Histórias reunidas pela Comissão Pastoral da Terra são de arrepiar; seriam pauta em qualquer jornal do mundo; aqui, ignoramos solenemente até mesmo “temas anti-PT”
Por Alceu Luís Castilho*
Não é um dossiê numérico
– embora tenha números que poderiam motivar manchete em qualquer jornal do
país. Está longe de ser superficial. Avança mais em algumas análises sobre a
Amazônia que muito mestrado por aí. E está repleto de boas histórias: de gente
expulsa por grileiros ou madeireiros, de comunidades inteiras ameaçadas, de
vítimas da violência estrutural no maior bioma brasileiro, em pleno século 21.
E, no entanto, as menções nos meios de comunicação – inclusive os alternativos
– foram, no máximo, esporádicas. No geral, ausentes. Ignorou-se um dos
documentos mais importantes do ano.
“Amazônia, um bioma mergulhado em conflitos – Relatório Denúncia” é o nome do dossiê que a Comissão Pastoral da Terra (CPT) divulgou na semana passada e, agora, está disponível para download. Ali temos um manancial de pautas. Até mesmo dados que apontam aberrações em iniciativas e programas criados na era petista, como o Terra Legal, o Sistema Nacional de Cadastro Rural* e os planos de manejo florestal. Temos uma história sobre corrupção no Incra. Mas nem a imprensa que bate somente em Chico olha para Chico quando se trata dos abusos cometidos por madeireiras, grileiros ou pelo agronegócio. A regra geral é blindar os destruidores – com um ou outro espasmo de jornalismo para inglês ver.
Estamos falando de quase
metade do território brasileiro, e mesmo assim falando dos excluídos dos
excluídos. O dossiê da CPT traz nove grandes histórias, uma para grande Estado
que compõe a Amazônia Legal. Poderia motivar uma série, em uma grande revista.
Ou um caderno especial. Poderia migrar diretamente para os bancos escolares,
tivéssemos uma educação mais ágil – do ensino básico à universidade. Como tema
transversal, em geografia, história, biologia. Para não falar na matemática do
desmatamento. No direito paralelo – ou cínico – que se observa nas narrativas
de espoliação. Na administração às avessas.
E, no entanto, nos calamos. Ignoramos. No máximo pinçamos alguns
números sobre os assassinatos na região, reunidos na apresentação, como fez o G1 do Amazonas. E nos calamos e
ignoramos (jornalistas da grande imprensa ou da mídia contra-hegemônica) porque
simplesmente não lemos. E não lemos porque nos acostumamos a ver o tema como
algo distante, quase exótico. Como se não dissesse respeito ao Brasil. Como se
o nosso Estado Democrático de Direito não precisasse dar as caras por ali; como
se indígenas, ribeirinhos, quilombolas estivessem destinados a ter seus
direitos violados, suas terras, roubadas.
O andar de cima do
Brasil, no Sul, tem uma dupla face: é ele quem ignora e quem envia
representantes para participar do processo de espoliação da Amazônia. Está lá,
no capítulo sobre o Amapá, como “famílias com sobrenome do Sul” participam de
uma pilhagem que envolve o Judiciário, passa pelo conflito de números nas
fontes oficiais (Incra, IBGE, ITR, que deveriam registrar com exatidão o
cenário) e por programas federais que apenas confirmam um processo de expulsão
das famílias tradicionais. Agora com agronegócio na veia – pois não há
fronteiras para a expansão desse capitalismo, essencialmente predador.
É por devoção a esse
sistema e por desprezo aos povos originários e tradicionais que ignoramos a
Amazônia. Que de vez em quando vá para lá um repórter do Sul para ganhar
seu prêmio. Os mesmos jornalistas que se vangloriam de serem caçadores de
pautas (embora muitas delas caiam em seus colos, a serviço do interesse
político de determinadas fontes) não tomam dados ferventes e relevantes sobre a
região como matéria-prima porque seus patrões decidiram que ela continuará a
reserva para os bandeirantes do século 21. Para um retrato constante o país
teria de tapar seu nariz. A imprensa brasileira ainda vive seu tratado de
Tordesilhas, a sua narrativa muito particular.
Mais ou menos como dizia
aquele personagem do Rubem Fonseca, Diogo Cão, em uma das histórias de “O
Buraco na Parede” (1995): “Fodam-se as florestas”. O conto detalha a
perseguição de um policial a um grupo apaixonado por balões, no momento em que
eles iam soltar o maior balão que o Rio já tinha visto. Mas a perseguição
constituía, na prática, um simulacro, pois no fundo os investigadores eram
fascinados pelos balões, ou até pelo fogo, quando algo pegava fogo por causa
dos balões. Mesmo o delegado, que tinha uma namorada ambientalista, sucumbe ao
conformismo e à lógica da destruição: “Fodam-se as florestas”.
*Publicado originalmente no blog Outras Palavras. (@alceucastilho)
Leia também: Índios e campesinos são as principais vítimas de violações de direitos no Brasil (Agência Brasil via Amigos da Terra – Amazônia Brasileira)