O apoio à lógica do agronegócio e dos latifundiários, de desqualificar o direito à terra das comunidades tradicionais, indígenas e famílias camponesas, é explicito e permanente na maioria dos grandes veículos de comunicação brasileiros. Neste último mês, os periódicos impressos reforçaram esta certeza, a partir da publicação do artigo “Contra a Lei”, da senadora Kátia Abreu, no dia 22 de fevereiro, na Folha de S. Paulo, e do editorial do jornal O Estado de S. Paulo “Drible do Judiciário”, no dia 3 de março. As duas publicações criticam, com parcos argumentos e desconsiderando o que aponta a Constituição Federal, as alternativas de mediação de conflitos fundiários no campo.
Na
semana seguinte à publicação do artigo da senadora, o professor Carlos Marés,
doutor em Direito pela UFPR e ex-procurador geral do Estado do Paraná, enviou o
artigo abaixo para a Folha de S. Paulo, na expectativa de apresentar elementos
sobre a relevância da mediação de conflitos no campo no contexto atual. A
recusa do veículo veio uma semana depois, sob justificativa de haver limitada
disponibilidade de espaço.
Assim
como artigo da senadora defende os direitos apenas de uma parcela da sociedade,
limitando o entendimento do direito à terra aos grandes proprietários, a
atitude da Folha de S. Paulo, reiterada diariamente por outros grandes
veículos, também reafirma quem pode se manifestar nos meios de comunicação e o
interesse de qual parcela da sociedade eles representam.
Confira
o artigo:
Conflitos
Agrários: quem quer solução?
Por
Carlos Marés*
A
Secretaria de Reforma do Judiciário (SRJ) do Ministério da Justiça acaba de
publicar o resultado de um interessante estudo sobre soluções alternativas para
os conflitos agrários e tradicionais. O Estudo, coordenado e desenvolvido por
professores integrantes de Programas de Pós-graduação, teve a parceria da
organização Terra de Direitos e do Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento (PNUD).
Estes
conflitos, em geral envolvendo proprietários de terras e comunidades
tradicionais ou de pequenos agricultores familiares, são traumáticos,
invariavelmente demorados e sempre judicializados.
A
pesquisa partiu da análise de quatro casos concretos, dois de camponeses, um de
indígenas e um de quilombolas. Estes conflitos se caracterizam pelo fato de um
lado estar uma coletividade que usa e precisa usar a terra e do outro a
propriedade privada. Da análise resultou que as soluções que o Estado
brasileiro oferece acabam sempre judicializadas e decidias pelos estreitos
limites do formalismo e legalismo, que não atendem a princípios constitucionais
como a erradicação da pobreza e da marginalização e a promoção do bem de todos,
entre outros.
De
fato, o Poder Judiciário, tal como está estruturado, não consegue interpretar
princípios e aplicá-los, parando num formalismo que, longe de solucionar os
conflitos, os estendem para um tempo mais longe, mantendo um estado de
injustiça, de pobreza e de marginalização, quando não o amplia.
A
pesquisa demonstra que existe um instrumental jurídico e uma vontade nacional e
internacional (arcabouço normativo de leis e tratados) para uma solução
mediada, negociada de tal forma que se chegue a uma solução para as origens do
problema. É um estudo sensato, sem críticas morais a sistemas ou órgãos, apenas
constatando as dificuldades de implementação dos princípios pelos quais está
constituído o estado brasileiro.
Apesar disto, a Senadora Kátia Abreu, em nome dos proprietários de
terras, escreve um insidioso artigo criticando a pesquisa, seus financiadores,
realizadores e autoridades presentes ao lançamento de seu resultado. Talvez por
não ter entendido o teor de uma pesquisa científica, talvez pelo só espírito de
emulação, considera que o resultado é um desrespeito às leis do país e uma
desconsideração para com o Judiciário. Aliás, pelo nome da Secretaria de Estado
que promoveu a pesquisa (Secretaria de Reforma do Judiciário) fica
desconstruído o argumento da senadora e presidenta do CNA que também lançou uma
nota ácida.
Ao contrário, a razão da pesquisa é exatamente analisar o que se
deve fazer para implementar o que a Constituição brasileira determinou em 1988.
Não só os conflitos agrários, quem sabe os mais visíveis, mas todos os
conflitos e mazelas sociais deveriam ser objeto de estudo visando sua
superação. O que a pesquisa mostra é que tudo está sendo judicializado e que há
instrumentos para se pensar em soluções harmônicas, sempre mais justas e
adequadas. Mas se a cabeça dos dirigentes dos proprietários de terras não está
preocupada com soluções, dificilmente chegaremos a alternativas e o conflito
deve continuar.
Realmente, enquanto faltar
sensibilidade humana a uma das partes que tudo vê a partir do prisma do lucro,
o trabalho do Estado, como conciliador, fica evidentemente prejudicado, nem
haverá reforma do Judiciário, nem soluções alternativas. Vai imperar o
radicalismo e sectarismo desejado pela Senadora.
*Carlos Marés é doutor em
Direito pela UFPR, professor da PUC/PR e ex-procurador geral do Estado do
Paraná. Artigo publicado no sítio da Terra de Direitos após ter publicação
rejeitada pela Folha de São Paulo.