Por:
Andreia Fanzeres/OPAN*
Com
54 fazendas na TI Manoki, indígenas flagram ação ilegal de madeireiros e
abarrotam autoridades com dados sobre violações a seus direitos.
Espinha de peixe na TI Manoki. Foto: Google Earth. |
Brasnorte
(MT) – No meio da mata, onde supostamente só deveria haver acesso a locais
de uso e ocupação indígenas, o som das motosserras ensurdece um grupo Manoki
que realiza mais uma viagem de vigilância pelo seu território. O coração
acelera na iminência do encontro com quem não é bem-vindo. As marcas de
tratores e caminhões pelo chão, as porteiras fechadas, as placas com nomes de
fazendas (e até de financiamento público para mantê-las) e as toras de madeira
já serradas escondidas mostram que a invasão e o desmatamento ilegal dentro da
Terra Indígena Manoki estão fora de controle.
No
dia 5 de março de 2016, os indígenas tiveram mais uma prova de que as operações
de fiscalização realizadas nos anos anteriores não passam de paliativos. Não
diminuem a velocidade nem a intensidade das agressões sofridas na área. E os
madeireiros avisam: “Ibama e SEMA sabem”.
De
acordo com dados oficiais, mais de 20% da vegetação nos 206 mil hectares da
Terra Indígena Manoki já foram destruídos por fazendeiros que seguem realizando
corte raso para cultivar arroz e soja no interior da terra indígena. Mas o que
assusta mais tem sido a ação de madeireiros, que abriram uma malha de centenas
de quilômetros para furto de madeira, deixando seus rastros no mais tradicional
estilo “espinha de peixe” dentro do território Manoki. Dá para acompanhar tudo
por imagens de satélite. Só as autoridades não querem ver.
Sempre,
a cada viagem, os indígenas protocolam as informações por escrito e em vídeo
junto a autoridades como Ibama, Funai e Ministério Público Federal. Mas, até
agora, nada conseguiu segurar o ritmo avassalador da invasão ao território
Manoki. Além das estradas, os indígenas flagraram a abertura de um loteamento
no norte da área, com instalação de energia elétrica e edificações. Dentro do
território Manoki tem, ainda, pista de pouso e serraria em funcionamento. Tudo
clandestino.
No
último flagrante, em apenas uma clareira, os indígenas contabilizaram 45 toras
no chão, que juntas, atingiam uma altura de cerca de 1,50m. Eles perguntaram ao
madeireiro se ele sabia que ali era terra indígena e, de acordo com os
indígenas, ele disse que “não vai ter mais demarcação aqui. Nunca teve índio
aqui. Ibama e Força Nacional, quando estiveram aqui na sede da fazenda, nos
disseram que poderíamos retirar madeira, mas não podemos comercializar”. Se não
quisessem, não teriam tido o trabalho nem a ousadia de reconstruir uma ponte de
madeira sobre o rio do Sangue, que dá acesso direto ao município de Nova
Maringá, destino das toras retiradas da terra indígena ilegalmente.
Na
viagem de vigilância realizada em novembro de 2015, os indígenas fotografaram
uma placa que aponta o financiamento do Banco do Brasil para uma das fazendas
dentro da área pertencente aos Manoki. Abordaram, também, um toreiro abarrotado
de cambará e cedrinho. Segundo o caminhoneiro, naquele momento pelo menos
outros cinco veículos como aquele estavam escondidos na terra indígena.
Para
impedir a continuidade do corte clandestino, pelo menos no momento da
abordagem, os Manoki apreenderam quatro motosserras e dispensaram 400 litros de
diesel que abasteceriam os veículos dos madeireiros. “A gente vai continuar na
luta, buscando mais parceiros. O que podemos fazer, a gente faz. Denuncia,
conversa, mas parece que nada acontece. Vão só detonando. Parece que não temos
instituições fortes, Funai não está olhando para nada”, diz o cacique geral do
povo Manoki, Manoel Kanunxi.
Nada
autorizado
A
afirmação de que o Ibama e a Secretaria de Estado de Meio Ambiente de Mato
Grosso (SEMA) teriam “autorizado o desmatamento” na terra indígena, conforme
consta no Relatório de Monitoramento da Terra Indígena Manoki de 7 de março de
2016, pegou os Manoki de surpresa. Segundo Giovani Tapurá, que participou da
expedição de vigilância, na Fazenda Onça Parda (localizada no interior da terra
indígena), o funcionário da propriedade informou que “a SEMA liberou o Cadastro
Ambiental Rural (CAR)”.
O
CAR é um registro eletrônico que todos os imóveis rurais devem ter. As
propriedades precisam declarar informações relacionadas à situação de áreas de
preservação permanentes, reservas legais, remanescentes florestais, áreas de
uso restrito e consolidadas. Sua obrigatoriedade tem permitido que o estado
passe a conhecer melhor a complexa situação fundiária que abriga, especialmente
em relação às terras indígenas, já que é possível visualizar os polígonos das
fazendas que fizeram a declaração do CAR e combiná-los com mapas das áreas
protegidas.
Deste
modo, em Mato Grosso, é possível constatar a operação de centenas de
propriedades situadas dentro de terras indígenas como Manoki, Batelão,
Piripkura, Kawahiva do Rio Pardo, Portal do Encantado, Baía dos Guató, Figueiras,
Uirapuru, Wedezé, Marãiwatsédé, Urubu Branco, Cacique Fontoura, além do Pontal
do Apiacás, sobreposto ao Parque Nacional do Juruena.
De
acordo com a SEMA, só dentro da TI Manoki existem 54 inscrições de CAR. No
entanto, o órgão ambiental de Mato Grosso assegurou que não vai validar esses
cadastros justamente por estarem localizados dentro de terra indígena.
Procurada pela OPAN, a Superintendência de Regularização e Monitoramento
Ambiental da SEMA informou que, no momento em que essas inscrições forem analisadas,
os proprietários serão notificados e as inscrições canceladas, salvo em casos
em que haja necessidade de cumprimento de ordem judicial pela SEMA.
A
SEMA reconheceu, ainda, que existem seis processos referentes a empreendimentos
em tramitação na TI Manoki com datas de 2005, 2006 e 2007. Mas garantiu que,
após 2008, não há autorização ou licenciamento para nenhuma atividade, seja
extração de madeira ou agropecuária.
Omissão
do Estado
A
TI Manoki foi identificada e reconhecida oficialmente em 2002, após décadas de
espera pelo reconhecimento oficial de seu território tradicional. Além de ser
uma área de importância cultural e mitológica para os Manoki, trata-se de um
ambiente rico e essencial não só para os indígenas, mas para todo o entorno,
pois representa o último grande fragmento de floresta para a região, com função
reguladora do microclima, refúgio de fauna e flora. Hoje, a terra indígena está
totalmente cercada por monoculturas. Só em 2008, a área foi declarada e pôde
ser demarcada fisicamente. Entretanto, a maioria das placas foi alvejada e
destruída por invasores, estabelecendo na região um clima de insegurança e
hostilidade que se agrava a cada ano.
Apesar
de tudo isso, os Manoki têm se dedicado ao estabelecimento de uma relação
amistosa com seus vizinhos. Sempre optam pelo diálogo e, em 2012, publicaram
seu Plano de Gestão Territorial, atendendo à Política Nacional de Gestão
Ambiental e Territorial de Terras Indígenas (PNGATI). Esse instrumento tem sido
usado para fortalecer as relações dos Manoki com o entorno, no sentido de criar
condições para uma gestão ambiental local sustentável. A publicação traz, entre
outras informações, um retrato das agressões ambientais relatadas pelos
indígenas.
Hoje,
o território Manoki está declarado e demarcado. Para que a regularização
fundiária se complete, é preciso que a presidência da República homologue a
demarcação concluída em 2011 e proceda ao registro da área em cartório e na
Secretaria do Patrimônio da União (SPU). Mas o processo Manoki segue em repouso
sobre a mesa de Dilma Rousseff sem perspectiva de avanço, afinal, nunca se
reconheceu, declarou, demarcou e homologou tão poucas terras indígenas na
história do Brasil como na sua gestão.
Enquanto
isso, diversas ações judiciais, cujos argumentos haviam sido indeferidos dentro
do rito administrativo, passaram a adiar ainda mais a solução para o caso. Em
novembro de 2015, a Funai informou que o processo administrativo da TI Manoki
não pode prosseguir por decisões da Justiça Federal em Mato Grosso decorrentes
de ações de autoria de Philllip Monteiro Laignier Costa, da Associação de
Produtores Rurais Esperança Ltda e da Associação de Produtores Rurais Estrela
Dalva. Enquanto recursos sobrepõem-se a recursos e violam direito do povo
Manoki ao usufruto exclusivo de seu território de ocupação tradicional, não é
só a floresta que agoniza, mas também a justiça.
*Fonte: Amazônia Nativa
Leia
também: Justiça condena União a indenizar fazendeiro de reserva indígena
(Folha de Boa Vista, Roraima, 11 de março de 2016)