Durante vários anos a Eletronorte, criada em 1973, operou com prejuízo. Seu patrimônio líquido chegou a ser o mais negativo do Brasil. Ela era dona da quarta maior hidrelétrica do mundo, a de Tucuruí, no rio Tocantins, no Pará. Mas seus dois maiores clientes, que eram também os maiores consumidores de energia do país – e as duas maiores fábricas de alumínio brasileiras (embora de composição multinacional), a Albrás, em Belém, e a Alumar, em São Luís do Maranhão – tinham subsídio tarifário concedido pelo governo federal. Recebiam a energia abaixo do custo de produção.
A Eletronorte fechava as suas contas no vermelho, até que a Eletrobrás
absorveu as suas dívidas e, em seguida, a própria subsidiária. A um preço
estrondoso. A hidrelétrica de Tucuruí começou a ser construída com orçamento de
2,1 bilhões de dólares. A própria Eletronorte chegou a admitir que o preço
subiu para US$ 7,5 bilhões (valor histórico). Pode ter ido além de US$ 10
bilhões, mas o cálculo ficou difícil com a incorporação do remanescente da
dívida pela Eletrobrás. O que se sabe é que, no fim, a conta foi bancada pelo
tesouro nacional – quer dizer, pelo contribuinte.
Foi assim na era completamente estatal dos grandes projetos
hidrelétricos na Amazônia. E agora, em que o comando supostamente está com a
iniciativa privada? Devia ser assim, mas a responsabilidade ficou difusa. As
estatais do setor energético participam dos três maiores empreendimentos em
curso – Santo Antonio e Jirau, no rio Madeira, em Rondônia, já em operação
parcial, e Belo Monte, no Xingu, no Pará, com previsão de entrar em linha no
início do próximo ano. Também os fundos federais de pensão partilham as
despesas. E o BNDES é o grande agente financeiro, fornecendo crédito abaixo do
custo de mercado.
A cobrança não será tão ostensiva e pesada quanto durante o regime
militar, que agia combinando (ou tentando conciliar) a aliança com as
multinacionais e suas diretrizes geopolíticas, mas sobrará novamente para o
contribuinte, que já está recebendo uma das energias mais caras do mundo, num
país em que mais de dois terços da geração vem dos rios, a fonte mais barata de
todas. Só que na Amazônia, mesmo com a ajuda do Estado, as coisas não só se
tornam mais difíceis como estão sujeitas a surpresas.
Dificuldades e imprevistos têm sido tais que uma questão que já devia
estar perfeitamente definida ainda inquieta: essas usinas serão mesmo
rentáveis? Depois da travessia de problemas de várias origens e
características, elas ainda se manterão viáveis economicamente?
Para que sua construção não fosse interrompida (e o fluxo de muito
dinheiro necessário para executar obras tão pesadas pelas empreiteiras, fonte
permanente de caixa dois), mudanças foram improvisadas nos projetos originais.
O resultado dessa trajetória ainda não parece bem apurado. A margem de
incerteza vai se revelando perigosamente alta.
É o que se pode deduzir da entrevista dada pelo presidente da Engie
Brasil, Maurício Bahr, à revista eletrônica especializada Canal Energia. Ele
reivindicou da Aneel um tratamento diferenciado para as hidrelétricas do
Madeira. Sustenta a necessidade de uma solução equilibrada para resolver os
atrasos das duas usinas. Para ele, o rigor na cobrança pode levar ao risco “de
se cobrar uma conta incapaz de ser paga pelo projeto”.
Diz que a implantação dos projetos “talvez não tenha acontecido nem para
o governo nem para os empreendedores da forma como se esperava”, Os imprevistos
exigiriam uma forma de tratamento que não iniba os futuros investimentos em
hidrelétricas. “Esperamos que haja um entendimento de que esses projetos
precisam ter um tratamento diferenciado para que continue havendo
empreendedores com coragem de fazê-los no futuro”, declarou.
A empresa por ele presidida, a Engie, ex-GDF Suez, é uma das sócias da
Energia Sustentável do Brasil, controladora da usina de Jirau. Dos seus 3.750
megawatts de capacidade nominal (é a sétima maior do Brasil), ela já está
gerando 2.100 MW em 33 das suas 44 turbinas bulbo. Mas seu cronograma está
atrasado em relação ao que a empresa se comprometeu a cumprir quando venceu a
licitação. Em abril, a Aneel negou aos construtores das hidrelétricas Belo
Monte, Santo Antônio e Jirau o reconhecimento de excludentes de
responsabilidade pelo atraso das obras.
O executivo defendeu uma abordagem de longo prazo para o acompanhamento
dos projetos, que, sendo de mais demorada maturação, atravessam governos,
precisando de continuidade e coerência para que se estabeleça um ambiente de
confiança para o empreendedor.
“Hoje a gente está vivendo, além de uma seca, um conjunto de coisas que
levaram a atrasos de obras de linhas de transmissão, causando esse
desequilíbrio. Esse desequilíbrio precisa ser bem tratado pelos agentes, pela
agência reguladora, pelo ministério. A partir do tratamento desses
desequilíbrios e de aprimoramento das regras do setor, a gente vai conseguir
sair dessa situação e reabrir uma janela de investimentos”, concluiu.
Para alguns observadores, essas afirmativas não passam de uma tentativa
de se livrar de responsabilidades, reduzir custos e aumentar o faturamento e o
lucro. Se essa é a regra do procedimento das empresas, é impossível, porém,
ignorar a realidade. As grandes hidrelétricas em andamento na Amazônia se
desviaram do seu traçado projetado.
O ponto de chegada se tornou impreciso. Sem deixar de apurar e cobrar as
responsabilidades e evitar os abusos, é preciso encarar um fato: as
hidrelétricas existem, não podem ser implodidas e vão exigir um tratamento
adequado para serem úteis e proveitosas para os brasileiros (se possível e de
preferência para quem mora na área onde elas se localizam).
Por fim: uma vez resolvidos os problemas, que se aja preventivamente
para que eles não se repitam. A Amazônia exige uma atenção e uma sensibilidade
especiais para não se tornar vítima dos seus desbravadores.
*Publicado
originalmente no blog de Lúcio Flávio Pinto.