Jacques Távora Alfonsin*
No dia 19 de
janeiro de 1897, há 117 anos portanto, a 3 km de Canudos, no sertão
baiano, um punhado da camponeses pobres, liderado por Antonio Conselheiro,
obteve uma surpreendente vitória militar contra o flamante exército
da nascente república brasileira, barrando a sua entrada naquele arraial. Esse
combate passou a história como a batalha do Tabuleirinho, um dos episódios
marcantes da revolta popular de Canudos. Nesse arraial se reunia gente disposta
a lutar pelo acesso à terra, mesmo ao custo da própria vida, pago logo depois,
em 5 de outubro do mesmo ano, com a tomada do lugar pelas tropas
regulares do país e o sacrifício de quem ainda resistia.
19 de janeiro serve,
pois, para lembrarem-se as causas impeditivas de as leis brasileiras sobre
reforma agrária – pelo menos hipoteticamente promulgadas para se evitar a
repetição de tragédias como a de Canudos – alcançam resultados tão medíocres.
O que havia de tão ruim, na
pregação de Antonio Conselheiro e na fidelidade que as/os suas/seus
seguidoras/es demonstraram em conquistar terra para garantir o seu direito à
vida? Era o justo e perene desejo de corrigir a injusta distribuição da terra e
pagar impostos sem reflexo traduzido em boa prestação de serviços a que tinha
também direito o povo pobre camponês daquela época. Nada tão diferente, como se
vê, da situação econômico-social vivida por grande parte desse mesmo povo
ainda hoje.
Na coletânea de estudos que
a revista Caros Amigos publicou sobre revoltas populares no Brasil, o primeiro
volume foi dedicado a Canudos e colheu uma entrevista com o cineasta Antonio
Olavo, responsável por um documentário sobre a saga no qual ele conta:
“Canudos foi um farol que
iluminou esse tempo de tanta injustiça e desigualdade. Não foi só a palavra do
Conselheiro, foi a possibilidade de uma vida digna. Todo mundo trabalhava, não
havia prostituição e havia escola para as crianças. Era uma sociedade justa. Os
sertanejos viam que era melhor viver ali do que voltar para o latifúndio, para
a fome e para a miséria, debaixo do poder do coronel e da Igreja”.
Para João Pedro Stédile,
conhecido por sua liderança junto ao MST e a Via Campesina, um dos responsáveis
pela coletânea perguntou: Qual a relação entre o MST e Canudos? – Canudos foi
o primeiro movimento de massas da classe camponesa no fim do século XIX, que
confrontou a lei n. 601, a chamada Lei de Terras, que privatizou as terras do
Brasil e impediu que os camponeses tivessem acesso a elas. O MST é um movimento
de massas, dos camponeses, que surgiu no fim do século XX para confrontar a
crise imposta pelo capitalismo industrial. Agora o movimento luta por uma
reforma agrária ampla e por um novo modelo de agricultura no Brasil.” (…)
Se Euclides da Cunha
vivesse hoje, que reportagem ele faria? Por que? – Certamente Euclides
teria ido a Eldorado do Carajás (PA) para cobrir o massacre de 1996 realizado
pelas elites em conluio com o governo do estado do Pará, com a empresa Vale do
Rio Doce e com o governo de Fernando Henrique Cardoso, que nos custou a vida de
17 companheiros em um só dia. Outros vieram a falecer em consequência e ainda
temos 65 feridos impedidos para o trabalho agrícola. Euclides faria essa
reportagem porque esse foi um terrível massacre de camponeses em pleno século XX.”
Os perversos efeitos do
massacre de ontem, a vista desses depoimentos, ainda ocorrem e podem voltar a
acontecer hoje. As vitórias de revoltas populares, como a vitória dos
conselheristas de 19 de janeiro de 1897 por exemplo, constituía a terceira
derrota sofrida pelo Exército brasileiro, na tentativa de sufocar Canudos e
tudo quanto ele representava. Não tinha força, entretanto, para vencer
definitivamente. Mais de dez mil homens foram convocados depois, pelo
Império, oriundos de 17 Estados da Federação, alguns sem nenhuma formação
militar e conhecimento da região, para por fim à revolta. Com uma tal
superioridade em pessoal e armas, o Arraial foi cercado e tomado, em 5 de
outubro de 1897, deixando atrás de si um rastro de crueldade e sangue vergonhoso
para a força militar do Império.
Como narra a mesma
publicação da Caros Amigos: “Em 3 de outubro de 1897, o conselherista
Antonio Betinho levantou bandeira branca e ofereceu a rendição, obtendo a
promessa de que ninguém sofreria represália. Um grupo de 300 canudenses
famintos e doentes se entregaram. Todos os homens foram presos e depois
degolados, uma execução sumária apelidada de “gravata vermelha.”
Entre as muitas razões
invocadas para explicar essa fonte contínua de conflito social e assassinatos
de camponeses, a inadimplência secular de o Poder Público garantir acesso à
terra, têm sido lembradas a do comando econômico político de latifundiários
sobre o território do país e a da presença decisiva da bancada ruralista no
Congresso Nacional, fortemente apoiada pela mídia, capazes de conservar e
aumentar a injustiça social presente no campo brasileiro.
Parece existir nessa
explicação um certo conformismo fatalista infiel ao fato histórico de Canudos,
às pastorais das Igrejas, como a CPT, e aos movimentos populares que lutam por
reforma agrária e direitos humanos. Não é só daqueles fatores que o atraso
inexplicável da reforma agrária tem de ser cobrado. Quem interpreta e aplica as
leis, seja a administração pública, seja o Poder Judiciário, também deve
explicação a todo o país sobre questão dessa relevância.
Nesses Poderes Públicos
existe uma secular e preconceituosa distância do povo pobre camponês, exceções
a parte, capaz de impedir qualquer cogitação, por mínima que seja, das causas
pelas quais ele se rebela, mesmo em condições de poder tão desiguais como
aconteceu em Canudos. Um exemplo dessa distância, do ambiente ideológico e
cultural que a reproduz, é dado pelo próprio Euclides da Cunha, o mais
conhecido historiador do episódio de Canudos, acima lembrado pela Caros Amigos.
Sob o título de “A elite nunca entendeu o Conselheiro”, Nicolau Sevcenko,
doutor em história pela USP, fala sobre Euclides na mesma revista:
“Quando começou a escrever
n´O Estado de São Paulo sobre Canudos, assumiu a visão oficial de que aquilo
era uma rebelião antirrepublicana. Chegando em Canudos, as coisas começaram a mudar, porque ele viu quem, de fato, eram aqueles homens e mulheres que
representavam a comunidade de Belo Monte, viu que forma de luta eles conduziam
e porque estavam lutando. Ele se deu conta de que a situação era o reverso: o
governo federal era opressivo e reacionário. Eram as vozes canudenses que
falavam de um Brasil igualitário, de respeito social, humano e ambiental.
Euclides foi o primeiro escritor a fazer essa virada de posição.
Até hoje foi um fato inigualável pela coragem, lucidez e profundidade
com que ele entrou no mérito dessa situação de desencontro entre a elite e a
população.”
Esse é o ponto. Em mais de
três décadas que dedicamos à defesa jurídica do povo pobre sem-terra e
sem-teto, nós só conseguimos convencer juízes/as a se deslocarem ao lugar onde
o conflito indicado no processo judicial estava se verificando, por três vezes.
Em nenhuma delas, houve decisão favorável a quem pretendia expulsar as
multidões identificadas como rés nesses processos. Isso não se deveu a qualquer
tipo de “compaixão” com as/os pobres. Por mais parcial que a interpretação da
lei se mostre em favor de direitos patrimoniais, o que ocorreu nesses casos foi
o reconhecimento de quanto o mau exercício desses direitos entra em conflito,
viola e fere direitos humanos fundamentais.
O Poder Legislativo, a
Administração Pública e o Judiciário, assim, se mudassem o seu lugar social,
levantassem das suas cadeiras e mesas, saíssem nem que fosse um pouco do seu
conforto e do seu ar condicionado, para olhar e avaliar de perto as causas dos
conflitos sobre terra e a gente sem-terra no espaço físico onde tudo isso
realmente acontece, a aplicação das leis sobre reforma agrária e outras
relacionadas com o respeito devido à dignidade humana e à cidadania, sairia de
dentro dos códigos e das gavetas e não prosseguiria, por sua ausência, sendo
causa dos muitos velórios onde a sua vigência é desrespeitada.
Fonte: CPT