sisflora, o sistema eletrônico de controle de produtos florestais do Pará.
Na ocasião, a Rainbow foi obrigada a “devolver” os créditos suspeitos de ilegalidade enquanto seria investigada – uma medida cautelar para impedir que créditos ilegais sejam comercializados. No entanto, uma saída administrativa prevista em lei permite que a empresa pague uma “taxa de reposição” de valor irrisório para que possa voltar a comercializar madeira normalmente enquanto ocorre a investigação. Ou seja, agora a serrraria, que já acumula diversas infrações, está livre para comercializar por meio do mesmo sistema de controle que é acusada de ter fraudado.
Isso significa que empresas como a Rainbow Trading conseguem com facilidade voltar a operar até que tenham seus processos completamente julgados, algo que pode levar anos e acaba trazendo grande insegurança ao mercado, já que, nesse meio tempo, os consumidores ficam sujeitos a comprar madeira sem garantia de origem.
Desde maio de 2014 o Greenpeace vem mostrando que madeira da Amazônia, retirada sem autorização e com base na destruição da floresta, está sendo vendida livremente no Brasil e no exterior como se fosse legal. Para se ter uma ideia, de 2007 a 2012, 80% da extração de madeira ocorreu de forma ilegal no Pará e 44% no Mato Grosso.
“Num setor em que a extração ilegal de madeira é regra e não exceção, a liberação da Rainbow Trading no sistema Sisflora é um atestado de permissividade e estímulo para que as serrarias continuem na ilegalidade”, afirma Marina Lacôrte, da Campanha Amazônia do Greenpeace. “Ao permitir que essas empresas sigam operando normalmente mesmo tendo valores exorbitantes em multas a serem pagas, o Estado passa um recado simples e claro: a ilegalidade compensa. E, nessa conta, quem se dá mal são os que tentam trabalhar corretamente, obrigados a competir com a ilegalidade”, completa Lacôrte.
O não pagamento das multas aplicadas a quem realiza atividades ilegais é outro sério problema que alimenta a impunidade e agrava ainda mais o combate aos criminosos da floresta. Um levantamento feito com relação às empresas membro da Aimex (Associação das Indústrias Exportadoras de Madeira do Estado do Pará), por exemplo, mostra que, entre 2006 e 2014, de um total aproximado de 30 milhões de reais em multas, sob diferentes status de tramitação, apenas cerca de 180 mil reais foram quitados, o equivalente a menos de 1%.
Além de estimular a destruição da floresta, a impunidade provoca conflitos, violência e até a morte no campo.
“A solução deve começar pela revisão de todos os planos de manejo aprovados a partir de 2006, esse é o primeiro passo para separar o joio do trigo e impedir que todo o setor pague por esses crimes”, afirma Lacôrte.
O mercado começa a agir
Por mais que o governo brasileiro continue ignorando o problema, a preocupação com a madeira ilegal já levou a uma série de quebra de contratos em diversos países, como Holanda, França, Suécia, Suíça e Bélgica.
O caso mais recente ocorreu em Israel, onde a Home Center, maior rede varejista de produtos para construção e maior vendedora de Ipê do país, se comprometeu a parar de comercializar a madeira vinda da Amazônia brasileira e, portanto, de origem suspeita, após o Greenpeace ter exposto a ligação entre a loja e a compra de madeira ilegal.
Nos últimos quatro anos, Israel foi um dos maiores importadores do mundo de Ipê, madeira nobre que é principalmente utilizada para a construção de decks. Só em 2013 o país importou cinco mil toneladas de madeira vinda da Amazônia.
“Ao comprar, o mercado internacional também tem responsabilidade sobre a situação madeireira na Amazônia e a quebra de contratos é a sua resposta ao governo brasileiro de que não irá compactuar com isto. Essa resposta deveria ser ouvida, mas vem sendo ignorada tanto pelo governo federal quanto o estadual, que nada fazem para encontrar uma solução para a madeira ilegal”.

Conflitos com índios vão se agravar, prevê ex-presidente da Funai

Por: Roldão Arruda*

“Os conflitos não ocorrem porque os índios têm terra demais”, diz o antropólogo Márcio Meira, ex-presidente da Funai. “Eles ocorrem porque os índios têm terras que interessam ao agronegócio.”
Há uma reação cada vez mais forte na sociedade brasileira às demandas das populações indígenas, na avaliação do antropólogo Márcio Meira, ex-presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai). A reação decorre do crescimento econômico e o consequente avanço sobre áreas ocupadas pelos índios por empreendimentos do agronegócio, da mineração e hidrelétricas, segundo o especialista.
Outro fator preocupante para os índios, na avaliação do especialista, é o fortalecimento da bancada ruralista no Congresso e o seu alinhamento com grupos religiosos que apoiam missionários. Meira afirma que o objetivo da Proposta de Emenda Constitucional 215 (PEC-215), que está sendo desarquivada na Câmara, é a paralisação da Funai – cuja missão legal é a proteção dos interesses indígenas.
O antropólogo também acredita, por outro lado, que as comunidades indígenas estão melhor preparadas para a defesa de seus direitos. A perspectiva é de acirramento dos conflitos.
Meira presidiu a Funai durante cinco anos, entre 2007 e 2012. Foi o presidente mais longevo da instituição, desde que foi criada em 1967. Em seu mandato ocorreram a retirada dos arrozeiros da Terra Indígena Raposa Serra do Sol e a aprovação do projeto de construção da usina hidrelétrica de Belo Monte.
Em entrevista ao Estadão, em 2008, o senhor disse que o preconceito contra os índios estava aumentando no Brasil. Como vê a situação hoje?
Ficou pior. As reações anti-indígenas estão cada vez mais visíveis entre os atores políticos no Legislativo e no Executivo – onde existem ministros favoráveis e contrários às demandas indígenas. Mas não é só. O sentimento anti-indígena é forte no conjunto da sociedade. As pesquisas de opinião mostram isso. Um levantamento realizado em 2011 pela Fundação Perseu Abramo mostrou que 5% dos entrevistados concordavam de maneira total ou parcial com a expressão ‘índio bom é índio morto’. Isso significa uma concordância de 10 milhões de brasileiros.
A que atribui esse sentimento?
Quando se observa a história do Brasil no período republicano, verifica-se o seguinte: em todas as ocasiões nas quais o País passou por um grande processo de desenvolvimento econômico, sempre associado à expansão da ocupação territorial, houve acirramento das tensões com os indígenas. No início do século 20, o crescimento econômico provocou o avanço territorial em direção a áreas quase inacessíveis nos Estado dos Rio Grande do Sul, Paraná, São Paulo. Os conflitos com os indígenas foram muito fortes, porque eles estavam no caminho da construção das estradas de ferro e também do movimento de colonização que trazia para o Brasil os alemães e os italianos. O massacre dos índios kaingang nessas regiões foi brutal.
De que maneira isso repercutiu na sociedade?
Houve um grande debate na imprensa. O então diretor do Museu Paulista, Herman Von Hering, publicou um artigo no qual defendeu o extermínio dos índios. Dizia que não podiam ser um obstáculo ao progresso, ao avanço da civilização. Se fosse necessário, deveriam morrer. Uma das pessoas que se levantaram contra essa ideia foi Cândido Rondon. Para ele, a civilização não podia significar morte para os índios. O Estado, dizia o sertanista, tinha que proteger esses povos.
Foi um processo semelhante ao que ocorreu na ditadura, com o avanço em direção à Amazônia Legal, não?
Sim. O padrão se repete nos anos 50 e, mais tarde, na época dos governos militares, nas décadas de 60 e 70. Com a construção das rodovias BR-163, BR-364 e Transamazônica, que cortam a região amazônica, vários povos que viviam isolados foram contatados. Entre eles estão os panará, araweté, arara, assuri do Tocantins. Quando a economia está em crise, verifica-se uma redução dos conflitos, uma calmaria em relação às populações que estão no meio do mato, nas terras deles. Não é o que está ocorrendo agora. Os conflitos são agravados porque a expansão atual é capitaneada pelo agronegócio, o setor que mais tem a ver com a ocupação do território.
Não é só com o agronegócio que surgem conflitos.
Também existem os interesses das empresas de mineração e a questão energética. Com a expansão econômica, torna-se necessário melhorar e aumentar o suprimento energético, para o País continuar crescendo. Como os mananciais das outras regiões estão esgotados, é preciso construir hidrelétricas na Amazônia.
Hoje o deslocamento de índios de suas terras é mais complicado do que nos ciclos de expansão anteriores. Há menos terra, não é?
Sim. O caso do Mato Grosso do Sul é o melhor exemplo disso. Por outro lado, também mudou o sistema de proteção dos direitos indígenas. Ele tornou-se mais sólido a partir da Constituição de 1988 e do regime democrático que veio a seguir, o mais longo de toda a história republicana. Esses fatores, associados a políticas de saúde que tiveram mais eficácia a partir da década de 80 permitiram que a população indígena voltasse a crescer. Passou de menos de 200 mil pessoas, no início dos anos 80, para quase 900 mil nos dias de hoje. Outra novidade da história recente é que os índios passaram a ser atores políticos na cena democrática. Hoje eles têm organizações próprias, desenvolvem suas próprias narrativas, são atores políticos diretos.
Como vê o desarquivamento, na Câmara, da Proposta de Emenda Constitucional 215?
Essa PEC, o projeto de lei votado há pouco sobre recursos genéticos e outras medidas anti-indígenas estão dentro do contexto de crescimento econômico sobre o qual falei. Os atores políticos que atuam contra os indígenas estão interessados nas terras deles. Essa é a questão fundamental. Não se trata de ser contra os índios porque são índios ou porque possuem terras demais. O que acontece é que os índios têm terras que interessam a esses atores políticos.
Pela sua exposição, o agronegócio está sempre no centro do conflito.
O que vimos recentemente foi o encolhimento da produção industrial, ao mesmo tempo que cresciam a produção agropecuária e a exportação de commodities agrícolas. O Brasil foi se tornando cada vez mais dependente da economia gerada pelo agronegócio e isso teve esse repercussões políticas no governo. Não é por acaso que a Kátia Abreu está no ministério.
Os ruralistas ganharam mais poder?
Os ruralistas têm muito poder econômico e político nesse momento. Eles têm dinheiro, financiam campanhas eleitorais, conseguem uma bancada cada vez maior e estão se aliando cada vez mais à bandada religiosa, onde estão missionários que também têm interesses conflitantes com os dos índios. Por outro lado, como já disse, os índios também estão melhor preparados, vão a Brasília com mais frequência. O arquivamento da PEC 215, no final do ano passado, foi uma demonstração de que os indígenas e seus aliados ainda têm força no Congresso.
O que está havendo é um acirramento dos conflitos?
Sim. Isso é decorrência de um processo maior, estrutural, que envolve a economia, a política, toda a sociedade brasileira. Os debates deste ano e do próximo ano no Congresso serão muito marcados por essa agenda. O Judiciário e o Executivo também serão pautados.
Como vê a Funai nesse processo?
A Funai tem sido muito atacada. Procura-se, por todos os lados, construir uma narrativa de que a instituição incompetente e não confiável, do ponto de vista técnico, para a missão que deve desempenhar. Essa narrativa, construída pelos ruralistas, pelos grupos anti-indígenas, tem um sentido ideológico. Na verdade, a Funai foi muito competente nas suas ações. Se não fosse assim, não sofreria tantos ataques, não haveria tanta reação. Se ela não tivesse demarcado nada, se não tivesse conseguido impor e colocar na prática o que está estabelecido na lei, ninguém estaria preocupado com ela. Do total das terras indígenas existentes no País, 80% foram demarcadas após a Constituição de 1988, quando se estabeleceram regras claras sobre a questão. Isso é demonstração clara de como ela foi eficiente.
Acha que é por isso que querem retirar da Funai e transferir para o Congresso a tarefa de demarcação de terras?
Demarcar a terra significa retirar uma parte do território brasileiro do mercado capitalista. A área demarcada fica fora, diz a Constituição. Não pode ser vendida, trocada, alienada. É uma terra da União destinada ao uso coletivo pelos índios. No fundo é a reforma agrária mais eficaz que já foi feita no País.
*Fonte: O Estado de São Paulo