quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Uma madrugada em meio à luta de classes na Amazônia


Amaral Lima**

É uma hora da manhã da madrugada de sábado (21) e uma primeira rajada de metralhadora é disparada contras as famílias organizadas pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) do acampamento Frei Henri, no sudeste paraense.

“Essa madrugada promete”, diz um dos acampados que faz a segurança do acampamento. Uma e meia da manhã os disparos se tornam incessantes e é hora de ter atenção redobrada para ninguém se ferir e evitar que o acampamento seja invadido pelos fazendeiros e seus jagunços contratados.

Os tiros são feitos da entrada da Fazenda Fazendinha, de uma guarita de madeira do alto de um morro, que serve de local estratégico para pistoleiros e fazendeiros mirarem nos barracos das famílias postados a cerca de 300 metros abaixo. O cenário é de guerra, várias trincheiras são montadas no entorno do acampamento e mais de 70 pessoas, entre homes e mulheres, estão intocados na mata estrategicamente para proteger o local.

Nos barracos de madeira, as famílias deixam as redes e improvisam colchões no chão, para se defenderem das balas. Tudo isso acontece às margens da movimentada rodovia PA-150, que liga Marabá a Parauapebas.

A reportagem do Brasil de Fato  está numa das trincheiras, de onde é possível observar que o balanço das folhas das árvores e a poeira que levanta do chão não são efeitos do vento, mas sim da chuva de chumbo que cai sobre o acampamento.

Na trincheira elaborada por uma série de pneus e sacos de areia, está Tonico*, deitado ao chão com uma caixa de fogos de artifício, única “arma” utilizada pelas famílias para afugentar os jagunços que chegam às cercanias da ocupação. “Eles vão passar a noite atirando, e nós ficamos aqui, se alguém se aproximar soltamos rojões para assustá-los”, diz.


Ninguém dorme
Ao visitar algumas casas pela madrugada se constata que pouco ou quase ninguém consegue dormir. No primeiro barraco perto de umas das barreiras de proteção do Frei Henri, está Elizabeth*, preocupada. Em sua morada, apenas a fi lha de dez meses e seus outros dois filhos dormem tranquilamente. Ela e o marido passam a noite acordados temendo que algo de ruim aconteça com a família.

“Medo eu tenho, mas sair daqui, não, morávamos na cidade de Parauapebas, mas o desemprego é grande e o aluguel é caro e quem casa quer casa, né? Por isso, decidimos ocupar essa terra aqui, para melhorar nossa vida”, conta.

A filha, que dorme protegida por uma cômoda, nasceu de sete meses com vários problemas mentais devido à gravidez conturbada que Elizabeth teve. “O médico fala que ela nasceu especial porque eu sofri muito com essa situação dos fazendeiros atirando na gente toda noite”, diz.

Passam das três da manhã, os tiros continuam e numa das trincheiras do acampamento, às margens da rodovia, são soltos fogos de artifício, sinal de que há alguma situação de risco na área. Na direção onde o rojão foi solto correm vários homens e entre eles uma mulher, Maria*.

Cansada, diz que não dorme há mais de uma semana, desde que os ataques recomeçaram. Ela é uma das responsáveis pela brigada de defesa do acampamento. “Moço eu não tenho medo de morrer, não, já passei perto de morrer e não morri, então, acho que agora não morro mais.”

Maria se refere às ameaças que sofreu quando ia vender suas verduras produzidas no acampamento paras as feiras de Parauapebas. “Foi por telefone e me disseram: ‘Ou você sai da beira da estrada ou eu te mato’. Era voz de homem e disse meu nome e tudo mais.”

Largar a terra pela ameaça dos fazendeiros não passa pela cabeça dessa mulher de estatura média, cor negra, rosto manchado do sol, e uma olheira profunda. “Eu fui garimpeira na década de 1980, e faz tempo que acompanho o MST, agora quero minha terra. Só isso”, protesta Maria.


Cessando as balas
Às quatro e meia da manhã os tiros diminuem. Seu Edvaldo está de espreita na porta de seu barraco acompanhando a movimentação. Produtor de mandioca e hortaliças orgânicas, não consegue mais sair para vender seus produtos agrícolas na cidade.

“Os fazendeiros estão botando muita pressão, param as vans que transportam passageiros entre os municípios e perguntam se tem sem-terra, perseguem a gente, outro dia um pistoleiro colocou a arma na minha cabeça e mandou eu voltar para o acampamento senão ia me matar”, relata.

O dia amanhece e os tiros cessam por completo. As famílias voltam a ter, mesmo que repentinamente, um momento de paz. Em uma semana de ataque completada no sábado, apenas uma mulher e uma criança se feriram levemente por balas de raspão.

“A investida permanente dos fazendeiros fortemente armados contra o acampamento tentando fazer a expulsão das famílias na marra é crime e a polícia precisava investigar isso”, cobra o advogado da Pastoral da Terra de Marabá, José Batista Afonso.


(*nomes fictícios)
**Fonte: Brasil de Fato
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