Um grupo de arqueólogos vinculados a diversas Universidades e instituições de pesquisa brasileiras lançou uma nota em que se manifesta sobre a realização de um sítio- escola por uma empresa privada de consultoria em arqueologia na área impactada pela Usina Hidrelétrica de Belo Monte, controvertida obra de infraestrutura do governo federal em construção no Pará.
A seguir, a íntegra do posicionamento
em que os arqueólogos afirmam que consideram “grave o fato de que o Estado não exigiu
nenhum trabalho etnoarqueológico neste empreendimento, isolando os arqueólogos
das comunidades tradicionais locais.”
Posicionamento sobre atividades de ensino de
arqueologia propostas no âmbito da usina hidrelétrica de Belo Monte – Pará,
Brasil
Na condição de docentes e pesquisadores em
Arqueologia, vimos nos manifestar sobre a proposta de realização de um sítio
escola na área impactada pela Usina Hidrelétrica de Belo Monte, recentemente
divulgada por empresa de consultoria através do site da SAB (Sociedade de
Arqueologia Brasileira).
Esta obra segue a descumprir as condicionantes do
licenciamento ambiental e vem gerando irreversível desestruturação sobre as
formas de vida dos povos indígenas e comunidades tradicionais da região. Foi
acusada de causar um etnocídio indígena pela Procuradora Federal da República,
Thaís Santi,[1] também
por afetar e violar direitos fundamentais dos demais povos tradicionais com
remoções forçadas[2] e
degradação ambiental.
Consideramos grave o fato de que o Estado não exigiu
nenhum trabalho etnoarqueológico neste empreendimento, isolando os arqueólogos
das comunidades tradicionais locais. Tampouco está claro se o destino da
coleção arqueológica resgatada será a cidade de Altamira e se o material estará
disponível para os descendentes das populações que ocuparam essa região.
Em Belo Monte o resgate do patrimônio arqueológico tem
assumido uma conotação fetichista, ou seja, é o resgate do patrimônio por ele
mesmo – algo que a lei prevê, mas que devemos começar a questionar e propor
alternativas que sejam igualmente respaldadas pela legislação. Tentar
reconstruir a história dentro de um processo que acaba com a possibilidade de
transmissão de conhecimentos para as próximas gerações nos parece um paradoxo.
Naturalizar e mercantilizar este processo, que leva à destruição ambiental e
que representa a desestruturação cultural dos povos – que, em muitos casos,
podem ser descendentes daqueles que produziram o patrimônio arqueológico que
está sendo escavado – implica participar de um processo totalitário.
Preocupações semelhantes levaram a Sociedade de
Arqueologia Brasileira em reunião da SAB Norte em agosto de 2014 a aprovar, em
Assembleia Geral na cidade de Macapá, estado do Amapá, uma moção de
Solidariedade para com os Povos do Tapajós. Um apelo foi feito aos colegas de profissão
para não participar do licenciamento ambiental das hidrelétricas da Bacia do
Tapajós, enquanto a consulta livre, prévia e informada (conforme estipulada
pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, OIT e da qual o
Brasil é signatário), não fosse efetuada entre os povos indígenas e comunidades
tradicionais afetadas e reconhecida como tal pelo Ministério Público Federal.
No dia 15/06/2015 o juíz federal Ilan Presser suspendeu o licenciamento da
hidrelétrica de São Luíz do Tapajós e determinou a necessidade de realização da
referida consulta.
Acreditamos que um sítio escola deva, antes de tudo,
ser norteado por uma perspectiva de ensino pautada por preceitos teóricos
explícitos, onde a metodologia aplicada e a ética profissional estejam
alinhadas para que os estudantes participem de um processo de formação
integral, o que necessariamente inclui o desenvolvimento de um senso crítico em
relação ao contexto social em que atuam. Hoje, em pesquisas arqueológicas em
áreas que envolvem povos originários e comunidades tradicionais, não é mais
possível desconsiderar o contexto social circundante e desenvolver projetos
ignorando ou alienando seus moradores. Perguntamos se é correto para a formação
de novos arqueólogos realizar pesquisa e ensino em situações onde os seus
fundamentos não atendam aos pressupostos humanitários e ambientais elementares
sugeridos pela ONU e seus diversos organismos.
Por estes motivos, manifestamos publicamente nossa
contrariedade à proposta tal como ela foi divulgada, recomendando que ela não
seja implementada. Propomos ainda discutir a criação de um protocolo único pelo IPHAN, na forma de uma portaria e com
termos de referência específicos para cada caso, que definam com transparência
todos os passos da pesquisa arqueológica em contextos onde há povos indígenas
ou tradicionais, ou mesmo grupos sociais que vivam nos locais afetados. Uma
proposta deste tipo implica, ainda, a participação do Ministério Público
Federal, da FUNAI (Fundação Nacional do Índio), da Fundação Palmares, de
movimentos sociais, da SAB e de outros setores da sociedade nacional. Isto
deveria envolver também a obrigatoriedade da divulgação e da publicação
detalhada dos resultados dentro de um período previamente estipulado,
igualmente dentro de um protocolo único e rigoroso.
Brasil, 24 de junho de 2015.
Firmamo-nos aqui,
· Anderson Márcio Amaral Lima – Técnico do
Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá;
· Anne Rapp Py-Daniel – Docente da Universidade
Federal do Oeste do Pará;
· Ariana Silva Braga – Doutoranda da Universidade
Trás-os-Montes e Alto Douro;
· Bruna Cigaran da Rocha – Docente da
Universidade Federal do Oeste do Pará;
· Bruno Sanches Ranzani da Silva – Doutorando
do MAE/Universidade de São Paulo;
· Camila Pereira Jácome – Docente da
Universidade Federal do Oeste do Pará;
· Carla Gibertoni Carneiro – Educadora
do MAE/Universidade de São Paulo;
· Célia Maria Cristina Dermatini – Apoio ao
Ensino e Pesquisa do MAE/Universidade de São Paulo;
· Cínthia Moreira – Docente da Universidade
Federal do Oeste do Pará;
· Claide de Paula Moraes – Docente da
Universidade Federal do Oeste do Pará;
· Cláudia Turra Magni – Docente da Universidade Federal
de Pelotas;
· Cristiana Barreto – Pós-doutoranda do
MAE/Universidade de São Paulo;
· Daniella Magri Amaral – Doutoranda
do MAE/Universidade de São Paulo;
· Eduardo Bespalez – Docente da Universidade
Federal de Rondônia;
· Eduardo Góes Neves – Docente do MAE/Universidade de
São Paulo;
· Eduardo Kazuo Tamanaha – Pesquisador
do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá;
· Elisangela Regina de Oliveira – Docente da
Universidade Federal de Rondônia;
· Erêndira Oliveira – Mestranda do MAE/Universidade
de São Paulo;
· Fabiana Rodrigues Belem – Doutoranda
do MAE/Universidade de São Paulo;
· Fábio Guaraldo de Almeida – Mestre em
Arqueologia;
· Fabíola Andréa Silva – Docente do MAE/Universidade de
São Paulo;
· Francisco Antônio Pugliese Junior – Doutorando
do MAE/Universidade de São Paulo;
· Francisco Forte Stucchi – Mestre em
Arqueologia;
· Francisco Silva Noelli – Professor
aposentado da Universidade Estadual de Maringá;
· Gabriela Prestes Carneiro – Docente da
Universidade Federal do Oeste do Pará;
· Grasiela Tebaldi Toledo – Doutoranda
do MAE/Universidade de São Paulo;
· Guilherme Zdonek Mongeló – Doutorando
do MAE/Universidade de São Paulo;
· Gustavo Jardel Coelho – Graduando
da Universidade Federal de Minas Gerais;
· Jaqueline Gomes Santos – Mestranda
do MAE/Universidade de São Paulo;
· Juliana Salles Machado –
Pós-doutoranda do MAE/Universidade de São Paulo;
· Kelly Brandão Vaz da Silva –
Colaboradora do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá;
· Laura Pereira Furquim – Mestranda
do MAE/Universidade de São Paulo;
· Lorena Gomes Garcia – Doutoranda do MAE/Universidade
de São Paulo;
· Luciano Pereira da Silva – Docente da
Universidade Estadual do Mato Grosso;
· Lúcio Menezes Ferreira – Docente da
Universidade Federal de Pelotas;
· Márcia M. Arcuri Suñer
– Docente da Universidade Federal de Ouro Preto;
· Marina Nogueira Di Giusto – Mestranda
do MAE/Universidade de São Paulo;
· Márjorie do Nascimento Lima – Mestre em
Arqueologia;
· Maurício André Silva – Educador do MAE/Universidade
de São Paulo;
· Michael Joseph Heckenberger – Docente da
Universidade da Flórida;
· Michel Bueno Flores da Silva – Mestrando
do MAE/Universidade de São Paulo;
· Mikael Correia dos Santos – Historiador
e graduando da Universidade Federal Vale do São Francisco;
· Morgan Schmidt – Arqueólogo;
· Myrtle Pearl Shock – Docente da Universidade Federal
do Oeste do Pará;
· Pedro Henrique Damin – Mestre em Arqueologia;
· Rafael Guedes Milheira – Docente da
Universidade Federal de Pelotas;
· Raoni Bernardo Maranhão Valle – Docente da
Universidade Federal do Oeste do Pará;
· Renan Pezzi Rasteiro – Mestrando do
MAE/Universidade de São Paulo;
· Sarah Kelly Silva Schimidt – Graduanda da Universidade Federal de Minas Gerais;
· Silvia Cunha Lima – Pós-doutoranda do
MAE/Universidade de São Paulo;
· Vanessa Linke – Pesquisadora do MHNJB da Universidade Federal de
Minas Gerais;
· Vera Lúcia Guapindaia – Arqueóloga
· Vinícius Eduardo Honorato de Oliveira – Mestrando
do Institute of Archaeology, University College London;
· Vinícius Melquíades – Doutorando do MAE/Universidade
de São Paulo;
· Will Lucas Silva Pena – Mestrando da
Universidade Federal de Minas Gerais.