Por: Juliana Castro*
Pressão dos ruralistas pode aumentar se o Congresso puder homologar terras
Pressão dos ruralistas pode aumentar se o Congresso puder homologar terras
De
sua rede, o cacique Karai Tatati (ou Miguel Benite, para os brancos) observa
sua tribo. Com olhos amendoados e fiapos de pelo no lugar do bigode, seu rosto
não denuncia os quase 116 anos que garante ter. É com essa experiência de vida
que o cacique avalia um projeto que tramita tão longe dele, em Brasília, mas
que o atinge bem ali, naquela imensidão verde, assim como afeta seus pares
entranhados na Amazônia ou em qualquer outra parte do país.
—
Esse projeto não vai ser bom para a gente, não — diz o cacique, pai de oito
filhos e avô de tantos netos que até já parou de contar.
O
projeto ao qual Miguel Benite se refere é a Proposta de Emenda à Constituição
(PEC) de número 215, protocolada em 2000. O texto muda o rito de demarcação de
terras. Na prática, tira das mãos do presidente da República o poder de
homologar as áreas indígenas e o repassa ao Congresso. Com isso, os índios
temem sair perdendo para a bancada ruralista. O receio é que a pressão de
fazendeiros impeça, atrase e diminua as demarcações. A Fundação Nacional do
Índio (Funai) diz que 240 áreas que estão nas fases que antecedem a homologação
podem ser afetadas se o projeto passar no Congresso. A questão pode ir parar no
Supremo Tribunal Federal (STF).
Depois
de 15 anos parado, o texto foi aprovado por 21 votos a zero na comissão
especial. A aprovação definitiva depende de dois turnos de votação na Câmara e
no Senado, com os votos de, pelo menos, 308 deputados e 49 senadores. Com ou
sem a Funai, as tribos não têm ficado de braços cruzados e se organizam para
enfrentar a batalha contra a PEC.
No
Estado do Rio, quatro aldeias podem ser afetadas. Todas ficam em Paraty, no Sul
Fluminense, e são da etnia Guarani. O GLOBO visitou duas delas: a Aldeia Itaxe
Mirim, do cacique Miguel Benite, às margens da Rodovia Paraty-Mirim, e a Tekoha
Jevy, na Serra da Bocaina. A primeira está a 16 quilômetros do Centro de
Paraty, e a segunda, a 25 quilômetros de via asfaltada, quatro de chão e mais
uma trilha. As duas convivem com Tvs e celulares, mas preservam um dos traços
mais marcantes de sua cultura: a língua. Entre eles, só se fala em guarani.
Na
aldeia em Paraty-Mirim há casas com antenas de TV e celular, mas internet só
mesmo em lan houses. É em uma delas, no Centro de Paraty, que Ivanilde Pereira
da Silva vai semanalmente. Ela paga R$ 3 por uma hora de internet. No Facebook,
lideranças indígenas mantêm um grupo em que trocam informações sobre o projeto
e se articulam. Agora, planejam até ir a Brasília. Ivanilde acompanha também
notícias de outras tribos em estão em conflito com fazendeiros.
—
Dizem que o índio que anda com roupa não é índio, e não é isso. Saber o que
você é e de onde você veio é o que preserva a sua cultura – afirma Ivanilde.
A
aldeia do cacique Miguel Benite e de Ivanilde foi homologada em 1996, quando
apenas cinco famílias moravam no local. A tribo aumentou, nasceram os filhos
dos filhos e, hoje, há cerca de 180 pessoas distribuídas em 48 famílias. Há
três anos eles solicitaram a ampliação da terra, pois não há mais espaço para
construir casas e plantar. O terreno é íngreme e com muitas pedras.
A
PEC proíbe a ampliação dos limites de uma terra já demarcada. Quando uma tribo
faz o pedido, precisa passar novamente por todo um processo para a homologação.
Por outro lado, na versão anterior do projeto, todas as demarcações já
existentes seriam revistas. Este ponto foi retirado.
Embrenhada
no meio da Serra da Bocaina, a aldeia Tekoha Jevy, com 33 índios, deu início ao
processo para a demarcação em 2008, mas até hoje não conseguiu passar nem da
primeira fase.
—
O país é tão grande, por que querem tirar as terras dos índios? – pergunta
Neusa Taquá, de 26 anos, que representa a tribo nos encontros com outras
aldeias da região.
Mesmo
ali, no alto da serra, os índios têm televisão e pagam R$ 100 pelo acesso à
internet. É assim que Neusa acompanha a tramitação da PEC e foi como soube da
votação do relatório, de autoria do deputado federal Osmar Serraglio (PMDB-RS),
na comissão especial.
Em
entrevista ao GLOBO, o peemedebista disse que os parlamentares buscaram apenas
regulamentar uma decisão do STF. No entendimento de Serraglio, em julgamento
sobre a demarcação da Raposa Serra do Sol (RR), a Corte decidiu que só as
tribos que estivessem na terra em 1988 poderiam pleitear a homologação. A Funai
discorda. Diz que o entendimento é apenas para o caso analisado e não para as
demais terras indígenas. E que, além disso, muitos índios foram removidos de
suas terras e tiveram de se fixar em outro lugar. Mas, se o objetivo era apenas
regulamentar uma decisão do Supremo de demarcar terras ocupadas antes de 1988,
por que os deputados passaram o poder do Executivo para os congressistas?
—
Porque o Executivo não obedece ao Supremo. A Funai não obedece ao Supremo –
explica o deputado.
O
relator acrescenta que, sem o marco, um grupo de índios pode ocupar uma área
qualquer e pedir demarcação. Ele afirma que a PEC “é um contraponto aos
segredos da Funai” e que os processos ficarão mais transparentes. Serraglio
garante que não haverá lentidão nas demarcações porque elas terão o rito de
medida provisória:
—
Deixem de ser manipulados pela Funai e vejam que a PEC está lhes dando
segurança jurídica. Não haverá engavetamento – diz aos índios.
Neusa
Taquá diz não acreditar que a PEC traga benefícios:
—
Estão votando contra nossa vida, e nós estamos rezando para isso não acontecer.
A lei de Deus é muito maior.
*Fonte: O Globo