Globo não errou na reportagem sobre desvio de lotes destinados a
assentados; só que precisa fazer o mesmo em relação à grilagem; MST e FPA
disputam o discurso
O Fantástico exibiu no
domingo uma reportagem sobre utilização indevida de assentamentos do Incra, o
Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária. Em determinado momento, o
chefe de gabinete do órgão nega ao repórter que o Incra seja “uma bagunça”.
Quase isso. De fato, o órgão não tem controle sobre as terras no país – seja\m
elas assentamentos, sejam propriedades rurais. Mas é preciso tomar cuidado para
não jogar fora o bebê junto com a bacia. Precisamos de mais reforma agrária,
não menos.
O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) e a Frente
Parlamentar da Agropecuária (FPA) emitiram notas com propósitos distintos em
relação à reportagem. O MST reconhece os desvios e quer que a
Controladoria-Geral da União (CGU) faça outras investigações, não somente em
assentamentos. A FPA, expressão institucional da bancada ruralista, defende os
interesses dos grandes proprietários, no contexto de uma CPI que investiga o
Incra e a Funai – que visa paralisar ainda mais as demarcações de terras
indígenas e a reforma agrária.
Nas mãos de políticos
As distorções no Incra existem. Os dados da reportagem da Globo
são eloquentes, mas apenas corroboram o que se constata há anos entre pesquisadores
da questão agrária. Ou em visitas a assentamentos na Amazônia. Está aqui o
vídeo do Fantástico:Autoridades e até pessoas mortas recebem lotes da reforma agrária.
A própria Frente Parlamentar da Agropecuária reproduziu o vídeo no YouTube:
A reportagem
mostra que, segundo a CGU, 271 políticos eleitos – não se fala em que anos
foram eleitos – receberam lotes da reforma agrária. Que, obviamente, deveriam
ser destinados a camponeses, àqueles que historicamente foram expulsos do campo
em meio a um processo histórico violento de grilagem e de ocupação das melhores
terras pelo poder econômico.
Eu mesmo, no levantamento com 13 mil declarações de bens de
políticos eleitos em 2008 e 2010, constatei, no livro Partido
da Terra – como os políticos conquistam o território brasileiro (Editora Contexto, 2012) que alguns
políticos declararam à própria Justiça Eleitoral possuir “terras do Incra”, ou
“terras da União”. O que, como informa o chefe de gabinete do Incra ao
Fantástico, é simplesmente ilegal.
A nota do MST põe
ênfase, ainda, na usurpação das terras da reforma agrária por funcionários
públicos (38 mil do total de 76 mil lotes ocupados irregularmente), menores de
idade (8.519), em prática “que revela a manipulação para aumentar o tamanho da
área de uma mesma família”, e, por último, mas não menos importante, 7.872
empresários. O movimento quer que a terra “esteja em mãos de quem nela trabalha
e produz alimentos”.
A nota da FPA diz
que a reportagem do Fantástico vem reforçar a tese da Frente Parlamentar da
Agropecuária “de que o Incra precisa ser passado a limpo em regime de
urgência”. O presidente da frente, deputado Marcos Montes (PSD-MG), afirma que
o grupo defende a reforma agrária e a demarcação de terras indígenas, “desde
que as ações sejam baseadas na justiça social, na segurança jurídica e na paz
no campo”. A expressão “segurança jurídica”, no caso, refere-se aos interesses
dos proprietários.
"Banda podre"
Um
dos maiores pesquisadores brasileiros sobre questão agrária, o geógrafo
Ariovaldo Umbelino de Oliveira, fala explicitamente em “banda podre” do Incra.
Referindo-se a funcionários que fazem vista grossa às vendas irregulares, não
fiscalizam, patrocinam esse tipo de distorção. Professor aposentado da
Universidade de São Paulo (USP), ele não vê esses casos como ocasionais – mas
sim estruturais, incrustados na estrutura do Estado. O efeito é o de barrar uma
reforma agrária efetiva.
Pode-se
até atribuir boa vontade a este ou aquele superintendente do Incra. Mas a
estrutura está viciada. Ao longo da Amazônia, assentamentos inteiros viram
povoados ou fazendas, sem nada que lembre o destino original. Não à toa, o
Incra aparece nas listas do próprio governo federal – do Ibama, o Instituto
Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – como um dos
principais responsáveis pelo desmatamento.
Em Humaitá (AM), entrevistei há dois anos a
chefe da unidade avançada do Incra na região, Maria Terezinha Leite. Ela falava
sobre o caso de Santo Antônio do Matupi, no município de Manicoré. O que era
para ser um assentamento da reforma agrária se tornou um povoado, conhecido
como “180” – em referência ao Km 180 da Rodovia Transamazônica, no trecho entre
Humaitá e Apuí. Os lotes são ocupados por comerciantes, fazendeiros,
madeireiros. Com farta retirada de madeira ilegal.
A imagem acima mostra o
que deveria ser o assentamento. Observem os pequenos retângulos, que deveriam
marcar os lotes. São uma peça de ficção. As fronteiras foram rompidas; os
lotes, agrupados, vendidos como se fossem propriedades comuns. A área total é
de 34.534 hectares. Das 527 parcelas, de até 60 hectares cada uma, Terezinha
estimava que apenas 50 ainda estivessem com os beneficiários originais. “Tem
lote que já passou por cinco donos”, contou ela.
O Incra precisa notificar todos os atuais “proprietários”. Mas
ela conseguiu notificar só 20, entre aqueles que, por algum motivo, estiveram
na sede do Incra. E por que os demais não são fiscalizados? Porque as
notificações em Matupi – que, na prática, se tornou uma cidade – precisariam do
apoio da Polícia Federal. Os servidores têm medo. “Não dá para entregar uma notificação de que a pessoa tem de sair
em 15 ou 30 dias sem a presença da polícia”, explicou Terezinha.
Ou
seja: se há uma banda podre do Incra, há também uma banda omissa – ou refém de
uma violência estrutural. Mais que isso, tivemos desde 1985 uma sucessão de
governos omissos. O caso acima mostra que o problema vai muito além das
possibilidades do Incra. Para fazer as leis em nosso Velho Oeste faz-se
necessária uma política de governo. Conjunta. Não se combate crime organizado –
e o nosso campo está historicamente tomado por ele – com fiscais isolados do
Incra ou do Ibama. Eles não são super-heróis.
O papel da Rede Globo
Sobre
a reportagem do Fantástico, cabe assinalar que a Globo merece todas as
críticas, como defensora de privilégios econômicos. Mas a reportagem está
correta, no sentido de não trazer nenhum dado falso. O próprio MST elogia a
iniciativa da CGU e pede que os usurpadores sejam punidos. Demonizar a
emissora, no caso, significa brigar com os fatos. A questão é observar como
esses dados serão capitalizados pelas forças políticas – dentro e fora do
Congresso.
A
reportagem, por exemplo, dá ênfase ao caso de um assentado irregular que seria
filho de um assessor do deputado Vicentinho, do PT paulista. Que ele seja
punido. Mas cabe assinalar que os políticos beneficiados por esse esquema não
costumam ser do PT – ainda que o partido não esteja excluído dessa farra. Ou
seja: é preciso detalhar mais os dados e mostrar que a ocupação irregular de
terras, no Brasil, é um fenômeno suprapartidário. Dela participam os filhos do
MDB e da Arena. O PMDB. O PSDB. O DEM.
A segunda ressalva fica por conta da inexistência de reportagens
similares sobre o mencionado e violento processo histórico de roubo de terras
públicas no Brasil, a grilagem. O professor Umbelino de Oliveira, por exemplo,
é um dos que acompanham o tema com atenção. “Metade dos documentos de posse de terra no Brasil é ilegal“,
declarou ele nessa entrevista à CartaCapital. Terá fôlego a imprensa brasileira
para mostrar – com a indignação que lhe é peculiar em outros temas – o
gigantesco processo de furto e roubo do território nacional?
Em pauta, a Reforma Agrária
Vale
lembrar que a reforma agrária está longe de ser algo de outro planeta. Ela faz
parte do capitalismo. Como diz o nome, não se trata de revolução – como
defende, por exemplo, a Liga dos Camponeses Pobres. Foi feita na Europa, em
países centrais desse modo de produção. No Brasil, já foi utilizada até como
espantalho para justificar um golpe – o de 1964. Com a participação decisiva da
imprensa. Como se não bastasse, e mais ainda no governo Dilma Rousseff, a
reforma agrária ocorre desde 1985 em uma escala vergonhosa.
De
nada adianta tapar o sol com a peneira: que os dados da CGU sobre o Incra
ajudem a motivar uma grande investigação nacional sobre a propriedade de terras
no Brasil. Que a Justiça (não somente a CGU) fiscalize a usurpação dos lotes da
reforma agrária pelos representantes de nosso poder econômico e político:
fazendeiros, madeireiros, comerciantes de terras. Sem paralisação, como querem
os ruralistas. E que a reforma agrária beneficie somente quem tem de ser
beneficiado: os camponeses. E não parasitas e estelionatários.
*Publicado originalmente no
blog Outras Palavras
Leia na página do MST: Nota do MST sobre as ocupações irregulares de lotes da Reforma Agrária