Durante 2 dias de inspeção, várias
instituições constataram violação sistemática de direitos assegurados na
Constituição, nas leis e no licenciamento da usina
No próximo dia 13 de junho não vai
haver a tradicional festa de Santo Antônio, na Comunidade Santo Antônio, que
existia desde a década de 70, entre a rodovia Transamazônica e o rio Xingu, em
Altamira, no oeste do Pará. Não há mais a comunidade, uma das primeiras a ser
dissolvida porque ficava no caminho da usina de Belo Monte. As 252 casas foram
demolidas e os moradores, agricultores e pescadores que levavam o modo de vida
tradicional das comunidades rurais da Amazônia, transferidos para cidades da
região, longe do rio Xingu. Onde ficava o campo de futebol da comunidade, há
hoje um estacionamento para os funcionários da Norte Energia e do Consórcio
Construtor de Belo Monte.
“A destruição do modo de vida
ribeirinho e a transformação compulsória de populações tradicionais que sempre
tiraram o sustento do rio e da terra em moradores desempregados e subempregados
da periferia de Altamira é prova definitiva de que as regras do licenciamento
da usina, maior obra civil promovida pelo governo federal, não estão sendo
cumpridas”, afirma a procuradora da República Thais Santi. Após receber dezenas
de denúncias de ribeirinhos no escritório do Ministério Público Federal (MPF)
em Altamira, a procuradora decidiu convocar várias instituições para fazerem
uma inspeção nas áreas atingidas pela usina e verem pessoalmente a tragédia
social provocada na região. A inspeção ocorreu nos dias 1 e 2 de junho e
constatou a dissolução de famílias, a destruição de comunidades tradicionais e
a impossibilidade de que os atingidos possam reconstruir suas vidas após a
remoção.
“Não foram só as máquinas chegarem e
derrubarem as casas, foi a destruição dos nossos sonhos, dos vínculos de
amizade. Para a Norte Energia não existe direito. Eu olho para um lado e não
vejo mais meu filho, olho para o outro e não está mais o meu compadre, olho
para frente e não tem mais o agente de saúde, nem o vizinho que rezava”, disse
o pescador Hélio Alves da Silva, um dos moradores de Santo Antônio, a
comunidade dissolvida há 3 anos. Todos os moradores perderam seu sustento e não
tem mais como pescar nem plantar. Hélio mora em Altamira, em um bairro muito
distante do centro e vive de bicos, como pedreiro, nas cidades vizinhas.
“Se eu não tivesse aprendido a ser
pedreiro, estava passando fome. Não tem ninguém para quem a vida tenha
melhorado. Todos nós estamos impedidos de pescar”. A afirmação de Hélio foi
repetida por todos os ribeirinhos visitados pela equipe de inspeção, que foi
coordenada pelo MPF e incluiu representantes do Ibama (Instituto Brasileiro de
Meio Ambiente), Funai (Fundação Nacional do Índio), CNDH (Conselho Nacional de
Direitos Humanos), ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da
Biodiversidade), DPU (Defensoria Pública da União) e DPE (Defensoria Pública do
Estado), além de vários pesquisadores, entre eles Mauro Almeida, da Unicamp,
Manoela Carneiro da Cunha, da USP e Sônia Magalhães, da UFPA.
Durante dois dias, os grupos de
inspeção visitaram 15 ilhas e beiradões do Xingu tomando o depoimento de
pescadores e ribeirinhos. Também foram até os locais para onde essas pessoas
estão sendo removidas e para áreas onde a empresa diz haver projetos de
reassentamento coletivo, mas até agora nada foi construído. A conclusão da
inspeção é taxativa: os direitos constitucionais das populações tradicionais do
Xingu estão sendo frontalmente violados pela empresa e é necessário readequar
as remoções para que cumpram o licenciamento e o Projeto Básico Ambiental de
Belo Monte, assegurando os direitos dos ribeirinhos.
A violação já foi reconhecida
oficialmente pelo Ibama em nota técnica enviada à Norte Energia. “A condição do
atingido não deve ser observada do ponto de vista unicamente territorial e
patrimonialista, e sim reconhecer uma situação onde prevalece a identificação e
o reconhecimento de direitos e de seus detentores, evoluindo significativamente
na amplitude com que procura assegurar a recomposição, e mesmo melhoria, das
condições de vida das populações afetadas”, diz a nota.
Dona Maria Luiza Moreira é chamada
pelos vizinhos de Cláudia e mora desde criança na Ilha Moriá, alguns
quilômetros rio acima de Altamira. Sempre foi agricultora e pescadora. A ilha
será alagada pelo reservatório de Belo Monte e a Norte Energia foi até o local
avisar que ela teria que sair de lá e teria a casa demolida. Analfabeta e sem
nenhuma assistência jurídica, assinou um documento em que constavam três opções
de remoção: a indenização de benfeitorias, o reassentamento rural coletivo e o
reassentamento rural individual. Mas a ela só foi dada uma opção, a indenização
por benfeitorias. De acordo com a empresa, a ilha onde Cláudia sempre viveu e
pescou não era local de moradia nem trabalho, era apenas de lazer. Pela roça,
pela casa e pela terra, recebeu R$ 9 mil. Ao Xingu, não tem mais acesso.
Ela foi obrigada a trabalhar como
faxineira e lavadeira em Altamira, mas não se conforma. Durante a inspeção,
mostrou seu lugar e disse “que seria bom se me dessem uma terra para eu levar a
vida que eu sempre levei, porque eu nasci e fui criada assim, onde tem muita
água”. “Lá pra rua (é assim que os ribeirinhos se referem à cidade) eu
já não gosto”. Na casa onde a Norte Energia a colocou, no reassentamento urbano
Jatobá, há problemas de abastecimento de água. Ela relatou passar até uma
semana sem água. A inspeção visitou dona Cláudia no dia 2 de junho. Hoje
(3) a casa dela foi demolida pela Norte Energia.
O pescador José Arnaldo da Costa
Pereira recebeu R$ 24 mil por tudo que conquistou em uma vida de trabalho. Mas
não é a quantia irrisória que o incomoda. “Tiram a gente do sossego da gente,
onde a gente tem nossos pés de macaxeira, nossas galinhas, onde nasceu e criou
os filhos para mandar a gente pra cidade e ficar naquela zoada, com ladrão para
todo lado. Eu sou pescador e não tenho de onde tirar meu sustento a não ser no
rio”, disse à equipe de inspeção.
No beiradão chamado Bom Jardim, Maria
Carmina Souza da Silva e Antonio Carlos Souza da Silva vivem há 38 anos em um
sítio com galinhas, pés de cupuaçu, cacau, acerola, laranja, limão. Na roça
plantam arroz, feijão, milho, mandioca. No rio pescam piau, matrinchã,
curimatã, pescada e pacu. Segundo a Norte Energia, o sítio vai ser alagado e
eles terão que se mudar para a beira de uma estrada. Como não foram
consideradospela empresa merecedores de uma casa, receberam uma
indenização que teve que ser dividida entre os irmãos e a parcela deles não é
suficiente para comprar um terreno.
Além da retirada da casa e do sustento
dos pescadores e ribeirinhos, existem situações não reconhecidas de dupla
moradia, de moradores dos rios da região que sempre mantiveram casa em Altamira
para resolver questões na cidade. São extrativistas de vários locais que foram
obrigados a optar entre uma casa ou outra, apesar de ambas serem de propriedade
deles. “Quando você diz para um pescador que ele tem que escolher entre ser
rural e ser urbano, você está dizendo qual parte dele ele vai abrir mão, o que
implica em deixar de ser pescador”, diz a procuradora Thais Santi. A casa
na cidade faz parte das posses das famílias ribeirinhas e é necessária para
acessar equipamentos públicos, para que os filhos estudem, para a venda dos
produtos da terra e do rio.
“O conceito de moradia aplicado pela
Norte Energia está desassociado da realidade da região. A realidade da região
não foi estudada, não está sendo respeitada e com isso está se tolhendo as
pessoas de continuarem sendo pescadores. Como pode, a um pescador que nasceu e
cresceu no rio e quer continuar sendo pescador, vocês darem a opção de morar na
Transamazônica? Não existe nenhuma oferta próxima ao rio”, questionou Santi.
“A situação que vimos, de pessoas
humilhadas, violadas, afrontadas pelo empreendedor torna Belo Monte um dos
piores exemplos de licenciamento de hidrelétricas no país. As violações que
constatamos são até mais graves do que em usinas feitas durante a ditadura
militar. Não se pode destruir o modo de vida de populações tradicionais,
eliminar tradições, conhecimento tradicional e o sustento dessas pessoas ”,
disse o procurador Felício Pontes Jr, que também participou da inspeção.
O resultado foi apresentado hoje (3) à
Norte Energia em reunião com o superintendente de assuntos fundiários da
empresa, Arlindo Miranda. “Nossa orientação é debater sempre, desde que não
interfira na autonomia da empresa. Existem os interesses dos acionistas, então
não temos autonomia para compor determinados compromissos”, disse. Um relatório
consolidado da inspeção deve ser enviado aos órgãos do governo responsáveis
pela usina até a semana que vem. Enquanto a situação não é corrigida, o MPF vai
recomendar a suspensão das remoções de ribeirinhos.
Fonte: Ministério Público Federal no Pará - Assessoria de Comunicação