Forças
Armadas serão utilizadas contra a população civil e irão atuar em meio a
conflito por terras entre indígenas e não indígenas
A
presidenta Dilma Rousseff decidiu pela suspensão da ordem e a implantação do
"estado de exceção" para lidar com o crescente conflito por terras. A
medida segue o trâmite legal que autoriza a "exceção", estabelece um
período no tempo (trinta dias), e no espaço: o Sul da Bahia. O motivo é um
problema de ordem civil, que decidiu-se enfrentar por braço militar: a regularização
das terras indígenas. O uso do Exército contra civis foi determinado para
"prevenir o agravamento dos conflitos que vêm ocorrendo entre índios
tupinambás e produtores rurais", publicado
na segunda-feira 17 de fevereiro, seguindo Portaria
do Ministério da Defesa que dispõe sobre a Garantia da Lei e da Ordem.
Cerca de 500 soldados foram deslocados. As Forças Armadas vão agir de uma forma
ampla na região de Buerarema. A medida de "exceção" é valida, a
princípio, até 14 de março.
O Exército,
junto da Polícia Federal e da Força Nacional, tem sido frequentemente utilizado
pela presidenta para tratar questões indígenas. Em seu mandato, a Polícia
Federal protagonizou ações que acabaram levando à morte de dois indígenas,
Adenilson Kirixi Munduruku (7 de novembro de 2012, no Pará), e Oziel Terena (30
de maio de 2013, no Mato Grosso do Sul). Ambos crimes terminaram com as forças
de Estado protegidas pela impunidade.
Em dezembro do
ano passado, no sul do Amazonas, indígenas Tenharim buscaram refúgio em um
quartel do Exército para se protegerem de um genocídio organizado pela elite
local, que incitou o ódio racial contra os índios e mobilizou uma multidão para
ataca-los – algo que lembra o que se fazia, na mesma região, durante as correrias dos seringais. As investigações da
Polícia Federal contra essa tentativa de se produzir um massacre, um brutal
crime contra a humanidade, tampouco chegaram a conclusões sobre culpados.
O que ocorre
agora na Bahia é um desenrolar de uma crise que se estende ao longo dos últimos
anos no que toca aos direitos indígenas: a incapacidade do governo de fazer
cumprir a Constituição. E a saída escolhida é a mais perigosa.
A medida foi
condenada pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI) que, em
comunicado, alertou para o perigo da militarização do conflito e
expôs que a verdadeira justificativa utilizada pelo Planalto para determinar a
Exceção seria a de expulsar os indígenas das terras que reivindicam, em vias de
conclusão de processo administrativo de regularização: "Este argumento não
é verdadeiro, já que muitos dos ataques contra a população indígena partem de
não índios contrários à conclusão do processo administrativo. Por outro
lado, muitos dos pequenos agricultores já afirmaram que apenas aguardam as
indenizações para saírem das terras."
No meio desse
debate, o uso das forças armadas visa intimidar e despolitizar o problema,
trazer para uma esfera autoritária a possibilidade de decisão suprema que se
impõe com a garantia da força maior. Nesse processo, inúmeros direitos
individuais são ameaçados, principalmente os direitos dos mais vulneráveis.
A literatura
sobre o Estado de Exceção é um tanto atual no pensamento critico,
principalmente pelas contribuições do filósofo italiano Giorgio Agamben, e da
filósofa belga Chantal Mouffe. A discussão remonta ao teórico nazista Carl
Schmitt, que produziu uma influente e importante reflexão sobre o tema. Para
Schmitt, o estudo da exceção se revela mais interessante do que sobre a própria
regra em si. "A regra não prova nada: a exceção prova tudo." É pela
exceção que o poder real se mostra como um mecanismo, e se torna a regra pela
repetição. O fim seria a ditadura.
Agamben usou a
teoria para, além de abrir uma grande janela reflexiva, descrever os tempos de
Bush e da guerra civil global. É uma medida que ele situa entre o político e o
legal, uma terra sem dono. E, o que é mais grave, alertou, indo muito além da
interpretação de Schmitt: "o estado de Exceção tende a se tornar cada vez
mais um paradigma dominante de governo na política contemporânea".
O governo
federal editou, em dezembro passado, o manual chamado "Garantia da Lei e
da Ordem" (Portaria Normativa número 3, do Ministério da Defesa, também
conhecida como GLO). O manual foi duramente criticado e sofreu uma revisão,
sendo a segunda edição publicada em fevereiro 2014. A regra dispõe sobre o uso
das Forças Armadas, de forma excepcional, e portanto, de suspensão da própria
ordem, para a "garantia da lei e da ordem", assim como a suspensão de
direitos civis, em situações de "não guerra". A exceção é apresentada
como uma medida constitucional, citando o artigo 142, com referências vagas a
"razoabilidade", "proporcionalidade" e
"legalidade". Há países onde o "estado de Exceção" está
previsto na lei, como no Brasil (considerando a GLO uma norma de "exceção")
e na França, e onde ele não está previsto em lei.
Para todos os
fins, de acordo com a GLO, basta a decisão soberana da "exceção", ou
seja, basta a presidenta determinar. A decisão compete exclusivamente ao
Presidente da República, em decisão comunicada ao Ministro da Defesa. E não é
preciso, como no caso de guerra, ser consultado o Congresso Nacional.
O fato de
estar na lei implica algumas regras, o que pode parecer contraditório uma vez
que a própria suspensão da regra é determinada pela regra. A "garantia da
lei e da ordem", como aplicada agora, é uma revelação da incapacidade do
governo em resolver as disputas pelas vias legais, pelos processos
administrativos e judiciais, como deveria ocorrer a regularização das terras
indígenas.
Essa norma GLO
é algo assustadora para os que esperam uma vida longa à democracia. Na primeira
versão, de 2013, os inimigos na GLO eram definidos como "forças
oponentes", apresentados de forma distinta de um "inimigo
militar", que deve ser eliminado. Entre as "forças oponentes"
descritas haviam formas políticas de reivindicação coletiva de direitos:
"movimentos e organizações". Os Tupinambá, assim como os Tenharim,
assim como um grupo de amigos no Facebook, seriam todos organizações e
movimentos. Entre as ameaças graves havia, por exemplo, a de "paralisação
de atividades produtivas".
A segunda
edição, de 2014, feita após os vários protestos da sociedade contra essa
Portaria do Ministério da Defesa, retirou as referências às forças oponentes e
aos movimentos e organizações. E no que toca às "ameaças", agora
lê-se: "A tropa empregada numa Op GLO poderá fazer face a atos ou
tentativas potenciais capazes de comprometer a preservação da ordem
pública ou ameaçar a incolumidade das pessoas e do patrimônio."
Estas
expressões genéricas deixam brechas para que tudo seja decido pelo
"soberano", dando mais margens ainda para a "exceção" e
para a força da decisão política em mão militar. Qual a legitimidade de um
militar para definir, em operação contra civis, o que é uma tentativa potencial
de comprometer a ordem pública, ou uma ameaça a incolumidade de pessoas, no
meio de um conflito entre um povo indígena e não indígenas no sul da Bahia?
A referência anterior deixava claro os inimigos e os atos a serem combatidos: as "forças oponentes", os "movimentos e organizações". O poder discricionário agora aumentou e atenta mais gravemente aos direitos humanos. Nesse caso, o risco maior é, como sempre ocorre nos casos de exceção, aos mais vulneráveis, ou sejam, as "minorias".
O país vive um
momento de ódio às minorias, que é mobilizado por aqueles que não querem que
seus privilégios sejam tocados. Quem são as "minorias" (que podem ser
a verdadeira "maioria da população")?
Estas
"minorias" que reivindicam direitos são equivalentes ao "tudo o
que não presta", segundo definiu o deputado federal ruralista Luis Carlos
Heinze, do PP/RS, em vídeo divulgado pela Mobilização Nacional Indígena e com
ampla circulação nas redes sociais. "Tudo o que não presta" são os
"índios, quilombolas, gays e lésbicas".
Na imprensa,
os problemas sociais têm sido "racializados" em textos de
articulistas e jornalistas enviados para essas áreas, na busca de
"traços" raciais que impliquem em deslegitimar direitos políticos,
"traços" raciais que sirvam para desconstruir identidades, traços que
são medidos como se fazia na antiga craniologia.
Nesse mesmo
sentido racialista foi descrita a viúva de Ivan Tenharim, líder tenharim morto
(morte matada ou por acidente, as investigações da Polícia Federal não foram a
fundo), por enviado da Folha de S. Paulo para a zona de conflito: "uma
mulher miúda com poucos traços indígenas". A descrição racial foi
aproveitada, em seguida, por um colunista do mesmo jornal para sustentar não
tratarem-se estes entrevistados pelo repórter, com base em suas descrições, de
elementos da categoria "índios" – como se a discussão anatômica
girasse em torno de alguma espécie não humana.
Os Tupinambá
são frequentemente descritos e categorizados, colocados em um mapa de cores, de
réguas métricas, para aparecerem como não portadores de "traços
indígenas" – de forma a "animalizá-los" (como diria Frantz Fanon
em Os Condenados da Terra),
e deslegitimar suas reivindicações políticas. Na revista Veja os Tupinambá
foram apresentados como "Os novos canibais", que usam cocares de "penas
de galinha", são "negros" e "professam o candomblé",
"tribo composta de uma maioria de negros e mulatos, mas também tem brancos
de cabelos louros".
O uso
sistemático da Força Nacional nos trabalhos de estudo da implantação de usinas
hidrelétricas dentro do território Munduruku, contra a vontade dos índios e em
desrespeito à Constituição e convenções internacionais das quais o país é
signatário, mostra que, pelo menos no que toca aos direitos indígenas, o
"Estado de Exceção" é uma violenta realidade cotidiana, não apenas
teórica. Nesse caso, o CIMI trata da "militarização como um instrumento
político", e fala do "diálogo com a 'ponta da baioneta' no pescoço
dos povos indígenas".
A solução
encontrada pelo governo para todos esses problemas de racismo, xenofobia,
intolerância, ameaça de genocídio: o Exército, a Força Nacional, a Polícia
Federal, a "Exceção".
Essa
"exceção" formalmente autorizada na Bahia com o envio do Exército, a
partir da regulamentação recente da Portaria do Ministério da Defesa, e com a
iminência da aprovação de uma nova lei "antiterrorismo" feita sob
medida para um ano que se anuncia de fortes turbulências políticas, é uma
profunda ameaça à democracia. Mais grave: pode se revelar uma nova técnica
permanente de governo, como sugere Agamben