Para
Ruy Braga, professor da USP especializado em sociologia do trabalho, Projeto de
Lei 4330 completa desmonte iniciado por FHC e sela "início do governo do
PMDB". Contratados com idade entre 18 e 25 anos devem ser os maiores afetados, afirma Ruy Braga
Especialista
em sociologia do trabalho, Ruy Braga traça um cenário delicado para os próximos
quatro anos: salários 30% mais baixos para 18 milhões de pessoas. Até 2020, a
arrecadação federal despencaria, afetando o consumo e os programas de
distribuição de renda. De um lado, estaria o desemprego. De outro, lucros
desvinculados do aumento das vendas. Para o professor da Universidade de
São Paulo (USP), a aprovação do texto base do Projeto de Lei 4330/04, que
facilita a terceirização de trabalhadores, completa o desmonte dos direitos trabalhistas iniciado pelo
ex-presidente Fernando Henrique Cardoso na década de 90. “Será a maior derrota
popular desde o golpe de 64”, avalia o professor em entrevista a CartaCapital.
Embora
o projeto não seja do governo, Braga não poupa a presidenta e o PT pelo cenário
político que propiciou sua aprovação. Ele cita as restrições ao Seguro
Desemprego, sancionadas pelo governo no final de 2014, como o combustível usado
pelo PMDB para engatar outras propostas desfavoráveis ao trabalhador, e
ironiza: “Esse projeto sela o fim do governo do PT e o início do governo do
PMDB. Dilma está terceirizando seu mandato”.
Leia
a entrevista completa:
CartaCapital: Uma
lei para regular o setor é mesmo necessária?
Ruy
Braga: Não. A Súmula do TST [Tribunal Superior do Trabalho] pacificou na
Justiça o consenso de que não se pode terceirizar as atividades-fim. O que
acontece é que as empresas não se conformam com esse fato. Não há um problema
legal. Já há regulamentação. O que existe são interesses de empresas que desejam
aumentar seus lucros.
CC: Qual
a diferença entre atividade-meio e atividade-fim?
RB: Uma
empresa é composta por diferentes grupos de trabalhadores. Alguns cuidam do
produto ou serviço vendido pela companhia, enquanto outros gravitam em torno
dessa finalidade empresarial. Em uma escola, a finalidade é educar. O professor
é um trabalhador-fim. Quem mexe com segurança, limpeza e informática, por
exemplo, trabalha com atividades-meio.
CC: O
desemprego cai ou aumenta com as terceirizações?
RB: O
desemprego aumenta. Basta dizer que um trabalhador terceirizado trabalha em
média três horas a mais. Isso significa que menos funcionários são necessários:
deve haver redução nas contratações e prováveis demissões.
CC: Quantas
pessoas devem perder a estabilidade?
RB: Hoje
o mercado formal de trabalho tem 50 milhões de pessoas com carteira assinada.
Dessas, 12 milhões são terceirizadas. Se o projeto for transformado em lei,
esse número deve chegar a 30 milhões em quatro ou cinco anos. Estou descontando
dessa conta a massa de trabalhadores no serviço público, cuja terceirização é
menor, as categorias que de fato obtêm representação sindical forte, que podem
minimizar os efeitos da terceirização, e os trabalhadores qualificados.
CC: Por
que os trabalhadores pouco qualificados correm maior risco?
RB: O
mercado de trabalho no Brasil se especializou em mão de obra semiqualificada,
que paga até 1,5 salário mínimo. Quando as empresas terceirizam, elas começam
por esses funcionários. Quando for permitido à companhia terceirizar todas as
suas atividades, quem for pouco qualificado mudará de status profissional.
CC: Como
se saíram os países que facilitaram as terceirizações?
RB:
Portugal é um exemplo típico. O Banco de Portugal publicou no final de 2014 um
estudo informando que, de cada dez postos criados após a flexibilização, seis
eram voltados para estagiários ou trabalho precário. O resultado é um aumento
exponencial de portugueses imigrando. Ao contrário do que dizem as empresas,
essa medida fecha postos, diminui a remuneração, prejudica a sindicalização de
trabalhadores, bloqueia o acesso a direitos trabalhistas e aumenta o número de
mortes e acidentes no trabalho porque a rigidez da fiscalização também é menor
por empresas subcontratadas.
CC: E não
há ganhos?
RB: Há,
o das empresas. Não há outro beneficiário. Elas diminuem encargos e aumentam
seus lucros.
CC: A
arrecadação de impostos pode ser afetada?
RB: No
Brasil, o trabalhador terceirizado recebe 30% menos do que aquele diretamente
contratado. Com o avanço das terceirizações, o Estado naturalmente arrecadará
menos. O recolhimento de PIS, Cofins e do FGTS também vão reduzir porque as
terceirizadas são reconhecidas por recolher do trabalhador mas não repassar
para a União. O Estado também terá mais dificuldade em fiscalizar a quantidade
de empresas que passará a subcontratar empregados. O governo sabe disso.
CC: Por
que a terceirização aumenta a rotatividade de trabalhadores?
RB: As
empresas contratam jovens, aproveitam a motivação inicial e aos poucos aumentam
as exigências. Quando a rotina derruba a produtividade, esses funcionários são
demitidos e outros são contratados. Essa prática pressiona a massa salarial
porque a cada demissão alguém é contratado por um salário menor. A rotatividade
vem aumentando ano após ano. Hoje, ela está em torno de 57%, mas alcança 76% no
setor de serviços. O Projeto de Lei 4330 prevê a chamada "flexibilização
global", um incentivo a essa rotatividade.
CC: Qual
o perfil do trabalhador que deve ser terceirizado?
RB: Nos
últimos 12 anos, o público que entrou no mercado de trabalho é composto por:
mulheres (63%), não brancos (70%) e jovens. Houve um avanço de contratados com
idade entre 18 e 25 anos. Serão esses os maiores afetados. Embora os últimos
anos tenham sido um período de inclusão, a estrutura econômica e social
brasileira não exige qualificações raras. O perfil dos empregos na agroindústria,
comércio e indústria pesada, por exemplo, é menos qualificado e deve sofrer com
a nova lei porque as empresas terceirizam menos seus trabalhadores
qualificados.
CC: O
consumo alavancou a economia nos últimos anos. Ele não pode ser afetado?
RB: Essa
mudança é danosa para o consumo, o que inevitavelmente afetará a economia e a
arrecadação. Com menos impostos é provável que o dinheiro para transferência de
renda também diminua.
CC: Qual
a responsabilidade do PT e do governo Dilma por essa derrota na Câmara?
RB: O
governo inaugurou essa nova fase de restrição aos direitos trabalhistas. No
final de 2014, o governo editou as medidas provisórias 664 e 665, que
endureceram o acesso ao Seguro Desemprego, por exemplo. Evidentemente que a
base governista - com PMDB e PP - iria se sentir mais à vontade em avançar
sobre mais direitos. Foi então que [o presidente da Câmara] Eduardo Cunha
resgatou o PL 4330 do Sandro Mabel, que nem é mais deputado.
CC: Para
um partido de esquerda, essa derrota na Câmara pode ser considerada a maior que
o PT já sofreu?
RB: Eu
diria que, se esse projeto se tornar lei, será a maior derrota popular desde o
golpe de 64 e o maior retrocesso em leis trabalhistas desde que o FGTS foi
criado, em 1966. Essa é a grande derrota dos trabalhadores nos últimos anos.
Ela sela o fim do governo do PT e marca o início do governo do PMDB. A Dilma
está terceirizando seu mandato.
CC: A
pressão do mercado era mesmo incontornável?
RB: Dilma
deixou de ser neodesenvolvimentista a partir do segundo ano de seu primeiro
mandato. Seu governo privatizou portos, aeroportos, intensificou a liberação de
crédito para projetos duvidosos e agora está fazendo de tudo para desonerar o
custo do trabalho. O governo se voltou contra interesses históricos dos
trabalhadores. O que eu vejo é a intensificação de um processo e não uma
mudança de rota. Se havia alguma dúvida, as pessoas agora se dão conta de que o
governo está rendido ao mercado financeiro.
CC: A
terceirização era um dos assuntos preferidos nos anos 90, mas não passou. Não é
contraditório que isso aconteça agora?
RB: O
Fernando Henrique tentou acabar com a CLT [Consolidação das Leis do Trabalho]
por meio de uma reforma trabalhista que não foi totalmente aprovada. Ele
conseguiu passar a reforma previdenciária do setor privado e a regulamentação
de contratos por tempo determinado. O governo Lula aprovou a reforma previdenciária
do setor público e agora, com anos de atraso, o segundo governo Dilma conclui a
reforma iniciada por FHC.
CC: Mas
a CLT não protege também o trabalhador terceirizado?
RB: A
proteção da CLT é formal, mas não acontece no mundo real. Quem é terceirizado,
além de receber menos, tem dificuldade em se organizar sindicalmente porque 98%
dos sindicatos que representam essa classe protegem as empresas em prejuízo dos
trabalhadores. Um simples dado exemplifica: segundo o Ministério Público do
Trabalho, das 36 principais libertações de trabalhadores em situação análoga a
de escravos em 2014, 35 eram funcionários terceirizados.
CC: A
bancada patronal tem 221 parlamentares, segundo o Diap (Departamento
Intersindical de Assessoria Parlamentar). Existe alguma relação entre o tão
falado fim do financiamento privado de campanha e a aprovação desse projeto?
RB: Não
há a menor dúvida. Hoje em dia é muito simples perceber o que acontece no País.
Para eleger um vereador em São Paulo paga-se 4 milhões de reais. Para se eleger
deputado estadual, são 10 milhões. Quem banca? Quem financia cobra seus
interesses, e essa hora chegou. Enquanto o presidente da Fiesp [Federação das
Indústrias do Estado de São Paulo], Paulo Skaf, ficou circulando no Congresso durante
os últimos dois dias, dando entrevista, conversando com deputados e
defendendo o projeto, sindicalistas levavam borrachada da polícia. Esse é o retrato do Congresso
brasileiro hoje: conservador, feito de empresários, evangélicos radicais e
bancada da bala.
*Fonte:
sítio da revista Carta Capital publicado 10/04/2015