Documentário em financiamento coletivo reúne depoimentos de indígenas da aldeia Serra do Padeiro, na Bahia, e sobre a luta pela terra
por Daniela Alarcon*
Dona Marluce, Tupinambá que vive na Serra do Padeiro, é uma das narradoras da história da brutalidade contra seu povo e da resistência, em documentário que busca financiamento coletivo |
por Daniela Alarcon*
“Bom, o doutor Almeida... Ele tinha parte com o diabo.” É assim
que dona Marluce do Carmo, uma senhora Tupinambá de 58 anos de idade, introduz
o coronel mais afamado da região onde se situa a aldeia Serra do Padeiro, na
Terra Indígena Tupinambá de Olivença, que se estende por porções dos municípios
de Buerarema, Ilhéus e Una, no sul da Bahia. Recorrendo às artes ocultas, conta
dona Marluce, “doutor” Almeida fez com que uma ponte sobre o rio de Una se
construísse sozinha – ela tem nítida diante de si a imagem pavorosa que lhe foi
transmitida pelos antepassados, de guindastes movendo-se sem a mão humana,
noite adentro.
Referido
pelos indígenas como o “dono de Una”, Manoel Pereira Almeida foi grande
proprietário rural e um dos principais responsáveis pela fixação de não índios
no sul e oeste da Terra Indígena. Entre 1919 e 1937, esteve à frente da
administração de Una – exceto por um breve intervalo, devido à Revolução de
1930 –, mantendo influência política no município até a década de 1960. Morreu, diz-se, quando um inimigo
político determinou o corte de um pau-ferro, árvore que se erguia no centro da
cidade e na qual sua vida fora “colocada”, a seu pedido, por um curandeiro.
“Olha, essa beira de rio
aqui sempre foi nossa, dos nossos antepassados, do nosso tataravô”, conta dona
Marluce, diante de sua casa, junto ao rio de Una. “Eu nasci e me criei aqui.
Esse rio aqui é o rio que lavou minhas fraldas e de todos esses que estão aí.”
À beira do mesmo rio, ergue-se ainda hoje o opulento casarão de Almeida.
“Conheci gente ligada ao filho desse doutor Almeida. A casa em que ele morava,
ninguém não podia nem chegar, porque morava o demônio dentro lá também – da
casa dele, entendeu? Então, o homem era esquisito. Além de ter se coligado com
os demais, para mandar acabar com os nossos antepassados também. Tios meus
morreram de tanto apanhar. Era ele, esse doutor Almeida, e outro coronel de
Ilhéus também, que eram ligados às matanças com a gente, com nossos
antepassados. É por isso que sempre eu falo: até hoje ainda existe a maldição
por lá.”
Almeida
não é exceção. Nas falas dos Tupinambá, coronéis do tempo do cacau e outros
pretensos proprietários de terras comumente aparecem como figuras brutais,
associadas a pactos diabólicos e a assombrações. No hospital de Buerarema (hoje
desativado), instalado na casa onde viveu um poderoso local, Eurico Susart de
Carvalho, ruídos fantasmagóricos são ouvidos à noite. Dona Marluce recorda:
“Eurico Suzart também tinha parte com o coisa-ruim. Um dia, o vaqueiro dele de
confiança, quando chegou na manga, viu que um boi preto engoliu esse Eurico e
cagou. Aí Eurico disse para ele não contar para ninguém, que era um segredo,
era para ele morrer com aquilo. Era coisa do pacto [diabólico]. Quando ele morreu,
quem pegou no caixão diz que lá dentro não tinha corpo: era um toro de
bananeira”.
No marco da brutal
expropriação sofrida pelos indígenas, narrativas como essas se multiplicaram.
Invadido, o território tupinambá recobriu-se de pedras de tocaia (atrás das
quais se postavam matadores de índios), covas na mata (onde foram parar alguns
dos indígenas que se recusaram a entregar seus sítios) e peixes grandes
comedores de gente (que se fartavam quando corpos eram lançados nas represas a
mando dos coronéis). Porém, nas últimas décadas – após um longo período de
resistência mais ou menos silenciosa, em que a história tupinambá morava nas
memórias dos velhos –, esse povo vem se dedicando a curar a terra da sombra dos
invasores.
Em 2004, após intensa
pressão, o Estado brasileiro iniciou o processo de demarcação da Terra Indígena
Tupinambá de Olivença. No mesmo ano, os indígenas iniciaram a recuperação
efetiva de seu território, retomando fazendas em posse de não índios, limpando
as nascentes, replantando roças, reocupando velhas casas abandonadas e
adentrando novamente as moradas dos encantados – entidades não humanas que,
conforme a cosmologia tupinambá, são os verdadeiros donos da terra. Só na
aldeia Serra do Padeiro, cerca de 70 fazendas foram retomadas desde então e, a
despeito de violentas ações de reintegração de posse, os indígenas continuam em
posse de todas.
Dona
Marluce participa das retomadas desde o início. “Nós não somos ladrões: nós
estamos lutando pelo que é nosso. Que a terra é nossa, sempre foi nossa. Os
nossos pais que morreram, lutando para ela ser nossa, e não conseguiram... Mas
nós, que somos os netos, os bisnetos, os tataranetos... agora chegou a nossa
vez!”
***
Transcorridos
mais de dez anos, o processo de demarcação da Terra Indígena Tupinambá de
Olivença ainda não foi concluído e os indígenas vêm tendo seus direitos
sistematicamente violados. Para que mais pessoas conheçam o caso tupinambá e se
somem na pressão pela demarcação, a documentarista Fernanda Ligabue e eu, junto
aos Tupinambá, estamos realizando um documentário de curta-metragem, reunindo
depoimentos de indígenas da aldeia Serra do Padeiro, entre os quais, dona
Marluce. O filme, produzido pela Repórter
Brasil, está em fase de edição. Para finalizá-lo, criamos uma campanha de financiamento coletivo e convidamos todos que puderem a
colaborar.
** Mestre em Ciências Sociais pela Universidade de Brasília - UnB (“O retorno da terra: As retomadas na aldeia Tupinambá da Serra do Padeiro, sul da Bahia”). Doutoranda em Antropologia Social junto ao Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (MN/UFRJ).Publicado originalmente no Blog do Felipe Milanez no sítio da Carta Capital