sexta-feira, 26 de junho de 2015

Sítio-escola em Belo Monte é questionado por membros da comunidade arqueológica


Um grupo de arqueólogos vinculados a diversas Universidades e instituições de pesquisa brasileiras lançou uma nota em que se manifesta sobre a realização de um sítio- escola por uma empresa privada de consultoria em arqueologia na área impactada pela Usina Hidrelétrica de Belo Monte, controvertida obra de infraestrutura do governo federal em construção no Pará.

A seguir, a íntegra do posicionamento em que os arqueólogos afirmam que consideram  “grave o fato de que o Estado não exigiu nenhum trabalho etnoarqueológico neste empreendimento, isolando os arqueólogos das comunidades tradicionais locais.”


Posicionamento sobre atividades de ensino de arqueologia propostas no âmbito da usina hidrelétrica de Belo Monte – Pará, Brasil

Na condição de docentes e pesquisadores em Arqueologia, vimos nos manifestar sobre a proposta de realização de um sítio escola na área impactada pela Usina Hidrelétrica de Belo Monte, recentemente divulgada por empresa de consultoria através do site da SAB (Sociedade de Arqueologia Brasileira).

Esta obra segue a descumprir as condicionantes do licenciamento ambiental e vem gerando irreversível desestruturação sobre as formas de vida dos povos indígenas e comunidades tradicionais da região. Foi acusada de causar um etnocídio indígena pela Procuradora Federal da República, Thaís Santi,[1] também por afetar e violar direitos fundamentais dos demais povos tradicionais com remoções forçadas[2] e degradação ambiental.

Consideramos grave o fato de que o Estado não exigiu nenhum trabalho etnoarqueológico neste empreendimento, isolando os arqueólogos das comunidades tradicionais locais. Tampouco está claro se o destino da coleção arqueológica resgatada será a cidade de Altamira e se o material estará disponível para os descendentes das populações que ocuparam essa região.

Em Belo Monte o resgate do patrimônio arqueológico tem assumido uma conotação fetichista, ou seja, é o resgate do patrimônio por ele mesmo – algo que a lei prevê, mas que devemos começar a questionar e propor alternativas que sejam igualmente respaldadas pela legislação. Tentar reconstruir a história dentro de um processo que acaba com a possibilidade de transmissão de conhecimentos para as próximas gerações nos parece um paradoxo. Naturalizar e mercantilizar este processo, que leva à destruição ambiental e que representa a desestruturação cultural dos povos – que, em muitos casos, podem ser descendentes daqueles que produziram o patrimônio arqueológico que está sendo escavado – implica participar de um processo totalitário.

Preocupações semelhantes levaram a Sociedade de Arqueologia Brasileira em reunião da SAB Norte em agosto de 2014 a aprovar, em Assembleia Geral na cidade de Macapá, estado do Amapá, uma moção de Solidariedade para com os Povos do Tapajós. Um apelo foi feito aos colegas de profissão para não participar do licenciamento ambiental das hidrelétricas da Bacia do Tapajós, enquanto a consulta livre, prévia e informada (conforme estipulada pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, OIT e da qual o Brasil é signatário), não fosse efetuada entre os povos indígenas e comunidades tradicionais afetadas e reconhecida como tal pelo Ministério Público Federal. No dia 15/06/2015 o juíz federal Ilan Presser suspendeu o licenciamento da hidrelétrica de São Luíz do Tapajós e determinou a necessidade de realização da referida consulta.

Acreditamos que um sítio escola deva, antes de tudo, ser norteado por uma perspectiva de ensino pautada por preceitos teóricos explícitos, onde a metodologia aplicada e a ética profissional estejam alinhadas para que os estudantes participem de um processo de formação integral, o que necessariamente inclui o desenvolvimento de um senso crítico em relação ao contexto social em que atuam. Hoje, em pesquisas arqueológicas em áreas que envolvem povos originários e comunidades tradicionais, não é mais possível desconsiderar o contexto social circundante e desenvolver projetos ignorando ou alienando seus moradores. Perguntamos se é correto para a formação de novos arqueólogos realizar pesquisa e ensino em situações onde os seus fundamentos não atendam aos pressupostos humanitários e ambientais elementares sugeridos pela ONU e seus diversos organismos.

Por estes motivos, manifestamos publicamente nossa contrariedade à proposta tal como ela foi divulgada, recomendando que ela não seja implementada. Propomos ainda discutir a criação de um protocolo único pelo IPHAN, na forma de uma portaria e com termos de referência específicos para cada caso, que definam com transparência todos os passos da pesquisa arqueológica em contextos onde há povos indígenas ou tradicionais, ou mesmo grupos sociais que vivam nos locais afetados. Uma proposta deste tipo implica, ainda, a participação do Ministério Público Federal, da FUNAI (Fundação Nacional do Índio), da Fundação Palmares, de movimentos sociais, da SAB e de outros setores da sociedade nacional. Isto deveria envolver também a obrigatoriedade da divulgação e da publicação detalhada dos resultados dentro de um período previamente estipulado, igualmente dentro de um protocolo único e rigoroso.

Brasil, 24 de junho de 2015.

Firmamo-nos aqui,

·      Anderson Márcio Amaral Lima – Técnico do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá;
·      Anne Rapp Py-Daniel – Docente da Universidade Federal do Oeste do Pará;
·      Ariana Silva Braga – Doutoranda da Universidade Trás-os-Montes e Alto Douro;
·      Bruna Cigaran da Rocha – Docente da Universidade Federal do Oeste do Pará;
·      Bruno Sanches Ranzani da Silva – Doutorando do MAE/Universidade de São Paulo;
·      Camila Pereira Jácome – Docente da Universidade Federal do Oeste do Pará;
·      Carla Gibertoni Carneiro – Educadora do MAE/Universidade de São Paulo;
·      Célia Maria Cristina Dermatini – Apoio ao Ensino e Pesquisa do MAE/Universidade de São Paulo;
·      Cínthia Moreira – Docente da Universidade Federal do Oeste do Pará;
·      Claide de Paula Moraes – Docente da Universidade Federal do Oeste do Pará;
·      Cláudia Turra Magni – Docente da Universidade Federal de Pelotas;
·      Cristiana Barreto – Pós-doutoranda do MAE/Universidade de São Paulo;
·      Daniella Magri Amaral – Doutoranda do MAE/Universidade de São Paulo;
·      Eduardo Bespalez – Docente da Universidade Federal de Rondônia;
·      Eduardo Góes Neves – Docente do MAE/Universidade de São Paulo;
·      Eduardo Kazuo Tamanaha – Pesquisador do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá;
·      Elisangela Regina de Oliveira – Docente da Universidade Federal de Rondônia;
·      Erêndira Oliveira – Mestranda do MAE/Universidade de São Paulo;
·      Fabiana Rodrigues Belem – Doutoranda do MAE/Universidade de São Paulo;
·      Fábio Guaraldo de Almeida – Mestre em Arqueologia;
·      Fabíola Andréa Silva – Docente do MAE/Universidade de São Paulo;
·      Francisco Antônio Pugliese Junior – Doutorando do MAE/Universidade de São Paulo;
·      Francisco Forte Stucchi – Mestre em Arqueologia;
·      Francisco Silva Noelli – Professor aposentado da Universidade Estadual de Maringá;
·      Gabriela Prestes Carneiro – Docente da Universidade Federal do Oeste do Pará;
·      Grasiela Tebaldi Toledo – Doutoranda do MAE/Universidade de São Paulo;
·      Guilherme Zdonek Mongeló – Doutorando do MAE/Universidade de São Paulo;
·      Gustavo Jardel Coelho – Graduando da Universidade Federal de Minas Gerais;
·      Jaqueline Gomes Santos – Mestranda do MAE/Universidade de São Paulo;
·      Juliana Salles Machado – Pós-doutoranda do MAE/Universidade de São Paulo;
·      Kelly Brandão Vaz da Silva – Colaboradora do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá;
·      Laura Pereira Furquim – Mestranda do MAE/Universidade de São Paulo;
·      Lorena Gomes Garcia – Doutoranda do MAE/Universidade de São Paulo;
·      Luciano Pereira da Silva – Docente da Universidade Estadual do Mato Grosso;
·      Lúcio Menezes Ferreira – Docente da Universidade Federal de Pelotas;
·      Márcia M. Arcuri Suñer – Docente da Universidade Federal de Ouro Preto;
·      Marina Nogueira Di Giusto – Mestranda do MAE/Universidade de São Paulo;
·      Márjorie do Nascimento Lima – Mestre em Arqueologia;
·      Maurício André Silva – Educador do MAE/Universidade de São Paulo;
·      Michael Joseph Heckenberger – Docente da Universidade da Flórida;
·      Michel Bueno Flores da Silva – Mestrando do MAE/Universidade de São Paulo;
·      Mikael Correia dos Santos – Historiador e graduando da Universidade Federal Vale do São Francisco;
·      Morgan Schmidt – Arqueólogo;
·      Myrtle Pearl Shock – Docente da Universidade Federal do Oeste do Pará;
·      Pedro Henrique Damin – Mestre em Arqueologia;
·      Rafael Guedes Milheira – Docente da Universidade Federal de Pelotas;
·      Raoni Bernardo Maranhão Valle – Docente da Universidade Federal do Oeste do Pará;
·      Renan Pezzi Rasteiro – Mestrando do MAE/Universidade de São Paulo;
·      Sarah Kelly Silva Schimidt – Graduanda da Universidade Federal de Minas Gerais;
·      Silvia Cunha Lima – Pós-doutoranda do MAE/Universidade de São Paulo;
·      Vanessa Linke – Pesquisadora do MHNJB da Universidade Federal de Minas Gerais;
·      Vera Lúcia Guapindaia – Arqueóloga
·      Vinícius Eduardo Honorato de Oliveira – Mestrando do Institute of Archaeology, University College London;
·      Vinícius Melquíades – Doutorando do MAE/Universidade de São Paulo;
·      Will Lucas Silva Pena – Mestrando da Universidade Federal de Minas Gerais.
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