Por Gerson Teixeira*
Em sua coluna na Folha, Retrocesso
("Mercado", 20/09), a senadora Kátia Abreu reagiu ao suposto
anacronismo da demanda formulada pelo MST aos presidenciáveis, relativa à
atualização dos índices de produtividade usados para a aferição dos graus de
eficiência produtiva pelas grandes propriedades rurais.
A senadora declara que “não há terras improdutivas
no Brasil, salvo marginalmente” e que “a questão da produtividade desapareceu
da pauta política, tendo se tornado o agronegócio grande motor da economia”. Na
avaliação da colunista essa pauta do passado contrasta com a garantia da
segurança jurídica para as fazendas do agronegócio.
O restante do artigo é dedicado à exortação
acrítica do desempenho econômico do agronegócio e dos supostos padrões de
excelência das grandes fazendas, uma pregação ideológica atualmente em voga
para desqualificar a agenda democratizante e de sustentabilidade no campo.
De plano desconsidera que as áreas rurais no
Brasil estão longe de expressar um monolito social. Nessa direção, parece tão
equivocada como pretenciosa a tentativa de condenar ou definir ‘o ponto’ da
agenda do campo. Por suposto, os interesses dos trabalhadores rurais e
camponeses, em geral, se opõem radicalmente aos dos grandes fazendeiros e, mais
ainda, dos latifúndios improdutivos.
A Senadora deveria ter razão ao afirmar que não
existe latifúndio improdutivo. Afinal, com a atual avaliação da produtividade
com base em indicadores de 40 anos atrás, qualquer latifúndio precariamente
explorado seria produtivo. Mas nem assim isso ocorre. Segundo o Incra, das
130,5 mil grandes propriedades rurais, 69,2 mil são improdutivas. Estas detêm
228,5 milhões de hectares; área mais de duas vezes superior ao conjunto das
áreas indígenas no país, estimado em 112 milhões de hectares. Ou seja,
considerando a população total de 818 mil indígenas conclui-se que os índios,
acusados no artigo de invasores de terras, ocupam 137 hectares per capita,
enquanto cada latifundiário improdutivo ocupa 3.300 hectares.
Nos marcos de um debate civilizado e sério, as
lideranças ruralistas deveriam apoiar a atualização dos índices de produtividade.
Primeiro, por coerência com a pregação da segurança jurídica no campo. Afinal,
a autora do artigo, até pela condição de Senadora da República, deveria ser a
primeira a defender o cumprimento das Leis. A atualização desses índices é
determinada pelo art. 11, da Lei nº Lei nº 8.629, de 1993, mas ignorado pelos
sucessivos governos.
Na prática, os latifundiários ainda estão
desobrigados de um princípio supremo para a legitimação do direito de
propriedade: a função social. Ocorre que as forças políticas conservadoras
conseguiram inserir no texto constitucional o parágrafo único do Art. 186 da
Constituição determinando “tratamento especial para a aferição do cumprimento
da função social pela propriedade produtiva”. Até hoje essa qualificação foi
ignorada pela legislação infraconstitucional. Com isso, a grande propriedade
que atende aos requisitos dos graus de utilização e de eficiência da exploração
se mantém imune à desapropriação, ainda que escravize trabalhadores, destrua e
contamine os recursos naturais e envenene a mesa dos brasileiros.
Não obstante, para evitar ou dificultar a
desapropriação mesmo das grandes propriedades improdutivas, a gestão da
política agrária passou a ignorar a exigência da atualização dos índices de
produtividade. Assim, latifúndios improdutivos são fraudulentamente convertidos
em produtivos, tornado a grande propriedade rural, mesmo que improdutiva, imune
à ‘desapropriação sancionatória’. Desapropriação, só quando negociada, o que,
diga-se, não é raro, já que o instrumento foi transformado pelas normas e leis
num ‘negócio da China’ para os latifundiários.
É curioso o ‘ato falho’ presente no artigo. Após
afirmar que não existem terras improdutivas no Brasil, a autora cai na real e
defende os improdutivos, alegando que “ninguém é pouco produtivo porque quer”.
Em suma, num país democrático que tenta avançar o
seu perfil cidadão e civilizatório, é surreal qualificar de retrocesso a
demanda do MST por um padrão ainda tímido à legitimação da propriedade das
grandes áreas rurais.
* Gerson Teixeira é engenheiro Agrônomo,
presidente da Associação Brasileira de Reforma Agrária (ABRA). Publicado
originalmente no sítio Folha.com