Negociações do Ministério da Justiça com povos Guarani e Kaigang acende sinal vermelho sobre rumos dos direitos humanos no País
Por Marcelo Zelic e Jair Kriscke*
As declarações do ministro da Justiça José
Eduardo Cardozo sobre as “negociações”, que realizou recentemente no Rio Grande
do Sul com os povos Guarani e Kaingang, para resolver o conflito de terras que
se arrasta há décadas neste estado, acende o sinal vermelho para aqueles que se
preocupam com os rumos dos direitos humanos no Brasil.
A solução encontrada é de estarrecer:
retirada de direitos para os Guaranis e intimidação do movimento Kaingang com a
prisão de suas lideranças.
Segundo o site da Fundação Nacional do Índio a situação da terra indígena de Mato Preto foi reconhecida
como de ocupação tradicional do povo Guarani no Rio Grande do Sul, sendo
portanto constitucionalmente uma terra declarada indígena, aguardando somente
os procedimentos finais do executivo para sua demarcação, homologação e a
consequente desintrusão dos invasores que usurparam os direitos Guaranis a
estas terras no passado.
Expulsos de suas terras na década de 50, as famílias Guaranis
vivem acampadas na beira da estrada RS-135 desde setembro de 2003, travando uma
dura luta pela sobrevivência, manutenção de sua cultura e demarcação de suas
terras, cujo estudo de identificação foi realizado pela antropóloga Flávia de
Melo, aprovado pela FUNAI, a quem cabe por direito a realização destes estudos
e foi reconhecido através da Portaria n º 2.222 do Ministério da Justiça em
21/09/2012. Tudo realizado como previsto na Constituição do nosso País.
Pelo “ajuste de direitos” anunciado em entrevista coletiva sem a
presença das lideranças indígenas da região, o Ministério da Justiça, que
deveria zelar pelo cumprimento da Constituição e garantir os direitos
indígenas, reduz as terras do povo Guarani de Mato Preto em quase 85% de sua
área declarada.
Qual o contexto desta “mediação de conflito” realizada pelo
Ministro da Justiça?
A “negociação” com os Guaranis deu-se algumas semanas depois de
uma controvertida operação da Polícia Federal, que prendeu no dia 09 de maio
sete lideranças Kaingang, convidadas a negociar com o estado brasileiro solução
para o conflito em suas terras. Saíram presos logo após o início da reunião,
sob acusação, sem provas, de que teriam participado do assassinato de dois
agricultores gaúchos em conflitos de terra na região, pegando o Governo do Rio
Grande Sul, anfitrião da reunião, de surpresa, segundo sua assessoria.
A comunidade Guarani que há mais de 10 anos vive precariamente na
beira da estrada, numa correlação de força desigual, sob impacto de forte
preconceito, não aguentando mais ameaças verbais
e convivendo com constantes tiros para o alto disparados por agricultores, numa
ação intimidatória de persuasão pelo medo, acabou por ceder ao Ministro
conforme declarou o cacique de Mato Preto, Joel Kuaray ao
jornalista Leonencio Nossa: "A gente aceita diminuir nossa
terra porque hoje estamos na beira da linha do trem". "A gente tem o
sentimento de que as ameaças vão diminuir, porque a redução da terra vai exigir
a retirada de um número menor de agricultores da área."
O que acontece a um país quando seu ministro da Justiça se coloca
acima da Constituição e decide “ajustar direitos”? Que instabilidades
jurídicas para os direitos dos povos indígenas geram tal ação política do
governo federal, promovendo “acordos” de revisão de extensão de áreas
declaradas? Não deveria o Estado reafirmar o direito constatado e garantir a
sua efetividade, mesmo que emperrada a questão nos tribunais?
Como deve agir a cidadania quando se constata que o “ajuste de
direitos” celebrado de forma leonina, fere preceitos legais e beneficia o lado
não coberto pela Constituição? É este um exemplo de país que respeita e
trabalha para o desenvolvimento dos direitos humanos e o zêlo pelas populações
originárias? Ou aponta o advento de uma nova era do manda quem pode, obedece
que tem juízo?
Ao se aproveitar da vulnerabilidade física e emocional de uma
comunidade, para “celebrar” um acordo,
reafirmamos, leonino, lesivo aos direitos constituicionais dos Guaranis,
o Ministro da Justiça José Eduardo Cardozo fere ou não fere o Código de Conduta da Alta
Administração Federal? Irá o Ministro da Justiça assinar uma portaria de
desmarcação de terras indígenas, anulando a portaria nº 2.222, sobre as terras
Guaranis de Mato Preto, assinada por ele mesmo em setembro de 2012? É ética tal
solução encontrada?
Diminuir 85% das terras dos Guaranis do Rio
Grande do Sul, reproduz a pratica política de confinamento aplicada a seus
parentes no Mato Grosso do Sul nos anos de 1970. O Estado brasileiro em 2014
busca assim a solução do problema? Quanto tempo levará para o crescimento
populacional desta comunidade apresentar o quadro desolador e desagregador de
confinamento em que vivem os Guarani-Kaiowá nas reservas a eles impostas
durante a ditadura militar? Vale registrar que somente em 2013 73 indígenas se
suicidaram no Mato Grosso do Sul. Isto não é um caso de saúde pública gerado
pelo confinamento em que vivem? Reconhecer e demarcar os 4.230 hectares da
Terra Guarani de Mato Preto não é o bom caminho da justiça social?
Em tempos pré-eleitorais, onde tudo se
distorce e é usado por aqueles que almejam o poder, devemos calar frente às
violações de direitos humanos cometidas pelo Estado? Em que este silêncio
eleitoral beneficiará os direitos dos povos indígenas? Quem perde quando este
tipo de discussão fica relegado a segundo plano e se torna objeto de muito
patrulhamento ideológico sobre quem as levanta? Se por uma estratégia eleitoral
é preciso calar sobre violações de direitos, perde o País.
Frente a tantas violações de direitos humanos
contra os povos indígenas brasileiros, apontadas nos estudos da Comissão
Nacional da Verdade, não deveria a título de reparação, o Estado brasileiro
rever suas praticas e mudar de conduta, demarcando suas terras e cuidando do
bem estar destes povos? Repará-los é preciso, fundamentalmente um dever do
Estado e de nossa sociedade. Reparar nossos graves erros para com eles é
demarcar suas terras e não ajustar seus direitos.
No campo dos direitos humanos é fundamental
enquanto nação enfrentarmos estas questões, ainda mais em períodos eleitorais,
para evitarmos mais retrocessos como a PEC 215, a portaria 303 da AGU e o
desmonte da FUNAI, efetivando o estado democrático de direito em nosso
País.
*Marcelo Zelic é
vice-presidente do Grupo Tortura Nunca Mais SP, membro da Comissão
Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo e coordenador do projeto Armazém Memória
*Jair Kriscke é presidente do Movimento Justiça e Direitos Humanos. Publicado originalmente no sítio da revista Carta Capital