Direção
consolida o processo de desmonte da autarquia, em desacordo com o discurso de
Patrus Ananias*
O
presidente do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - Incra,
Carlos Mário Guedes de Guedes, entregou ao novo ministro do Desenvolvimento
Agrário, Patrus Ananias, um documento com o que chama de proposta de "atualização" do Incra. É uma
autodefesa de sua gestão, com o propósito de "se encaixar no novo
governo", agora sob uma orientação diferente de sua corrente partidária
(DS) no comando do MDA.
De
plano, percebe-se que o documento colide frontalmente com o que se ouviu do
novo ministro em seu discurso de posse. Faz um balanço positivo no mínimo
exagerado da atual gestão e apresenta propostas para a autarquia sem ter havido
qualquer processo de discussão com os servidores e suas entidades
representativas nem tampouco com a sociedade civil, com lhe tem sido de
praxe.
No
centro da proposta, está a clareza da continuidade do processo de desmonte e
paralisia do órgão, que já é uma realidade. O chamado "marketing de
fumaça", com muito anúncio e pouco conteúdo. A consolidação de uma
maquiagem para a indubitável opção de governo de não fazer reforma agrária e
preterir o ordenamento do território.
O
SindPFA, na expectativa de contribuir com o aprimoramento do debate, das
relações e decisões acerca da reestruturação da autarquia tão necessária ao
desenvolvimento do país, faz uma análise crítica pontuada sobre as atividades
da atual gestão, contidas no documento apresentado, e chama ao debate a categoria,
os demais servidores, organizações e autoridades.
Reforma
Agrária e democratização do acesso à terra
Alardeia
grandes resultados na democratização do acesso à terra no período em que raras
foram as criações de novos assentamentos e, sem constrangimentos, utiliza-se
até de substituição de assentados em lotes vagos de terras já reformadas para
alavancar as estatísticas. Os números de programas como a reforma agrária nos
últimos quatro anos só não são piores que os de Collor desde a redemocratização.
Dilma Rousseff é responsável por apenas 3% do total das áreas desapropriadas
para esse fim desde 1995.
São
perfeitamente justas as reclamações dos movimentos sociais nesse sentido - vide
notas da CPTe MST. É sintomático que, no documento, a Diretoria de
Obtenção de Terras, responsável pelos processos de desapropriação, foi
solenemente esquecida no expediente.
A
visão equivocada da política de Estado e desalinhada com as afirmações de
Patrus Ananias é evidenciada no documento, quando subestima deliberadamente a
demanda para reforma agrária no Brasil. Estaria o presidente do Incra, órgão
ligado ao MDA, concordando com a polêmica fala de Kátia Abreu de que o país não
tem mais latifúndios?
Corrobora
esse pensamento a dificuldade que coloca em desapropriar por improdutividade.
No mês e ano em que o Estatuto da Terra completa 50 anos, o Presidente do Incra
chegou a afirmar em audiência pública que não é possível mais fazer reforma
agrária como definida na lei e que seria necessário mudar a Constituição. Em
que pese a necessidade de debater os índices de produtividade utilizados pelo
Incra - imutáveis desde a década de 70 e que não acompanharam o processo
tecnológico -, o órgão não faz efetivamente a fiscalização da função social da
terra, prevista na Constituição Federal, o que já seria capaz de promover uma
grande distribuição de terras, incentivar o aumento de produção e combater a
especulação no mercado de terras.
Não
é só isso que vai ao encontro do que prega a nova ministra da Agricultura, com
quem o presidente do Incra reuniu-se no final de 2012, quando a prometeram
"trabalhar com uma nova mentalidade" - veja a notícia -, a exemplo da titulação de assentamentos,
simplificação da certificação do georreferenciamento de imóveis rurais, entre
outros.
SIGEF
A
simplificação dos procedimentos do georreferenciamento não demorou a ser
anunciada. A cúpula apresentou com pompa um pretenso sistema de gestão
fundiária, o SIGEF, como a solução que o país precisava. No entanto, a menina
dos olhos dessa gestão foi lançada precocemente e sem as conexões necessárias
com os sistemas existentes, como o Sistema Nacional de Cadastro Rural (SNCR)
que, a propósito, já é bastante deficitário.
O
que deveria ser a base para um cadastro multifinalitário e contribuir para a
segurança jurídica no campo na verdade a compromete. Seu atual funcionamento
faz com que recaia unicamente sobre o profissional contratado a responsabilidade
sobre as peças técnicas necessárias à certificação, o que não atende a
legislação. Ele somente atesta que não há sobreposição.
O
sistema, da forma como está funcionando, é uma bomba-relógio: causará prejuízo
à sociedade e à Administração Pública. O estrago já pode ser gigantesco: em
dezembro, Incra e MDA informaram que 63,3 milhões de hectares foram
certificados pela ferramenta em 2014. Não é atoa que o Ministério Público
Federal abriu inquérito para apurar irregularidades a partir de denúncia do SindPFA.
Desenvolvimento
e titulação de Assentamentos
A
questão da titulação de assentamentos já vinha sendo propalada pelo presidente
do Incra e ressurge agora na proposta. É pacífico que o Estado não pode ser o
tutor ad eterno dos assentamentos da reforma agrária e que a
titulação dessas terras deve ser uma política permanente. Entretanto, propõe-se
titular os assentamentos de reforma agrária em apenas três anos. Alguns
cultivos levam esse tempo ou mais para atingir um nível de produção
satisfatório.
A
titulação em massa não garante que a família do pequeno agricultor subsistirá
com o afastamento precoce das políticas públicas e, mais que isso, pode
contribuir com a reconcentração de terras e anular um dispendioso processo de
reforma. A proposta passa por cima do processo de desenvolvimento e
consolidação dos projetos, o que coloca em xeque a já desacreditada
qualificação do processo de reforma agrária e instalação de assentamentos
alardeada pelos governantes.
Tal
pretensão paralisa o processo de vistoria e identificação das áreas ocupadas
irregularmente nos projetos de assentamento, sob a alegação que é um processo
caro e com a falácia de que a Sala da Cidadania resolveria em parte esse
problema. Na verdade, sem a presença do Estado, o espaço fica livre para todo o
tipo de irregularidades na ocupação das terras.
Outro
ponto altamente questionável é o anúncio de que tomou-se a melhor das decisões
quando decidiu confiscar o crédito de assentados que estavam apontados nas
contas das associações. A medida parte da visão equivocada de que, para se
destruir uma doença, mata-se o paciente ao invés de tratá-lo. Em detrimento da
criação de instrumentos de gerenciamento e fiscalização, prefere-se culpar
servidores, organizações e encerrar as políticas enquanto o real problema não é
atacado.
Sala
da Cidadania
Resultado
de um envelopamento de políticas já existentes, como as Unidades Municipais de
Cadastro (UMCs) - e portanto, nada de novo -, a chamada Sala da Cidadania é
outro ponto do qual vangloria-se. Entretanto, é um blefe: resolve pouco dos
problemas do público-alvo, ainda tem um sistema precário e está longe de ser
uma ferramenta eficaz ou uma revolução gerencial.
Regularização
Fundiária e gestão territorial
A
promessa de fortalecer a gestão territorial não se sustenta. Além do
desconhecimento completo da malha fundiária nacional - vide a existência de um sobrecadastro de 58 milhões de
hectares nos sistemas do Incra -, de paliativos como o SIGEF, vê-se que se
criou um programa de regularização fundiária na Amazônia (Terra Legal), uma
atribuição que é do Incra e foi-lhe retirada com prazo de validade, como se
essa fosse uma atividade temporária.
Entretanto, depois de cinco anos, só se
fez 15% do que anunciaram que fariam em 3.
Recente
auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU) apontou em sua execução a
existência de beneficiários que não atendem aos requisitos, falhas formais em
processos, inércia na retomada de áreas, risco de fomento do mercado irregular
de posse de terra, entre outros. Não se fala em regularização fundiária no
Nordeste e na faixa de fronteira. A insegurança jurídica perpetua-se no rural
brasileiro.
O relatório aponta uma perda estimada de R$ 230 milhões
decorrente da desproporcionalidade do valor cobrado por imóveis titulados,
entre outras irregularidades, como a expedição de títulos a pessoas
indevidamente, a exemplo de cônjuges que teriam sido beneficiados com mais de
uma área, pessoas já falecidas, beneficiários com renda diversa a atividades
agropecuárias, beneficiários da reforma agrária e proprietários de
terras.
Interessante
o registro de que, ao não dar destinação racional e adequada às suas terras, a
própria União estaria descumprindo o princípio da função social das
propriedades previsto na Constituição. Mais uma evidência de que o trabalho dos
gestores caminharam - e caminham - em linha oposta à pregada pelo novo ministro
do Desenvolvimento Agrário, que evoca o cumprimento do preceito
constitucional.
Com
relação à regularização fundiária na faixa de fronteira, nada foi feito. Só no
Paraná, são mais de 40 mil títulos à espera de ratificação da União há anos. É
isso que se pode chamar de governança fundiária?
Gestão
administrativa
O
que se viu nos últimos anos foi uma direção centralizadora, que pouco conversa
e não aceita críticas. Essa forma autoritária também se revela no trato com os
servidores, tanto que o tema praticamente nem é tratado na avaliação de
2011-2014, pois foi vergonhoso. Nas propostas, também não é tratado como devia
ser.
A
remuneração, em que pese ser uma variável importante, é só uma evidência disso.
Hoje, os servidores do órgão amargam um dos piores salários de nível superior
do serviço público federal. Para se ter uma ideia, as carreiras de Perito
Federal Agrário do Incra e de Fiscal Federal Agropecuário do Ministério da
Agricultura têm a mesma origem no serviço público federal, ambas compostas por
engenheiros agrônomos. Até 2000, o salário das duas era idêntico. Hoje, porém, o
salário do Perito do Incra é tão defasado que no final da carreira, depois de
16 anos de trabalho, é menor que o inicial do colega do outro ministério. Não
se paga nem o salário mínimo profissional a algumas profissões.
As
negociações salariais foram um fracasso. No caso dos Peritos, além de não
avançar nos valores, fizeram questão de destruir a estrutura da carreira com o
aumento somente na gratificação. Não bastasse isso, trapalhadas em 2014 no
Congresso resultaram na suspensão do acordo por seis meses, período em que o
salário - ineditamente - foi reduzido.
Uma
questão emblemática é o fornecimento dos equipamentos de proteção individual
(EPIs). Os Peritos Federais Agrários solicitam formalmente ao Incra o seu
fornecimento desde 2005 e, principalmente no período recente, os profissionais
foram vítimas de diversas formas de assédio moral por causa disso; a direção
foi capaz de atribuir aos servidores a culpa pela paralisia de atividades
quando elas não puderam ser feitas pela ausência de proteção.
A
proteção do trabalhador é algo tão elementar que é de assustar ver ela sendo
discutida no âmbito do "atendemos ou não?", "eles não vão
conseguir reconhecimento assim", prova de quão arcaico é o tratamento dado
ao servidor e quão atrasada é a cultura institucional. A situação levou à
abertura de vários inquéritos civis no Ministério Público do Trabalho em
diferentes estados e o Incra chegou a negar a assinatura de um Termo de
Ajustamento de Conduta para resolver a questão. Foi preciso que o SindPFA
ingressasse com uma ação judicial para ver o Incra cumprir a lei. Em 2014, uma
decisão liminar suspendeu as atividades de campo até que os EPIs sejam
fornecidos aos servidores. Até hoje, porém, isso não ocorreu na sua
integralidade.
É
límpido a realidade de uma desmotivação sem precedentes que assola as divisões
de trabalho; não há quem tenha esperanças com o cenário que se impõe.
Profissionais experientes que outrora foram responsáveis para tornar o órgão
forte e reconhecido hoje amargam o desmonte e contam os dias para
deixá-lo.
Conclusão
Por
fim, lembra-se que, em 2012, ao assumir o Incra, Guedes recebeu do seu
antecessor um diagnóstico apurado do órgão e de suas atividades e uma proposta de fortalecimento institucional. Numa situação
nitidamente mais agravada, porque o presidente apresenta um novo diagnóstico e
propostas bem menos ousadas? É por isso que não dá pra acreditar que haja boa
fé na apresentação de um plano de "atualização" de um órgão que está
à beira da falência, ainda que sob o argumento de que uma proposta menos
ambiciosa é mais factível. Não passa de uma dose de sobrevida, incapaz de tirar
a Autarquia da UTI.
Com
efeito, o que o Incra realmente precisa é de uma reestruturação completa.
Precisa deixar de viver de factóides e assumir seu papel institucional. Ou se
faz ou não se faz, mas não dá pra continuar parado e dizer que está fazendo. De
modo imediatamente consequente, o órgão precisa de novos gestores, com coragem
para admitir a inequívoca realidade e enfrentá-la; com alinhamento político que
sejam capazes de tornar o discurso do novo ministro minimamente possível.
O
SindPFA espera que a autarquia tenha uma gestão com um perfil mais avançado,
capaz de enfrentar os desafios que são difíceis, mas necessários para um
verdadeiro desenlace positivo para a questão agrária no país.
*Publicado originalmente no sítio do Sindicato dos Peritos Federais Agrários do Incra - SindPFA