Um grave erro de planejamento do Ministério de Minas e Energia impedirá
que parte da energia produzida até o fim do ano pelas duas usinas do rio
Madeira, em Rondônia, seja escoada para o restante do país. Se toda a geração
de Santo Antônio e de Jirau for transmitida para o sistema interligado
nacional, há risco de queima das turbinas instaladas, o que causaria prejuízos
gigantescos. Juntos, os dois empreendimentos estão orçados em quase R$ 30
bilhões. A restrição só será resolvida em dezembro, com a instalação de
equipamentos que estavam fora do projeto original das usinas. Enquanto isso, a
alternativa é limitar o escoamento a um nível muito inferior ao previsto.
Os sistemas de supervisão e controle dos equipamentos das usinas e do
complexo de transmissão não são compatíveis. A falha foi detectada no fim de
2010, mas só em junho deste ano ela apareceu em um documento público: a ata do
Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico. Na reunião, a Agência Nacional de
Energia Elétrica (Aneel) registra "preocupação" com carta recebida do
Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) na qual o problema é relatado. Até
então, a falha vinha sendo tratada por meio de ofícios, sem divulgação pública,
provocando constrangimento entre as empresas envolvidas e órgãos do governo em
torno da dimensão do erro identificado.
A hidrelétrica de Santo Antônio, no rio Madeira, já tem 14 turbinas em
operação. Jirau, usina cujas obras começaram um pouco mais tarde e sofreram com
atrasos, deverá ligar sua primeira máquina no dia 21. Um dos dois circuitos que
formam o sistema de transmissão, conectando Porto Velho (RO) a Araraquara (SP),
tem previsão de iniciar sua operação comercial em outubro.
Esses projetos de porte gigantesco, que foram licitados entre 2007 e
2008, estão recebendo investimentos totais de R$ 36 bilhões e representam um
esforço sem precedentes para transformar o potencial hidrelétrico da Amazonia
em energia. Para tirá-los do papel, as concessionárias responsáveis precisaram
driblar a oposição de ambientalistas e enfrentar uma revolta de trabalhadores,
em Jirau. Só não imaginavam ser surpreendidas com um erro grave de
planejamento: os sistemas de proteção e controle dos equipamentos - na geração
e na transmissão - não conversam adequadamente entre si.
O erro provoca um risco de prejuízo incalculável: em situações de
estresse do sistema, as turbinas de Santo Antônio e de Jirau podem entrar em um
processo conhecido tecnicamente como "autoexcitação" das máquinas,
caso não sejam respeitados limites para o escoamento da energia produzida. Em
português claro: as máquinas das duas megausinas do rio Madeira correm
simplesmente o risco de queimar.
Para evitar que isso ocorra, o primeiro dos dois circuitos da rede de
transmissão deverá seguir rigidamente uma restrição. Mesmo tendo capacidade
para escoar 3.150 megawatts (MW) de energia das duas usinas para o sistema
interligado nacional, terá que limitar a transferência de eletricidade para o
sistema interligado nacional a 700 MW. Outros 400 MW das hidrelétricas poderão
ser escoados, por meio de um mecanismo alternativo, para o subsistema
Acre-Rondônia. Ao todo, são 1.100 MW. Ou seja, até a solução do problema, a
geração de energia em Santo Antônio e de Jirau deverá ficar comprometida.
Ninguém tem certeza do volume de energia que as hidrelétricas estarão
produzindo em dezembro, quando está prevista uma solução para o problema,
porque o cronograma de obras planejado pelas empresas acabou atrasando. Mas
esse volume certamente estará acima do limite da rede de transmissão. Em nota
enviada ao Valor, o Ministério de Minas e Energia prevê a operação de 26
turbinas em Santo Antônio, totalizando 1.905 MW de potência instalada. Jirau,
pelas projeções do ministério, terá 15 máquinas operando e 1.125 MW de potência
no fim do ano. Juntas, terão 3.030 MW, em dezembro.
Mesmo considerando que não será o período de pico das chuvas, com as
turbinas sem trabalhar a pleno vapor, tudo indica que uma parte da capacidade
de geração das usinas vai ficar sem uso porque a energia não poderá ser escoada
para o restante do país.
Para entender a origem do problema, é preciso recorrer a um almanaque de
vocábulos da engenharia, que dão nome a operações importantíssimas dentro do
funcionamento de um complexo como o do Madeira.
O complexo de transmissão do Madeira foi licitado em novembro de 2008,
depois das duas usinas. Ele é composto por duas estruturas semelhantes e
paralelas, que percorrem um trajeto de 2.375 quilômetros, conhecidas como
circuito (ou bipolo) 1 e circuito 2. Cada estrutura, além da linha de
transmissão, tem uma estação conversora de energia em ambas as pontas - uma em
Porto Velho e outra em Araraquara.
As linhas de transmissão podem usar duas tecnologias diferentes:
corrente contínua e corrente alternada. No caso do complexo do Madeira, o
leilão não especificava nenhum dos dois e coube ao vencedor escolher. Foi
escolhida a corrente contínua, mais barata e apta para grandes distâncias, que
não era usada em uma conexão importante no Brasil desde a hidrelétrica de
Itaipu.
Na elaboração do projeto, em 2010, detectou-se que havia a necessidade
de instalar um equipamento chamado "master control" nas estações
conversoras. Só que o "controle mestre", fornecido pela multinacional
sueca ABB, não dialoga corretamente com os sistemas de proteção das duas usinas
- fornecidos pela alemã Siemens. A coordenação do sistema de transmissão com as
unidades geradoras envolve respostas de milésimos de segundo. Com os
equipamentos atuais, há falta de coordenação entre as duas pontas, na
velocidade necessária.
É isso o que provoca o risco de "autoexcitação" das turbinas.
Esse problema será corrigido apenas em dezembro, na melhor das hipóteses, com a
instalação de outro equipamento caro e moderno, que foi encomendado pelas
concessionárias de Santo Antônio e Jirau à sueca ABB, no fim de 2012. Trata-se
do GSC (sigla em inglês para controle das estações geradoras). Ele custa
aproximadamente R$ 14 milhões e estão sendo compradas duas unidades - uma para
cada usina.
Agora, há uma corrida contra o relógio, que preocupa as autoridades do
setor. Em ofício encaminhado pelo Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS)
ao Ministério de Minas e Energia, datado de 1º de julho e ao qual o Valor teve
acesso, faz-se um apelo para que a Receita Federal dê tratamento prioritário ao
desembaraço aduaneiro do equipamento sueco. Ele deverá chegar, até novembro, no
aeroporto internacional de Viracopos (SP). O ONS alerta que normalmente a
liberação alfandegária é feita em seis dias, mas relata casos em que houve
demora de até um mês para o desembaraço, manifestando o temor de mais atraso
ainda na solução do problema.
O erro no planejamento foi verificado no fim de 2010, mas só em junho
deste ano apareceu em um documento público: a ata do Comitê de Monitoramento do
Setor Elétrico (CMSE), que se reúne mensalmente, em Brasília. Na reunião, a
Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) registra "preocupação"
com carta recebida do ONS na qual o problema é relatado. Até então, a falha
vinha sendo tratada por meio de ofícios, sem divulgação pública, provocando
constrangimento entre as empresas envolvidas e órgãos do governo em torno da
dimensão do problema.
O erro é atribuído ao ministério, que nunca fez nenhuma exigência sobre
os sistemas de proteção e controle, nos editais de licitação dos
empreendimentos.
Questionado, o ministério enviou à reportagem uma explicação detalhada
sobre a falha, sem apontar responsabilidades. A Aneel, que exerce as funções de
fiscalização, recusou todos os pedidos de entrevista. Só o ONS aceitou se
pronunciar. "Identificou-se tardiamente a necessidade de instalação do GSC
na geração", reconheceu o diretor-geral do órgão, Hermes Chipp. Segundo ele,
há um grupo dedicado a monitorar cronogramas e conciliar os processos
necessários para resolver a questão. Ele aposta em uma solução até dezembro e
lembra que, devido ao atraso também na entrada em funcionamento das usinas e da
própria linha de transmissão, o prejuízo não será tão grande. "Um atraso
acabou ajudando o outro."
Fonte: Valor Econômico