Por: Felipe
Milanez*
Um ‘bom vizinho’ utiliza as instituições do Estado para benefício próprio em detrimento da destruição ecológica, dos bens comuns e do dinheiro público
Um ‘bom vizinho’ utiliza as instituições do Estado para benefício próprio em detrimento da destruição ecológica, dos bens comuns e do dinheiro público
O
lado oriental do arquipélago do Marajó, aquele marcado pelo cerrado, campos
naturais, onde o búfalo aprendeu a viver na Amazônia, está atravessando uma
revolução conservadora e uma modernização autoritária e destruidora. Houve uma
mudança brusca no padrão político e econômico, iniciada há poucos anos com a
chegada de um plantador de arroz expulso de um território indígena em Roraima —
junto dele, vem o agronegócio moderno para tomar o lugar de antigos
pecuaristas.
Essa
nova fórmula ruralista baseada na financeirização da produção, conectada com
bolsas de commodities pelo mundo, movimentada por máquinas potentes,
agrotóxicos violentos e portas abertas na burocracia estatal para seus
interesses. A principal resistência a essa grande transformação na região, com
desvio de rios, desmatamento e poluição tóxica, está concentrada nas
comunidades remanescentes de quilombos.
O
plantador de arroz recém-chegado é um gaúcho deputado federal por Roraima,
Paulo Cesar Quartiero, que acaba de se eleger vice-governador nesse estado.
Sabe como poucos abrir frentes de expansão em terras de populações
tradicionais, provocar impactos ambientais que ultrapassaram R$ 50 milhões em
multas do Ibama em sua antiga sede, e sobretudo manejar as instituições do
Estado a seu favor, com investimento e facilitações políticas.
Engana-se
quem pensa que Quartiero chega com violência contra pessoas em um primeiro
momento — a violência mais exposta ainda é contra o ambiente do qual dependem
muitas comunidades. Quartiero chegou para ser o “bom vizinho”, uma
ressignificação do atual modelo do agronegócio no Brasil do antigo “bom
patrão”, aquele violento explorador da mão de obra que se utiliza do
paternalismo para controlar o corpo e território alheio.
O
“bom vizinho” que oferece trator, convida para uma festa, quiçá consegue algum
trabalho para algum jovem da comunidade, pedindo licença para desviar o rio e
jogar agrotóxico na água e no ar de quem vive a seu lado — e deslegitimar as
lideranças comunitárias. “Bom vizinho” em Cachoeira do Arari, onde sua lavoura
hoje estabelece os limites da cidade, rodeada por arroz, pelos canais de
irrigação e pulverizada de agrotóxico. Com a ideologia do “progresso” que
promete a melhoria de vida e emprego — mesmo que nada disso venha, já que até o
momento não houve grande mobilização contrária no município, apenas esse tipo
de alianças em desequilíbrio de posições.
O
fazendeiro foi expulso da Raposa Serra do Sol, onde deixou um rastro de
destruição e marcas de violência no corpo de indígenas macuxi e wapishana. Foi beneficiado
com um complexo arranjo político que inclui forças potentes no governo do Pará.
Chegou de mansinho, sem acordar o Ministério Público que não percebeu as
primeiras mudanças profundas no sistema ecológico do Marajó. Apenas depois de
já ter 3 mil hectares de arroz plantado, um rio desviado, agrotóxico lançado
pelas asas de avião e uma profunda transformação no entorno da cidade de
Cachoeira do Arari, é que foram acontecer as primeiras audiências públicas
sobre o “empreendimento”, que conta com farto financiamento público.
A
grande resistência que veio a encontrar em Marajó foi justamente daquelas
comunidades que há séculos resistem e lutam por emancipação: os remanescentes
de quilombolas. São 18 comunidades ao todo nessa região do Marajó, cada uma experimentando
um tipo de impacto diferente desse agronegócio, seja direto, como a construção
de um porto dentro do território do Gurupá, seja com o agrotóxico que atinge
Rosário, seja com a especulação da terra que chega a todos os territórios, como
em Bacabal.
Nas
últimas semanas, visitei diversas comunidades quilombolas para saber como
percebem essa chegada de um novo desbravador. É fácil perceber em Marajó que
algo mudou. Na balsa que me levou de Belém, conheci um gaúcho que estava vindo
de Paragominas, no Pará, depois de uma longa trajetória de migração em
fronteiras agropecuárias na Amazônia que inclui diversas cidades no Mato
Grosso, como a potência sojeira atual de Sorriso. Havia comprado 500 hectares
de terra de um americano, já tinha desmatado 150, previa desmatar o resto nos
próximos anos, e a lavoura inicial seria de abacaxi e mandioca, para em seguida
cultivar arroz. Não entendi a razão dessa linha evolutiva, mas talvez não
estivesse à vontade para falar de seus interesses.
Os
“pretos bestas” hoje lutam por direito
A
primeira vítima da violência explícita e intimidadora do novo agronegócio foi
Teodoro Lalor de Lima, liderança da comunidade Gurupá assassinado em março
desse ano em crime ainda não esclarecido. Como é costume no interior do Pará,
as investigações da polícia não foram muito longe e logo o crime foi
classificado como passional. Na comunidade, porém, ninguém se convenceu do
argumento e pediram novas investigações da polícia — que não foram feitas. No
rio Caracará, que banha o quilombo e era utilizado por Lalor para ir da sede da
comunidade até sua casa, foi construído um porto sem licença ambiental para o
embarque do arroz de Quartiero.
Manoel
Natividade Batista dos Santos, uma das lideranças da comunidade Gurupá, enumera
três grandes impactos que atingem diretamente o território quilombola: o
primeiro e mais grave é a contaminação por agrotóxicos, que polui as águas,
mata os peixes e contamina todo o ecossistema; em seguida, o desvio do rio para
a irrigação do plantio; terceiro, o porto no Caracará construído dentro do
território e sem licença ambiental. “Há dez anos lutamos pela titulação, e em
cinco dias ele conseguiu a licença ambiental dessa destruição toda. Se algum de
nos vai ao Ibama para tirar licença para cortar um açaí, nos dão uma multa.”
Não
é apenas Quartiero, mas os outros fazendeiros vizinhos, como Liberato Castro,
que se opõe às titulações e tenta retirar a posse dos quilombolas de seu
território. Fazendeiros antigos que passaram a construir ali perto com a
valorização das terras e o interesse em expandir suas áreas. Natividade conta
que, uma vez, esse fazendeiro disse para um candidato na região — e sua filha é
prefeita em Ponta de Pedras — que nunca conseguiria votos lá nos “pretos
bestas”. A comunidade rebelde do Gurupá era conhecida na região como “o lugar
dos pretos bestas”. “Hoje os ‘pretos bestas’ do Gurupá estão reivindicando seus
direitos”.
Na
comunidade Rosário, Elieide Quilombola explica como a fórmula do “bom vizinho”,
articulada por Quartiero junto da inoperância do Estado em promover a titulação
e reconhecer os direitos, tem agido para minar o respeito às lideranças
comunitárias. O “bom vizinho” — pois os novos capitalistas da região não querem
ser “patrões”, apenas expropriar territórios — é uma estratégia de deslegitimar
lideranças: “Oferecem necessidades imediatas, como emprestar um trator, um
emprego, convidam para a festa, e tentam deslegitimar as lideranças que lutam
pelo coletivo dizendo que só viajam”. “Quem tem dinheiro não se preocupa com
quem está ao lado, ou se amanhã vai faltar para o próximo, se preocupa apenas
com o crédito no banco.”
Nada
disso faz ela abaixar a cabeça: “Nós somos Zumbi”.
Haroldo
Júnior vive no quilombo Bacabal, a única comunidade que recebeu o documento
RTID do INCRA, próxima a Salvaterra. É uma liderança de destaque, conhecedora
da história de resistência e das articulações atuais. Tendo experimentado o
cargo de Secretário da Cultura de Salvaterra, logo preferiu voltar aos
movimentos sociais: “Sou melhor para a comunidade do lado de fora, política não
é só governo”.
Escreveu
um belo texto sobre o pau da visagem, uma árvore que ficava na Estrada da Nação
— como chamavam o caminho na mata que levava até outras comunidades — atrás da
qual se escondiam visagens. As visagens amedrontavam todos na comunidade e
ninguém passava por lá depois das seis da tarde — mas também servia para
afugentar invasores e proteger o quilombo dos brancos escravagistas.
“Aqui
sempre existiu conflito: é o negro tentando se libertar”, reflete Haroldo. Em
sua análise, ele percebe que os brancos ricos do Marajó se aliaram a Quartiero.
Os fazendeiros que detém terras – mesmo sem títulos de propriedade – querem se
regularizar para vender para a especulação. “Eles estão organizados, são um
grupo de pessoas, não são sócios, mas se aliam”, ele diz. “E o Quartiero
patrocinou quase todos os candidatos da região nas eleições.” Não é só o Friboi
— maior financiador de campanhas do País — que sabe como articular o lobby
ruralista nas eleições…
Os
quilombolas do Marajó não estão solitários nessa luta de resistência, luta em
defesa da sobrevivência cultural de suas comunidades e do ambiente do qual
dependem para viver. Contam com vários aliados, como a organização Malungo, de
remanescentes de quilombos no Pará, a organização Peabiru e o engajado apoio do
ambientalista João Meirelles Filho, do Ministério Público Federal e Estadual,
com dedicados procuradores sensíveis à causa, com apoio do Conselho Nacional
das Populações Extrativistas, e com os antropólogos contratados há poucos anos
pelo INCRA para trabalhar especificamente com a titulação das terras
quilombolas — e que hoje formam um quilombo de resistência dentro do próprio INCRA
para que o órgão cumpra suas atribuições legais de reconhecer os territórios.
Dar
visibilidade a esse conflito que guerreiros Zumbi no Marajó enfrentam —
belíssimo arquipélago de um ecossistema natural e cultural extraordinário —
pode ajudar para que tenham ainda mais aliados pelo País. Outros Zumbi. Zumbis
que ajudem a enfrentar inimigos que utilizam as instituições do Estado para
benefício próprio em detrimento da destruição ecológica, dos bens comuns e do
dinheiro público.
*Fonte: Carta Capital