Por Fernando G. V. Prioste, assessor jurídico da Terra de Direitos*
A destinação
de verbas federais para a titulação de territórios quilombolas em 2016 sofreu
corte de 80%, se comparada com a destinação de 2015. Assim, passados 484 anos
do início da escravidão negra no Brasil, outros 128 anos da sua abolição formal
e inconclusa e, ainda, outros 28 anos da promulgação da Constituição Federal
que finalmente reconheceu às comunidades quilombolas direitos às suas terras
tradicionais, para o ano de 2016 estão destinados para titulação de territórios
quilombolas apenas 5 milhões de reais, em contraposição aos 25 milhões
destinados ano passado. Mais uma vez é a população negra que sofre no momento
de arrocho econômico do Estado: o corte orçamentário mais profundo é na carne
negra.
A destinação
orçamentária para a política quilombola nunca esteve à altura das necessidades
da política federal, ainda que em alguns momentos históricos tenha apresentado
pequenos avanços. O quadro abaixo apresenta a evolução da destinação
orçamentária da política de titulação de territórios quilombolas desde sua
criação.
Fonte: Lei Orçamentária Anual |
Realizando
uma avaliação da eficiência do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
(INCRA) quanto ao trabalho realizado, isto tendo em referência o recurso a este
órgão destinado para a titulação dos territórios quilombolas de 2009 a 2015,
observa-se que, conforme o quadro abaixo, apenas nos anos de 2012 e 2015 a
execução orçamentária esteve aquém do quanto disponível para desapropriações,
quando foram executados, respectivamente, 92% e 57% da verba disponível.
Fonte: Lei Orçamentária Anual |
Assim,
apesar de desde 1988 a Constituição Federal garantir às comunidades quilombolas
o direito fundamental de acesso aos seus territórios tradicionais, o INCRA
titulou por completo apenas 30 comunidades, sendo que outras 23
foram parcialmente tituladas, não abrangendo a totalidade das áreas das
comunidades. Abaixo segue um quadro que evidencia o ritmo das titulações de
territórios quilombolas ao longo do tempo, analisando-se o desenvolvimento a
partir das principais fases dos processos de titulação.
Fonte: Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária |
Relevante
destacar que atualmente existem 36 territórios quilombolas em fase final de
avaliação para desapropriação pelo INCRA, situação que levaria a desapropriar
cerca de 800 imóveis em favor de comunidades quilombolas. A estimativa do INCRA
para o pagamento das indenizações dessas desapropriações é de R$ 425 milhões.
Assim, com um orçamento de apenas 5 milhões de reais, que corresponde a apenas
1,17% da demanda já existente para desapropriações, são os quilombolas que
pagarão, muitos com a vida, pela falta de priorização política do Governo
Federal.
Essa
dinâmica de desaceleração da já insuficiente ação do Estado para titular os
territórios das comunidades quilombolas impõe o estabelecimento de um Plano
Nacional de Titulação dos Territórios Quilombolas. Isto, pois atualmente o
Estado não tem metas claras para a titulação de territórios, muito menos um
plano estratégico para que se monitore a execução da política. A Constituição
Federal de 1988, em seu art. 5º, LXXVIII, reconheceu a duração razoável do
processo como direito fundamental. Sabendo que a política pública de titulação
dos territórios quilombolas se dá através de processos administrativos, é
possível afirmar que o Estado brasileiro viola frontalmente a Constituição
também nesse quesito. A adoção de um plano estratégico nacional para as
titulações dos territórios com metas, indicadores e prazos de execução é
juridicamente impositiva, politicamente necessária e moralmente indispensável.
Ademais, à
restrição orçamentária que praticamente inviabiliza o trabalho do INCRA neste
ano de 2016, somam-se outras ameaças aos direitos das comunidades quilombolas.
Neste ano de 2016 a PEC 215 e a Ação Direta de Inconstitucionalidade 3239
serão, novamente, foco de atenção e mobilização das organizações quilombolas,
pois podem desconstituir, ou mesmo restringir, a base jurídica que sustenta a
titulação dos territórios das comunidades quilombolas. Assim, a falta de
priorização política do Governo Federal, somada à grande ofensiva ruralista no
Judiciário e no Legislativo, compõe o cenário desalentador para a política de
titulação de territórios quilombolas neste ano de 2016.
Logo, a dura
restrição orçamentária da política pública de titulação dos territórios
quilombolas não é fruto do acaso. No momento de arrocho financeiro do Estado os
cortes são mais profundos onde não há prioridade política. Esse é o principal
fundamento que relegou a política de titulação de territórios à total
inoperância neste ano de 2016, dado seu orçamento pífio. O projeto político de
país do Governo Federal não tem como prioridade resolver o histórico problema
de excessiva concentração fundiária no Brasil, muito menos viabilizar condições
reais para a reprodução física, social, econômica e cultural das comunidades
quilombolas. Assim, apesar da existência de diversas políticas e programas
federais para a população negra, a falta de recursos impede o avanço real na
efetivação de direitos para a construção da dignidade social do povo negro.
A prioridade
do Governo Federal é alavancar um processo neoextrativista baseado na
exportação de commodities agrícolas e minerais que supostamente equilibram a
balança comercial brasileira. Nesse contexto ainda estão mega projetos
hidrelétricos, ferroviários, hidroviários e portuários, entre outros, que se
destinam a viabilizar a expansão de uma cultura econômica reprimarizada e
subalternizada na geopolítica mundial. Na escala social e econômica mundial
cabe ao Brasil o papel de fornecedor de matéria prima barata para os países
desenvolvidos, sendo que os capitais nacional e internacional são os principais
responsáveis por empurrar o Estado brasileiro para essa degradante posição na
estrutura produtiva mundial.
O setor
agropecuário ligado ao grande capital já tem disponível neste momento R$ 10
bilhões em financiamento de pré-custeio para a safra 2016/2017. Ou seja, o
Governo Federal antecipou 10 bilhões de reais para financiamento da produção de
commodities agrícolas do plano safra que só deve ser anunciado em julho deste
ano. Segundo o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, a
antecipação desse recurso tem o objetivo de “estabilizar a
economia e recuperar o crescimento e o emprego”.
Ou seja, a
política quilombola de acesso à terra não é vista, nem de longe, como ação
social e política de combate às desigualdades sociais estruturais. Ao mesmo
tempo, no final do ano de 2015, no auge da austeridade fiscal seletiva do
Governo Federal, foram disponibilizados R$ 1,5 bilhão apenas financiar o plantio
de 400 mil hectares de cana-de-açúcar. Ainda hoje, a mesma indústria açucareira
que utilizou por quase quatro séculos a mão de obra escrava de negros e negras
tem financiamento e apoio político absolutamente desproporcional quando
comparada com as demandas quilombolas. A escravidão ainda não acabou.
Para Isabela
da Cruz, jovem liderança da comunidade quilombola Paiol de Telha, “o corte no
orçamento do INCRA vai afetar diretamente o andamento dos processos de
titulação que já estão em fase final de desapropriação. Com isso, apesar da
luta quilombola e do fortalecimento do movimento social, a presente geração do
povo quilombola pode não viver para ver o resultado”. No ano de 2015 faleceu a
liderança quilombola Domingos Gonçalvez dos Santos, aos 86 anos. Após lutar por
mais de quarenta anos pela titulação de seu território e ver, em outubro de
2014, o INCRA assinar a portaria de reconhecimento das terras da comunidade
Paiol de Telha, não viveu para ver a titulação do território, que até hoje não
se efetivou.
Esse não é o
primeiro grande desafio que os povos e comunidades quilombolas enfrentam, pois
são mais de quinhentos anos de lutas, vitórias e derrotas contra o colonialismo
racista que oprime o povo negro nas Américas. Os capitais nacionais e internacionais
turbinam e determinam a priorização política estatal relativa às atividades
neoextrativistas, como se este fosse um suposto modelo de desenvolvimento para
a nação. Nesse contexto, o achatamento do orçamento quilombola é sintoma de uma
política que deve ter como foco de luta popular a superação do atual modelo
macroeconômico capitalista, que subordina os interesses do povo e do Estado
brasileiro aos interesses do capital. Que Xangô nos guie nessa luta!
Fonte:
Terra de Direitos, 22 de fevereiro de 2016.
*Leia ainda:Cortes orçamentários comprometem a titulação de terras quilombolas (Comissão
Pró-Indio de São Paulo)