Ana
Aranha*
Ao
revelarem que o Governo do Pará autorizou planos de manejo florestal dentro de
terra indígena, os Borari e Arapiuns foram acusados de serem “falsos índios”. O
caso fortalece a importância da auto-denominação.
“Dói, como se fossem rasgando o nosso
ventre”. Apolonildo de Souza Costa, mais conhecido como Rosí, pousa a mão sobre
a barriga para explicar o que sente ao ver barcos madeireiros escoando pilhas
de troncos pelos rios que banham a Terra Indígena Maró, noroeste do Pará.
Os outros 239 indígenas Borari e Arapiuns que vivem nesta terra também sentem,
no estômago, os impactos do desmatamento: a fome é o primeiro efeito da
degradação ambiental, consequência da fuga da caça e da dificuldade em coletar
frutas.
Como muitos representantes de povos que
foram perseguidos e catequisados pelas missões jesuítas na região, Rosí não tem
“nome de índio”. A colonização ensinou seus antepassados a esconder a
identidade. Mas o semblante altivo denuncia novos tempos e Rosí enche o peito
para se apresentar como “guerreiro-vigilante Borari”. As evidências formais
sobre a identidade indígenados habitantes da terra Maró somam 250 páginas de
estudo de identificação feito pela Funai (Fundação Nacional do Índio). A mais
contundente delas, porém, não está no papel; mas na ousada ação dos
“guerreiros-vigilantes”.
Placa feita pelo Conselho Indígena Intercomunitário Arapium Borari (Foto: Ana Aranha) |
O grupo se arrisca para combater o desmatamento dentro de sua terra. Uma vez por mês, deixam suas casas e passam dias vasculhando os 42 mil hectares da terra Maró em busca dos invasores. Quando os encontram, geralmente instalados em serrarias, os vigilantes acionam a Funai e ficam no local até uma equipe de fiscalização chegar.
Os funcionários das madeireiras não costumam reagir com violência. A reação vem depois. O segundo-cacique Odair José Souza Alves, conhecido como Dadá Borari, já recebeu ofertas de dinheiro, ameaças, perseguições e sofreu um violento atentado. “Primeiro foi uma oferta no valor de 30 mil. O madeireiro abriu a pasta na minha frente e mostrou o dinheiro”, diz Dadá.
Depois, vieram as ameaças. Até que a
violência subiu de tom e, em junho de 2007, Dadá foi sequestrado na cidade de
Santarém (sede do município onde fica a terra Maró). Ficou sete horas em
cativeiro. “Fui amarrado em duas árvores, pernas e braços, e fui apanhando”,
lembra. Um inquérito foi aberto sobre o caso, mas os culpados nunca foram
encontrados. Como Dadá continuou a receber ameaças, foi incluído no Programa de
Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos, da Secretaria de Direitos Humanos
da Presidência da República. Há sete anos convive com a escolta de policiais
militares. Quando fala da violência, cresce a convicção na voz do cacique.
“Posso estar no último suspiro, mas não vou embora daqui. Ameaça pra mim é
fortalecimento”.
Dada Borari recebeu ameaças e foi espancado depois de denunciar as madeireiras (Foto: Ana Aranha) |
Nos últimos anos, o grupo de vigilantes
só aumenta a ofensiva contra os madeireiros. Aprenderam, com a Funai, a
manusear o GPS e colher elementos para relatórios de fiscalização. Assim,
documentam e encaminham denúncias formais sobre tudo que encontram dentro da
terra. A pressão exercida pelo grupo foi tanta que despertou uma delicada
disputa jurídica entre entes federais e estaduais.
Com as evidências colhidas pelos Borari
e Arapiuns, as entidades de apoio aos indígenas descobriram que Secretaria do
Meio Ambiente e Sustentabilidade do Pará autorizou a exploração da floresta
dentro da Terra Indígena. No mapa abaixo, levantado pela ONG Fase Amazônia
(Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional), é possível ver ao
menos dez áreas dentro da terra indígena onde o governo do estado
autorizou o registro de Cadastros Ambientais Rurais.
Cadastros Ambientais
Rurais (CAR) dentro da Terra Indígena
Fonte: Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (FASE) |
Acionado pelos indígenas, o Ibama
identificou e embargou Projetos de Manejo Florestal dentro da área. Ou seja,
madeira que saía da terra indígena com selo de certificada. Em alguns casos, as
madeireiras receberam a autorização como permuta após terem sido retiradas de
outra terra indígena ao sul do estado. A legalidade dessas autorizações é
questionada pelo Ministério Público Federal do Pará, que moveu ação pedindo a
retirada das serrarias do local.
Procurada pela reportagem, a Secretaria
Estadual de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Pará respondeu que a concessão
só ocorreu por que o processo de demarcação ainda não foi concluído: “A
referida área está somente delimitada e não demarcada, o que oficializaria o
local como terra indígena. Em área indígena consolidada não há Cadastro
Ambiental Rural”. A demarcação da Terra Indígena Maró anda a passos lentos no
Ministério da Justiça desde 2011, quando foi publicado o relatório de identificação e
delimitação. Segundo a Funai, o processo está “em fase do contraditório
administrativo em análise pelo Ministério da Justiça”.
Em meio à disputa, os Borari e Arapiuns
municiaram o Ibama e o MPF para que realizassem uma grande fiscalização no
território. Em novembro de 2014, os fiscais interditaram as serrarias e
embargaram os Planos de Manejo Florestais em execução na área.
Duas semanas depois, no que foi
interpretado como uma resposta à operação, o juiz federal de Santarém Airton
Portela soltou uma controversa sentença: ele determinou a “inexistência” da
identidade Borari e Arapiuns. Usando termos como “índios falsos” e
“supostos rituais”, o juiz questionou o laudo antropológico da Funai para
determinar que o órgão deveria suspender o processo de demarcação, liberando a
exploração da floresta dentro da terra indígena.
A ação também foi citada como
justificativa pela Secretaria do Meio Ambiente quando questionada sobre as
autorizações de manejo florestal: “há uma discussão jurídica em andamento sobre
a existência da Terra Indígena Maró. A Justiça Federal considerou essa Terra
Indígena inexistente”.
A argumentação do juiz despertou a
reação de antropólogos e indigenistas por que nega o direito à
auto-denominação. Foi o caso de Jane Felipe Beltrão, vice-presidente da
Associação Brasileira de Antropologia. “Assim que soube, entrei em contato com
o procurador do caso e ofereci apoio. Essa ação atenta contra a Constituição,
que garante aos indígenas o direito a se apresentar como tal”, afirma a
antropóloga. Ela foi uma das pareceristas da apelação movida pelo
Ministério Público Federal, que conseguiu suspender a ação.
Meninas Arapiuns e Borari cantam músicas de roda em português e em nheengatu (Foto: Ana Aranha) |
A sentença final sobre este caso pode
fixar um importante marco ou um perigoso precedente. Isso por que o juiz usa a
miscigenação entre culturas para negar a identidade indígena. Argumenta, por
exemplo, que o hábito de beber xibé (alimento de origem indígena feito da
farinha de mandioca) seria “inservível” para caracterizar a identidade por que
já foi incorporado pela população do Pará. Do mesmo modo, práticas católicas
introduzidas pelos missionários servem como argumento contra o
reconhecimento dessa população.
Levando o raciocínio ao extremo,
todas as populações indígenas que já foram influenciadas
ou influenciaram outras culturas perderiam o direito à terra.
“O juiz erra quando acha que a cultura é
estanque”, pontua Jane. Ela explica que toda a população indígena da bacia
do Tapajós sofreu severo processo de perseguição e repressão cultural do século
XVI ao XVIII. Entre os que não foram escravizados pelos colonos, morreram no
confronto ou fugiram para outras regiões, muitos foram conduzidos aos
aldeamentos: comunidades submetidas à catequese de missionários. Nesses locais,
segundo o relatório de identificação da Funai, os indígenas eram ensinados a
“demonizar” (termo retirado dos registros históricos) sua língua nativa,
hábitos alimentares, rituais e organização política.
“A tentativa era de homogeneizar, fazer
com que deixassem de ser indígenas. Por muito tempo, eles foram obrigados a
ocultar sua identidade para sobreviver. Com a Constituição vem um marco
importante dos seus direitos”, explica Jane. A ação dos Borari e Arapiuns na
afirmação da sua identidade revela que passou o tempo de
se esconder. O caso é mais um exemplo do protagonismo indígena na
defesa de suas terras, tema de série de matérias da Repórter Brasil.
Para quem ainda tem dúvidas sobre o que
define a identidade indígena no século 21, o cacique Dadá deixa um convite:
“Pra quem questiona a minha etnia, eu quero convidar: venha até minha aldeia,
venha me conhecer, mas venha para ser alfabetizado por nós. Ser indígena hoje
não é o mesmo de 200 anos atrás. O fato de usar camisa, celular, computador,
casa de alvenaria, de jeito nenhum isso diz que eu perdi minha cultura. Se a
gente não aprender com a sociedade, vamos ser como o indígena era 200 anos
atrás, enganado, roubado. Hoje nós estudamos. O indígena hoje é um cidadão
brasileiro”.