Por Leonardo Sakamoto*
O Centro de
Monitoramento de Agrocombustíveis da Repórter Brasil está lançando o relatório
“Em terras
alheias – a
produção de soja e cana em áreas Guarani no Mato Grosso do Sul”.
Ao analisar os impactos
e conflitos em seis aldeias, a pesquisa auxilia
a discussão sobre a
corresponsabilidade da cadeia produtiva dessas duas culturas no drama
vivido pelos indígenas
no Estado. Ou seja, como a situação das populações indígenas desse estado, que
ganhou recentemente as redes sociais, se conecta com o dia a dia dos demais
brasileiros. Cana que se torna açúcar e etanol. Soja que entra na composição de
tantos alimentos que é impossível enumerá-los em um só post.
Com base em dados de
órgãos públicos e entrevistas in loco nas aldeias, o trabalho buscou
mapear a incidência de
produtores destas commodities em seis áreas:
as Terras Indígenas
(TIs) Jatayvary, Guyraroká, Takuara e Panambi-Lagoa Rica (já
declaradas pela Funai),
e as áreas Laranjeira Nhanderu e Guaiviry (em estudo
pela Funai).
A divulgação deste
relatório acontece em um momento
em que os conflitos de terra entre
indígenas e produtores rurais têm se
acirrado no Mato Grosso do Sul. No período
entre a realização das pesquisas, em
julho deste ano, e sua divulgação, várias
retomadas de terra pelos Guarani Kaiowá
levaram a novos confrontos e reações
extremadas por parte de fazendeiros (com
ataques à bala a acampamentos e ameaças
explícitas), expondo com força renovada
o histórico drama da luta pela terra vivido
pelos povos indígenas brasileiros.
O reconhecimento legal,
e também pelo setor
produtivo, do direito das populações Guarani Kaiowá a terras
ancestralmente por
elas ocupadas, das quais foram expulsas tanto pelas políticas
públicas do
governo quanto pelo avanço do agronegócio, é um fator essencial
para a
sobrevivência destas populações. Neste sentido, o relatório
apresenta
históricos dos processos de retomada das áreas estudadas
(incluindo dois dos mais
brutais casos de assassinato de lideranças
Kaiowá, os caciques Marcos Veron, na
TI Takuara, e Nizio Gomes, em Guaiviry),
aponta os impactos da produção de
commodities e lista propriedades privadas e
produtores no interior desses
territórios.
Duas usinas no Estado,
São Fernando e Raízen já se
comprometeram a não mais comprar a produção
de cana em áreas indígenas. Tal
medida de responsabilidade socioambiental
empresarial é um primeiro passo no
reconhecimento dos direitos indígenas pelo
setor produtivo, fazendo-se urgente
sua adoção pelas demais usinas
sucroalcooleiras, usinas de biodiesel, traders e
cerealistas.
Abaixo um trecho do
relatório:
O agronegócio brasileiro
é o um dos setores que mais tem crescido nos últimos anos, com apoio sólido do
governo federal. Os recursos destinados às atividades agropecuárias via Plano
Safra têm aumentado na mesma medida, perfazendo R$ 93 bilhões na safra
2009/2010, R$ 100 bilhões na safra 2010/2011, R$ 107 bilhões na safra 2011/2012
e R$ 115,2 bilhões na safra 2012/2013.
Apesar das oscilações
dos preços das commodities agrícolas no mercado internacional, os ganhos se
mantiveram consideráveis em 2012, o que impulsionou os investimentos. De acordo
com a estimativa de safra da Conab, este ano o país produzirá 165,9 milhões de
toneladas de grão, 1,9% a mais do que na safra anterior (no Mato Grosso do Sul,
o aumento foi de 22,9%). A área plantada também aumentou em 2% no Brasil,
ocupando 982,2 mil hectares a mais do que na última safra (no Mato Grosso do
Sul, este aumento foi de 12,8%).
Um dos efeitos do
cenário positivo para o setor foi o aumento do preço das terras. De acordo com
uma análise da consultoria Informa Economics FNP, especializada no mercado
agropecuário, datada de setembro de 2012, o preço das terras no país teve um
aumento de cerca de 32% nos últimos 12 meses. Em maio de 2011, o Mato Grosso do
Sul sofreu um aumento médio de 30% no valor da terra em relação a 2010, índice
que chegou a 100% no norte do estado, de acordo com o Sindicato dos Corretores
de Imóveis de Mato Grosso do Sul.
A valorização do agronegócio e das terras nas últimas décadas tem
tido um efeito preocupante sobre o processo de reconhecimento dos territórios
indígenas, principalmente nas regiões de expansão da fronteira agrícola. Em números totais, por
exemplo, o presidente Fernando Collor de Melo homologou 112 Terras Indígenas
(TIs) entre 1991 e 1992, e entre 1992 e 1994, Itamar Franco homologou 18. Nos
seus oito anos de governo, Fernando Henrique Cardoso homologou 145 TIs. Já no
mandato de Luiz Inácio Lula da Silva ocorreram 79 homologações, e no de Dilma
Rousseff, apenas três.
O setor produtivo – com
apoio, nos últimos anos, do governo estadual – tem exercido uma oposição
ostensiva ao processo de reconhecimento das terras indígenas no Mato Grosso do
Sul. Por outro lado, no entanto, a trágica situação dos Kaiowá também levou a
um movimento mais amplo e intenso de reconhecimento de suas características
sócio-culturais e de seus direitos ancestrais, inserindo no tabuleiro das
disputas conceituais um novo parâmetro de valor, que se contrapõe ao econômico-financeiro.
Nesse sentido, tanto no
âmbito do Ministério Público Federal quando no acadêmico e das organizações
indigenistas e de direitos humanos, a terra ancestral – o Tekoha – e seu
simbologismo inerente não apenas resignificam o conceito de direito, mas também
o de valor.
Para os Guarani, o
Tekoha é o lugar “em que vivemos de acordo com o nosso costume”. Seu tamanho
pode variar em superfície, mas estrutura e função se man- têm igual: tem
liderança religiosa e política própria, e for- te coesão social. Ao Tekoha
correspondem as grandes festas religiosas e as decisões políticas e formais nas
reuniões gerais (o grande conselho Guarani Aty Guasu). O Tekoha tem uma área
bem delimitada, geralmente por bosques, arroios ou rios, e é uma propriedade
comunal exclusiva; ou seja, não se permite a incorporação ou a presença de
estranhos. Acima de tudo, o Tekoha é uma instituição divina, criada por
Nhanderu (Deus).
Esta noção de
pertencimento, do ancestral e do divino inerente aos territórios explica, em
parte, a presença – e muitas vezes liderança – dos rezadores (nhanderus) nas
ações de retomada de terra, bem como a resignada resistência às condições mais
adversas de desabrigo, fome, violência e lentidão dos processos demarcatórios,
às quais os Guarani se submetem nos acampamentos. O reconhecimento do direito
Guarani às suas terras é, assim, um pressuposto à sua sobrevivência como povo.
Na balança de valores supera (ou nem é comparável), no Estado Democrático de
Direito, a contabilidade econômica da atividade agropecuária, ou mesmo ao
processo de apropriação das terras pelas forças privadas ou estatais.
Este reconhecimento se
espera que seja incorporado nas cadeias produtivas e nas políticas públicas
referentes à produção de commodities no Mato Grosso do Sul.
Para download do
relatório, clique aqui.