segunda-feira, 31 de março de 2014

A ditadura que não diz seu nome

O imaginário sobre a Amazônia e os povos indígenas, forjado pelo regime de exceção, é possivelmente a herança autoritária mais persistente na mente dos brasileiros de hoje, incluindo parte dos que estão no poder. E a que mais faz estragos na democracia


Por Eliane Brum*


“Quando se quer fazer alguma coisa na Amazônia, não se deve pedir licença: faz-se.”
A declaração é do gaúcho Carlos Aloysio Weber, ex-comandante do 5oBatalhão de Engenharia e Construção, um dos primeiros a instalar-se na Amazônia na ditadura civil-militar. Em 1971, ele foi entrevistado para um projeto especial da revista Realidade sobre a Amazônia. O repórter fez ao coronel, apresentado como “lendário” em Rondônia, a seguinte pergunta: “Como é possível fazer as coisas na Amazônia e transformar a região?”. O coronel respondeu:
- Como você pensa que nós fizemos 800 quilômetros de estrada? Pedindo licença, chê? Usamos a mesma tática dos portugueses, que não pediam licença aos espanhóis para cruzar a linha de Tordesilhas. Se tudo o que fizemos não tivesse dado certo, eu estaria na cadeia, velho.
É uma declaração de sentidos explícitos – pelo tom em que foi dita, pela certeza da impunidade, pelo orgulho da falta de limites. Pela forma como o coronel vê a Amazônia como território a ser invadido e dominado pela força. O que a ditadura fez na Amazônia, tão longe dos centros de poder e das vozes de resistência, e o que fez com os povos indígenas, ainda precisa ser investigado com muito mais profundidade. Os horrores que já foram descobertos podem ser só a superfície. Mas, se o passado pede luz, o presente precisa ser iluminado com urgência.
Há vários entulhos autoritários corroendo nossos dias, como a Polícia Militar (que, se tem uma história anterior ao golpe de 1964, ganhou mais poderes na ditadura e os mantêm na democracia) e o “auto de resistência” (que serve para a polícia justificar a execução de suspeitos ou desafetos). Mas é no olhar tanto sobre a Amazônia quanto sobre os povos indígenas, ribeirinhos e quilombolas que o Estado autoritário persiste com mais força e menos resistência na mente da maioria dos brasileiros. Persiste da forma mais perigosa, porque traveste como verdade aquilo que é apenas uma imagem a serviço de interesses políticos e econômicos específicos. Talvez em nenhum outro campo o regime de exceção tenha conquistado tanto êxito ao impor seu ideário. E o mantê-lo na democracia.
A ditadura civil-militar enraizou no imaginário dos brasileiros a visão de que a floresta amazônica é um território-corpo para exploração. Se a lógica do explorador/colonizador norteou historicamente a “interiorização” do país, é na ditadura que ela ganha um pacote ideológico mais ambicioso. As peças de propaganda que o regime produziu continuam vivas, mesmo para aqueles que nasceram depois dela, como os slogans “Integrar para não entregar” e “Terra sem homens para homens sem terra”. É na ditadura que é cimentada a ideia da Amazônia como “deserto verde”, ignorando toda a riqueza humana, a diversidade cultural e biológica que lá existia, ignorando a vida. A disseminação dessa fantasia é tão bem sucedida que se torna verdade. E se torna uma verdade que continua verdade após a redemocratização. Tão verdade que cria uma realidade paradoxal: uma ex-guerrilheira, presa e torturada pelo regime, é quem, na democracia, leva adiante o modelo de desenvolvimento da ditadura para a Amazônia.
Leia todo o artigo na coluna de Eliane Brum para o sítio do El País – Brasil.
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