quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

Reportagem do Fantástico sobre Incra está correta; mas falta mais reforma agrária

Globo não errou na reportagem sobre desvio de lotes destinados a assentados; só que precisa fazer o mesmo em relação à grilagem; MST e FPA disputam o discurso

Por Alceu Luís Castilho* (@alceucastilho)

O Fantástico exibiu no domingo uma reportagem sobre utilização indevida de assentamentos do Incra, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária. Em determinado momento, o chefe de gabinete do órgão nega ao repórter que o Incra seja “uma bagunça”. Quase isso. De fato, o órgão não tem controle sobre as terras no país – seja\m elas assentamentos, sejam propriedades rurais. Mas é preciso tomar cuidado para não jogar fora o bebê junto com a bacia. Precisamos de mais reforma agrária, não menos.

O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) e a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) emitiram notas com propósitos distintos em relação à reportagem. O MST reconhece os desvios e quer que a Controladoria-Geral da União (CGU) faça outras investigações, não somente em assentamentos. A FPA, expressão institucional da bancada ruralista, defende os interesses dos grandes proprietários, no contexto de uma CPI que investiga o Incra e a Funai – que visa paralisar ainda mais as demarcações de terras indígenas e a reforma agrária.

Nas mãos de políticos
As distorções no Incra existem. Os dados da reportagem da Globo são eloquentes, mas apenas corroboram o que se constata há anos entre pesquisadores da questão agrária. Ou em visitas a assentamentos na Amazônia. Está aqui o vídeo do Fantástico:Autoridades e até pessoas mortas recebem lotes da reforma agrária. A própria Frente Parlamentar da Agropecuária reproduziu o vídeo no YouTube:



A reportagem mostra que, segundo a CGU, 271 políticos eleitos – não se fala em que anos foram eleitos – receberam lotes da reforma agrária. Que, obviamente, deveriam ser destinados a camponeses, àqueles que historicamente foram expulsos do campo em meio a um processo histórico violento de grilagem e de ocupação das melhores terras pelo poder econômico.
Eu mesmo, no levantamento com 13 mil declarações de bens de políticos eleitos em 2008 e 2010, constatei, no livro Partido da Terra – como os políticos conquistam o território brasileiro (Editora Contexto, 2012) que alguns políticos declararam à própria Justiça Eleitoral possuir “terras do Incra”, ou “terras da União”. O que, como informa o chefe de gabinete do Incra ao Fantástico, é simplesmente ilegal.

A nota do MST põe ênfase, ainda, na usurpação das terras da reforma agrária por funcionários públicos (38 mil do total de 76 mil lotes ocupados irregularmente), menores de idade (8.519), em prática “que revela a manipulação para aumentar o tamanho da área de uma mesma família”, e, por último, mas não menos importante, 7.872 empresários. O movimento quer que a terra “esteja em mãos de quem nela trabalha e produz alimentos”.

A nota da FPA diz que a reportagem do Fantástico vem reforçar a tese da Frente Parlamentar da Agropecuária “de que o Incra precisa ser passado a limpo em regime de urgência”. O presidente da frente, deputado Marcos Montes (PSD-MG), afirma que o grupo defende a reforma agrária e a demarcação de terras indígenas, “desde que as ações sejam baseadas na justiça social, na segurança jurídica e na paz no campo”. A expressão “segurança jurídica”, no caso, refere-se aos interesses dos proprietários.

"Banda podre"
Um dos maiores pesquisadores brasileiros sobre questão agrária, o geógrafo Ariovaldo Umbelino de Oliveira, fala explicitamente em “banda podre” do Incra. Referindo-se a funcionários que fazem vista grossa às vendas irregulares, não fiscalizam, patrocinam esse tipo de distorção. Professor aposentado da Universidade de São Paulo (USP), ele não vê esses casos como ocasionais – mas sim estruturais, incrustados na estrutura do Estado. O efeito é o de barrar uma reforma agrária efetiva.
Pode-se até atribuir boa vontade a este ou aquele superintendente do Incra. Mas a estrutura está viciada. Ao longo da Amazônia, assentamentos inteiros viram povoados ou fazendas, sem nada que lembre o destino original. Não à toa, o Incra aparece nas listas do próprio governo federal – do Ibama, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – como um dos principais responsáveis pelo desmatamento.
Em Humaitá (AM), entrevistei há dois anos a chefe da unidade avançada do Incra na região, Maria Terezinha Leite. Ela falava sobre o caso de Santo Antônio do Matupi, no município de Manicoré. O que era para ser um assentamento da reforma agrária se tornou um povoado, conhecido como “180” – em referência ao Km 180 da Rodovia Transamazônica, no trecho entre Humaitá e Apuí. Os lotes são ocupados por comerciantes, fazendeiros, madeireiros. Com farta retirada de madeira ilegal.

A imagem acima mostra o que deveria ser o assentamento. Observem os pequenos retângulos, que deveriam marcar os lotes. São uma peça de ficção. As fronteiras foram rompidas; os lotes, agrupados, vendidos como se fossem propriedades comuns. A área total é de 34.534 hectares. Das 527 parcelas, de até 60 hectares cada uma, Terezinha estimava que apenas 50 ainda estivessem com os beneficiários originais. “Tem lote que já passou por cinco donos”, contou ela.
O Incra precisa notificar todos os atuais “proprietários”. Mas ela conseguiu notificar só 20, entre aqueles que, por algum motivo, estiveram na sede do Incra. E por que os demais não são fiscalizados? Porque as notificações em Matupi – que, na prática, se tornou uma cidade – precisariam do apoio da Polícia Federal. Os servidores têm medo. “Não dá para entregar uma notificação de que a pessoa tem de sair em 15 ou 30 dias sem a presença da polícia”, explicou Terezinha.

Ou seja: se há uma banda podre do Incra, há também uma banda omissa – ou refém de uma violência estrutural. Mais que isso, tivemos desde 1985 uma sucessão de governos omissos. O caso acima mostra que o problema vai muito além das possibilidades do Incra. Para fazer as leis em nosso Velho Oeste faz-se necessária uma política de governo. Conjunta. Não se combate crime organizado – e o nosso campo está historicamente tomado por ele – com fiscais isolados do Incra ou do Ibama. Eles não são super-heróis.
O papel da Rede Globo
Sobre a reportagem do Fantástico, cabe assinalar que a Globo merece todas as críticas, como defensora de privilégios econômicos. Mas a reportagem está correta, no sentido de não trazer nenhum dado falso. O próprio MST elogia a iniciativa da CGU e pede que os usurpadores sejam punidos. Demonizar a emissora, no caso, significa brigar com os fatos. A questão é observar como esses dados serão capitalizados pelas forças políticas – dentro e fora do Congresso.
A reportagem, por exemplo, dá ênfase ao caso de um assentado irregular que seria filho de um assessor do deputado Vicentinho, do PT paulista. Que ele seja punido. Mas cabe assinalar que os políticos beneficiados por esse esquema não costumam ser do PT – ainda que o partido não esteja excluído dessa farra. Ou seja: é preciso detalhar mais os dados e mostrar que a ocupação irregular de terras, no Brasil, é um fenômeno suprapartidário. Dela participam os filhos do MDB e da Arena. O PMDB. O PSDB. O DEM.
A segunda ressalva fica por conta da inexistência de reportagens similares sobre o mencionado e violento processo histórico de roubo de terras públicas no Brasil, a grilagem. O professor Umbelino de Oliveira, por exemplo, é um dos que acompanham o tema com atenção. “Metade dos documentos de posse de terra no Brasil é ilegal“, declarou ele nessa entrevista à CartaCapital. Terá fôlego a imprensa brasileira para mostrar – com a indignação que lhe é peculiar em outros temas – o gigantesco processo de furto e roubo do território nacional?

Em pauta, a Reforma Agrária
Vale lembrar que a reforma agrária está longe de ser algo de outro planeta. Ela faz parte do capitalismo. Como diz o nome, não se trata de revolução – como defende, por exemplo, a Liga dos Camponeses Pobres. Foi feita na Europa, em países centrais desse modo de produção. No Brasil, já foi utilizada até como espantalho para justificar um golpe – o de 1964. Com a participação decisiva da imprensa. Como se não bastasse, e mais ainda no governo Dilma Rousseff, a reforma agrária ocorre desde 1985 em uma escala vergonhosa.

De nada adianta tapar o sol com a peneira: que os dados da CGU sobre o Incra ajudem a motivar uma grande investigação nacional sobre a propriedade de terras no Brasil. Que a Justiça (não somente a CGU) fiscalize a usurpação dos lotes da reforma agrária pelos representantes de nosso poder econômico e político: fazendeiros, madeireiros, comerciantes de terras. Sem paralisação, como querem os ruralistas. E que a reforma agrária beneficie somente quem tem de ser beneficiado: os camponeses. E não parasitas e estelionatários.
*Publicado originalmente no blog Outras Palavras

Balanço da questão agrária no Brasil em 2015


Por Comissão Pastoral da Terra – Regional Nordeste II

O ano de 2015 foi marcado pelo desmonte de órgãos do Governo e por cortes de recursos públicos para a Reforma Agrária e demarcação de territórios quilombolas e indígenas. A aliança do Estado brasileiro com o agronegócio se intensificou, atingindo diretamente o conjunto dos povos do campo. A violência contra as comunidades camponesas e povos indígenas foi praticada não só pela lógica do capitalismo, como também pelo Estado brasileiro.

O número de assassinatos no campo cresceu. A destruição das florestas aumentou. O uso de veneno, que chega a nossas mesas, foi ampliado. Os recursos para o Programa de Construção de Cisternas e outras tecnologias sociais sofreram cortes e no campo persistiu o trabalho escravo. A natureza foi, cada vez mais, o filão das empresas capitalistas. Com isso, seguiu intensamente a apropriação das águas, das terras, do sol e do ar. A natureza foi e está sendo privatizada. Neste cenário, fica mais clara a lógica do capitalismo e do Estado brasileiro.

Do outro lado, a memória dos povos do campo e a crescente violência o fizeram permanecer em luta. Foram inúmeras ocupações e retomadas de terra, marchas, jornadas e protestos que alimentaram a rebeldia necessária para manter a esperança na construção da Terra sem males, do Bem Viver.



No início de 2015, o sentimento era de que, após as tensões eleitorais diante da possibilidade de vitória de um candidato expressamente de direita, seria possível uma polarização de projetos e mudanças de rumo na política para o campo brasileiro. Ledo engano: os cenários político e econômico brasileiro se agravaram e produziram impactos negativos nas lutas do campo.

O Congresso Nacional, com a mais conservadora formação das últimas décadas, manteve-se a serviço do poder econômico, que financiou as ricas campanhas eleitorais e, ao mesmo tempo, se colocou como palco da crise política e do prolongamento da disputa eleitoral, em prejuízo de uma pauta que fosse de interesse real da sociedade. Houve uma preocupante predominância de pautas conservadoras. São exemplos: os inquietadores projetos para implantar a terceirização, a redução da maioridade penal, a restrição da demarcação das terras indígenas, a mudança na rotulação de produtos transgênicos, o tratamento restritivo do estatuto da família, a mudança do estatuto do desarmamento, a mudança no regime de partilha do pré-sal, dentre outras iniciativas voltadas ao conservadorismo e ao retrocesso nas conquistas sociais.

Com isso, as injustiças, as desigualdades sociais e ambientais voltaram a se intensificar e o Governo andou para trás no caminho de superar os desafios e impasses da luta da terra, deixando de atender a demanda histórica pela Reforma Agrária e os direitos dos povos do campo.

Cortes do orçamento da Reforma Agrária
Em consequência desse quadro, as desapropriações de terras foram drasticamente prejudicadas com o corte de 15,1%, afetado pelo contingenciamento do orçamento da União. O Ministério do Desenvolvimento Agrário sofreu, em termos absolutos, uma redução de 49% do montante previsto inicialmente na Lei Orçamentária Anual de 2015. O Incra, que possuía um orçamento inicial da ordem de R$ 1,65 bilhão, atuou em 2015 com metade deste valor: R$ 874,37 milhões.

Sequer foi cumprida a estimativa do governo para 2015 que era de atingir uma meta de trinta mil novas famílias assentadas e, até 2018, zerar o número de trabalhadores e trabalhadoras rurais acampadas no país, caso não ocorressem mais ocupações até essa data - tendo em vista que os movimentos sociais indicam o número atual de 120 mil famílias acampadas no país. Os movimentos sociais do campo questionam os dados do MDA que declarou ter assentado cerca de 13 mil famílias de trabalhadores rurais até outubro, quando somente cerca de sete mil novas famílias haviam sido assentadas até então. De todo modo, o número é muito aquém da necessidade das famílias acampadas no Brasil.

Continuam os conflitos e violência no campo

A manutenção da aliança com o agronegócio acarretou o agravamento da violência vivida pelas comunidades camponesas que lutam por direitos e pela permanência em seus territórios. Os registros parciais da CPT apontam que o Nordeste foi a região em que houve mais ocorrência de conflitos no campo em 2015, representando 35% dos casos em todo o país. Em seguida, veio a região Norte, com 27% das ocorrências, o Centro-Oeste com 17%, o Sudeste com 15% e, finalmente, o Sul do país com 5,5%.

Parte significativa das ocorrências de conflitos neste ano continuou sendo provocada pelo poder privado, com destaque para fazendeiros, grandes latifundiários, grandes empresas, mineradoras, hidrelétricas, portos, dentre outras grandes obras de infraestrutura. O fato demonstra uma disputa, excessivamente desigual, por territórios e bens naturais entre o poder privado e as comunidades camponesas. Apesar disso, permanece alarmante a violência praticada pelo próprio Estado Brasileiro, através da força policial, dos investimentos aos grandes projetos desenvolvimentistas, das ações do Poder Judiciário e das portarias e decretos que limitam as demarcações e desapropriações.

No Estado de Pernambuco, um dos destaques da violência ficou por conta do Complexo Industrial e Portuário de Suape, como revelam as denúncias feitas pelos camponeses posseiros da área quanto a abusos cometidos pela empresa pública, sobretudo de ameaças, despejos forçados e de criminalização dos mesmos. Em diversas audiências públicas, os camponeses denunciaram publicamente as ações de violência protagonizadas pelo Complexo, inclusive a existência de trabalhadores ameaçados de morte e a forte atuação de milícias armadas contratadas e formadas por Suape. Foram feitas denúncias internacionais, inclusive em audiência na Comissão Interamericana de Direito Humanos e com o relator especial da ONU sobre defensores e defensoras de Direitos Humanos.

Outro exemplo da violência sofrida pelas comunidades camponesas ocorreu na Fazenda Salgadinho, no estado da Paraíba. Localizada no município de Mogeiro, a área foi palco de um conflito que envolveu 33 famílias de posseiros que vivem e trabalham no local há mais de 50 anos. Há oito anos, os proprietários vinham ameaçando os camponeses/as de expulsão. Em 2015, os capangas da Fazenda, atiraram, com frequência, nas proximidades das casas dos posseiros, como forma de ameaça e amedrontamento. Em um desses ataques, seis posseiros foram baleados no tórax e pernas, sendo que um deles teve cinco perfurações no abdômen. Vários boletins de ocorrência foram feitos e nenhuma providência eficaz foi adotada.

A Terra encharcada de sangue

O ano que se encerra também deixa outra triste marca na história do campesinato, com os assassinatos no campo se destacando e ganhando repercussão nacional e internacional. Segundos dados parciais da CPT, o número de assassinatos no campo é o maior desde 2004. Foram 49 assassinatos de camponeses, sobretudo de posseiros, sem terras e assentados da Reforma Agrária.

Se a região Nordeste concentra o maior número de ocorrências de conflitos agrários, o Norte do país se destaca por possuir os piores índices de conflitos com vítimas fatais. Dos 49 assassinatos no campo, 21 ocorreram somente no estado de Rondônia. De acordo com a CPT no estado, os casos expressam a espiral crescente de assassinatos de sem terras por jagunços, a mando dos latifundiários, com denúncias de envolvimento de policiais e milícias armadas. Além de Rondônia, 19 assassinatos foram registrados no estado do Pará e cinco no Maranhão. Estes foram os três estados que lideraram o índice de violência no campo com vítimas fatais em 2015.

Um dos casos de assassinato que mais chocou o país ocorreu no município de Conceição do Araguaia/PA. Seis pessoas de uma mesma família foram assassinadas a golpes de facão e tiros. O crime foi motivado por disputa por lote de terra, ocasionadas pela morosidade dos processos de regularização fundiária. Esta é uma das principais causas do acirramento da violência no campo. Quanto mais o Incra demora para solucionar os conflitos fundiários, mais violência e assassinatos acontecem envolvendo vítimas e pessoas inocentes, nas áreas das comunidades tradicionais e de ocupações.

Outra vítima fatal em circunstâncias absurdas foi a trabalhadora rural Maria das Dores dos Santos, conhecida como Dora, que vivia na comunidade de Portelinha, município de Iranduba/AM. Ela foi sequestrada de sua casa por cinco homens fortemente armados e executada com 12 tiros de pistola. Dora vinha sendo ameaçada de morte e tinha procurado ajuda na Delegacia de Iranduba, local em que registrou 18 boletins de ocorrência por ameaça. A trabalhadora também havia feito denúncias na Assembleia Legislativa.

Meio ambiente: o verde do dólar é o que interessa
Os dados oficiais do Governo Federal apontam que houve um aumento de 16% do desmatamento da Amazônia entre agosto de 2014 e julho de 2015, em comparação com o mesmo período anterior. Os Estados do Amazonas (54%), Rondônia (41%) e Mato Grosso (40%) foram os que mais sofreram com o aumento, que foi mais acentuado no velho e bem conhecido arco do desmatamento (faixa de fronteira da expansão da soja e da pecuária, que avança sobre o coração da Amazônia). O fato revela a tendência de crescimento dos índices de desmatamento, provocado por incentivo do próprio Estado à expansão dessas atividades sobre a floresta, incluindo os territórios de povos e comunidades tradicionais.

A tragédia de Mariana, além de ser um dos maiores desastres ambientais na história, revelou que o Estado prossegue na contramão das necessidades globais, atendendo os interesses de empresas criminosas que financiam parlamentares e defendem o crescimento a qualquer custo. As bancadas da mineração, ruralistas e de outros parlamentares federais e senadores ligados ao mercado, tentam, através do Projeto de Lei 654/2015, enfraquecer ainda mais o processo do licenciamento ambiental, visando encurtar o tempo de análise técnica dos projetos e eliminar etapas do processo de licenciamento.

O veneno nosso de cada dia
Na contramão dos alertas das organizações sociais sobre segurança e soberania alimentar, o Brasil continuou ampliando a sua liderança como maior consumidor mundial de agrotóxicos, mantendo a autorização de comercialização e uso de produtos que já foram banidos em vários países. Enquanto de um lado, os órgãos reguladores são flexíveis com a liberação desses produtos no país, a estrutura dos órgãos de vigilância e fiscalização foi concebida para não funcionar e impede o acompanhamento das populações expostas, deixando de verificar quais são os riscos do contato com essas substâncias.

O Instituto Internacional de Pesquisa em Câncer (IARC), da Organização Mundial da Saúde (OMS), que faz avaliações sobre diversos agrotóxicos, classificou alguns desses produtos como carcinógeno humano, dentre eles o glifosato e o herbicida 2,4-D, que têm o seu uso permitido no Brasil. Enquanto o Brasil se afoga em agrotóxicos, organizações e movimentos sociais apontam que a única forma de retirar o veneno da mesa é através da agroecologia e de políticas de estado que possam investir na produção camponesa, historicamente ignorada pelos Governos.

A convivência com o Semiárido não foi prioridade

2015 foi o quinto ano consecutivo da estiagem considerada a maior dos últimos 80 anos no país, com cerca de mil municípios na região decretando situação de emergência. Apesar da importante redução da mortalidade humana, da fome e dos saques, em razão de programas públicos exigidos pelo povo sertanejo, o nordestino continuou sofrendo severos impactos diante da prioridade dos Governos aos grandes empreendimentos e ao latifúndio.

De fato, o prolongamento do período de seca representou o aumento da perda da produção agrícola e pecuária na região, provocando a descapitalização das comunidades camponesas que vivem não somente no sertão, mas também nas zonas da mata e litoral nordestino. Este, por sinal, será um dos principais desafios para os próximos anos: a recomposição do rebanho dizimado, que é fonte de renda e alimentação de muitas famílias camponesas.

Por sua vez, a secagem nos açudes e cacimbas também tem sido uma das consequências deste aterrador contexto. Os principais reservatórios e geradores de energia do Nordeste estão com níveis baixíssimos e em colapso. Neste contexto, os estados de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará e Piauí ocupam a posição mais grave prevista na ordem classificatória adotada pela Agência Nacional das Águas (ANA).

Do ponto de vista dos camponeses, dos pequenos agricultores e das populações tradicionais, esse quadro continua agravado por um aspecto há muito conhecido no Nordeste: a concentração das águas para o desenvolvimento de grandes empreendimentos industriais ou agropecuários voltados para a exportação. Significa dizer que, enquanto os trabalhadores/as viveram em 2015 a pior seca das últimas décadas, as empresas (de fruticultura, mineração, automotiva, entre outras) apropriaram-se do bem em escassez, sem que os poderes públicos adotassem qualquer medida protetora para a população.

Tais empreendimentos perpetuam o modelo de apropriação da água no Nordeste. Com isso, tem-se o aumento considerável de casos de disputa pela água na área rural. Um dos exemplos deste fenômeno é o caso dos conflitos pela água nos municípios inseridos na Bacia hidrográfica Apodi-Mossoró/RN, além da já denunciada apropriação das águas do aquífero Jandaíra, um dos maiores do Nordeste.

As organizações sociais questionaram, em 2015, grandes empreendimentos em curso no Nordeste, a exemplo do canal do sertão, considerada a maior obra de infraestrutura hídrica no estado de Alagoas e um dos maiores do Nordeste. O canal, que compõe o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) do Governo Federal, terá 250 quilômetros de água para 42 municípios alagoanos, do Sertão ao Agreste. A cada trecho é uma festa pública de inauguração e nada da água chegar à torneira dos trabalhadores/as. De acordo com especialistas, obras deste porte costumam destinar somente cerca de 6% da água para consumo humano e o restante para irrigação por grandes empreendimentos. As organizações sociais que atuam na área denunciam que esta água será um privilégio para poucos. Pelo mesmo caminho, se teme que vá a tão polêmica obra da Transposição do Rio Francisco, que em 2015 ganhou destaque por investigações de supostos desvios elevados de verbas públicas em sua construção.

Mesmo diante de um cenário estarrecedor, estima-se que a migração para outras regiões do país foi menor em 2015, fato este atribuído justamente ao pouco que se conquistou de Reforma Agrária e de iniciativas de convivência no semiárido. Contudo, tais iniciativas sofreram cortes drásticos em 2015, como os sofridos pela Articulação Nacional do Semiárido (ASA).

Trabalho escravo em 2015: Recuo dos números, crescimento das preocupações
O ano de 2015, que iniciou com a suspensão da Lista Suja de Trabalho Escravo por decisão liminar do STF a pedido de grandes construtoras, chega ao fim com graves preocupações quanto à continuidade da política brasileira de combate ao trabalho escravo.

Em 2015, cerca de mil trabalhadores/as foram resgatados da escravidão – um número em nítida redução se comparado à média dos quatro anos anteriores (2.260). Essa queda ocorre no exato momento em que parte dos congressistas, no afã de reduzir mais e mais direitos, quer aprovar a revisão da definição legal do trabalho escravo. A alegação é de que o conceito atual, enunciado no artigo 149 do Código Penal – em vigor desde 2003 e parabenizado internacionalmente –, abre a porta a exageros, arbitrariedade e insegurança jurídica. Trata-se de uma alegação falsa, pois o baixo efetivo de auditores fiscais em atividade tem reduzido as autuações, considerando como em condições análogas à escravidão apenas um caso em cada sete estabelecimentos fiscalizados, sob o frágil argumento de que trabalho escravo só se caracterizaria pela soma de violações e não pela verificação de infrações isoladas.

Segundo dados parciais, os estados que lideraram o ranking de trabalho escravo identificados em 2015 pela CPT, foram Minas Gerais, Maranhão, Rio de Janeiro e Pará. As principais atividades que se beneficiaram da prática do trabalho escravo em 2015 foram: a construção civil (243 resgatados), a pecuária (133) e o extrativismo vegetal (114), sendo 52 no PI e 37 no CE. Na prática do trabalho escravo em geral, as atividades econômicas ligadas ao campo predominaram sobre as atividades urbanas. Segundo a análise da Divisão de Erradicação do Trabalho Escravo (DETRAE), do Ministério do Trabalho, o perfil atual das vítimas é de jovens do sexo masculino, com baixa escolaridade e que tenham migrado internamente no Brasil. Doze trabalhadores encontrados tinham idade inferior a 16 anos, enquanto 24 tinham entre 16 e 18 anos.

Vale lembrar que no final do ano, poucos dias após a entrega do Prêmio Nacional de Direitos Humanos à militante Brígida Rocha, da Campanha De Olho Aberto para Não Virar Escravo, coordenada pela CPT, uma pronta mobilização permitiu evitar no Senado a votação-relâmpago do Projeto de Lei que - sob pretexto de regulamentar a emenda constitucional do confisco da propriedade dos escravistas - propõe eliminar os principais elementos caracterizadores do trabalho escravo, ou seja: os que remetem à violação da dignidade da pessoa (as condições degradantes e a jornada exaustiva).

Lutas que marcaram 2015
Mesmo diante de todas as dificuldades impostas pelo Estado, pelo agronegócio e grandes empreendimentos, os camponeses e camponesas enfrentaram os desafios que lhes foram impostos, lutaram pela Reforma Agrária e pela demarcação de seus territórios.

O ano foi de intensas mobilizações e lutas. Algumas destas marcaram o ano que se encerrou, como a jornada das mulheres da Via Campesina e a marcha das Margaridas, realizadas em março e agosto, respectivamente, mobilizando milhares de camponesas de todo o país.

As ocupações de terras também ganharam força em 2015. Conforme dados parciais da CPT, 34% dos latifúndios ocupados estão localizados na região Nordeste, 26% no Centro-Oeste, 17% no Sudeste, 11,5% no Sul e finalmente 11% no Norte. Os estados da Bahia, Goiás, Mato Grosso do Sul, Paraná e Pernambuco lideraram a lista das ocupações de latifúndios improdutivos. Grande parte dessas foi realizada pelo MST no mês de abril, durante a sua Jornada de caráter nacional, o Abril Vermelho.

O movimento sindical também ocupou as ruas em 2015, a exemplo da realização de mais uma edição do Grito da Terra, realizado em Brasília no mês de maio. A mobilização nacional, que reuniu milhares de trabalhadores e trabalhadoras rurais, foi precedida de um conjunto de manifestações estaduais e regionais.

Os povos indígenas de todo o Brasil também realizaram grandes mobilizações e fizeram de Brasília um de seus principais campos de luta contra a PEC-215. Um exemplo emblemático foi a manifestação ocorrida no mês de outubro, quando centenas de indígenas, quilombolas e pescadores tradicionais ocuparam a Câmara dos Deputados, em protesto à PEC. Na ocasião, o presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, recriminou os manifestantes. As luzes, microfones e ar-condicionados foram desligados, sob ordens do presidente da Câmara. A polícia cercou o local e impediu a entrada de advogadas e advogados. Além dos protestos, as populações indígenas exigiram respeito, denunciaram as violências de que são vítimas em inúmeros fóruns e tribunais nacionais e internacionais e reivindicaram o cumprimento da Constituição para impedir retrocessos ou supressão de direitos.

Perspectivas para 2016
A ameaça real, de que os preocupantes cenários político e econômico vividos em 2015 se prolonguem no ano de 2016, evidencia que somente com muita organização e luta é que os trabalhadores rurais e movimentos sociais conseguirão evitar a clara tendência da permanência dos conflitos agrários.

As comunidades camponesas impactadas por este modelo de desenvolvimento continuarão desafiadas a assumir para si a responsabilidade da resistência como único caminho para permanecerem existindo. De fato, não são poucos os desafios que se apresentam para o ano que se anuncia, em razão da persistência do modelo alicerçado no agronegócio, da exploração do latifúndio e sem qualquer preocupação com os povos do campo e com o meio ambiente. Os desafios são enormes e, aos povos do campo, caberá a firmeza no olhar e a coragem nos passos para avançar em seus direitos, como sempre fizeram.

Fonte: CPT

terça-feira, 5 de janeiro de 2016

Tentando retornar


Voltando do sumiço e retornando aqui ao blog.

Por motivos diversos o blog ficou parado por semanas. A  falta de tempo principalmente para editar matérias foi a principal causa. 

Modéstias à parte, devido aos inúmeros pedidos de retorno do blog Língua Ferina (mentira, ninguém pediu para voltar, rsrs), tento a partir de hoje retornar as postagens aqui no ritmo que me for possível.

Aproveito para desejar a todos os amigos/as leitores/as os votos de um 2016 de lutas e de disposição para superar tantos problemas.

Um abraço