São as terras
tradicionalmente ocupadas o novo alvo dos grandes interesses econômicos do
agronegócio. As comunidades que as ocupam passam a ser objeto de investidas
para sua deslegitimação, assim como de esforços destinados a isolá-las das
demais forças sociais e políticas
1 Nelson Ramos
Barretto, A revolução quilombola, Artpress, São Paulo, 2008, p.12-13.
2 Disponível em: www.fibria.com.br/web/pt/midia/noticias/noticia_2012mai31d.htm.
3 Vladimir Safatle, Cinismo e falência da crítica, Boitempo, São Paulo, 2008
4 Nancy Fraser, “Igualdade, identidades e justiça social”, Le Monde Diplomatique Brasil, jun. 2012
Por Henri Acselrad*
As políticas do Estado
brasileiro para as áreas de fronteira de expansão do mercado no espaço
territorial do país sempre estiveram apoiadas em dois tipos de discurso: o da
necessidade de exercer a soberania sobre o território e o da necessidade de
desenvolver o país explorando os recursos desse território. Desde o fim da
ditadura, militares, oligarquias regionais e grupos ligados a grandes projetos
agropecuários articularam regularmente suas retóricas: ora argumentaram que há
ameaças de internacionalização da Amazônia e de ataque à soberania nacional por
trás das demandas por direitos indígenas, ora que inimigos do desenvolvimento
nacional, sob a roupagem de defensores do meio ambiente, faziam críticas ao
desmatamento para impedir que a população local pudesse competir no mercado. De
um lado, evoca-se o exercício da soberaniasobre o território para
justificar estratégias geopolíticas; de outro, o exercício dos interesses sobre
as coisas que o território contém, em nome de estratégias de desenvolvimento.
Desde os anos 1980, esses
dois tipos de discurso se combinaram procurando influenciar as políticas
territoriais, fundiárias e ambientais delineadas para tais áreas. Mas, pouco a
pouco, o discurso do interesse veio ganhando peso ante o discurso da soberania.
Essa inflexão ocorreu, por certo, paralelamente às mudanças verificadas no
próprio seio do Estado. As políticas de liberalização das economias
materializaram-se em privatizações e quebra de barreiras comerciais; grandes
corporações brasileiras se internacionalizaram. Assim, a retórica da soberania
com relação a potências estrangeiras foi se atenuando, embora ela tenha
continuado a ser evocada e ressignificada, por exemplo, quando aplicada às
demandas dos povos indígenas por terra, servindo para justificar tanto ações
militares como desenvolvimentistas nas áreas tradicionalmente ocupadas por
esses povos. A Portaria n. 303, de 16 de julho de 2012, da Advocacia Geral da
União (AGU), por exemplo, contestada como inconstitucional por todas as
entidades de representação dos povos indígenas e temporariamente suspensa por
solicitação da Funai, procura, a esse propósito, afirmar que, em respeito à
“soberania nacional”, dever-se-iam construir “bases militares, estradas ou
hidrelétricas em áreas demarcadas independentemente de consulta às comunidades
indígenas”.
Fato é que a lógica dos
interesses vem estendendo sua vigência de forma acelerada sobre áreas que
estiveram até aqui mais ou menos ao abrigo dos mecanismos de mercado. É o que
demonstram, ao lado da acima mencionada portaria da AGU, as investidas dos
representantes do agronegócio contra o Código Florestal e os debates em curso
para a reconfiguração do Código de Mineração. Um papel estatal mais ativo se
está procurando desenhar, de modo a redefinir as condições de extensão dos
limites socioterritoriais onde vigorarão regras mercantis, seja para os
mercados de terras, da exploração mineral ou energética e, ao mesmo tempo, onde
essas regras não vigorarão – ou delas estarão de algum modo protegidas –, como
em reservas extrativistas, quilombos e áreas de reserva legal.
Não por acaso, as terras
hoje vistas como tendo maiores perspectivas de valorização no país, segundo
consultores de investimento em terras, são aquelas ao mesmo tempo próprias para
o plantio de grãos e situadas nessas áreas de fronteira. Isso porque, a partir
de 2008, com a elevação dos preços dos alimentos e da demanda mundial por
agrocombustíveis, os monopólios do agro se “territorializaram” – ou melhor,
“aterrizaram” –, admitindo imobilizar capital em terras, a despeito da baixa
liquidez desse mercado, atuando, assim, simultaneamente, no controle da
propriedade privada da terra, do processo produtivo no campo e do processamento
industrial da produção agropecuária.
É nesse contexto que temos
visto, com frequência crescente, representantes do ruralismo passarem a
identificar os povos e comunidades tradicionais como os novos adversários de
seu pretenso projeto de “combate à fome pelo agronegócio”. São as terras
tradicionalmente ocupadas o novo alvo dos grandes interesses econômicos do
agronegócio. As comunidades que as ocupam passam a ser objeto de investidas
para sua deslegitimação, assim como de esforços destinados a isolá-las das
demais forças sociais e políticas, inclusive daquelas situadas no próprio campo
dos grupos subalternos.
Segundo esses ideólogos, os
povos tradicionais estariam protagonizando uma “inversão de direitos”, pois “o
conceito de quilombo estaria golpeando o já combalido direito de propriedade”,
fazendo que a propriedade se torne “tribal, coletiva ou comunitária, para não
dizer neocomunista”.1 Tal investida ideológica teria por finalidade atrair
setores da pequena propriedade rural para cerrar fileiras contra os direitos
territoriais específicos – plenamente reconhecidos na Constituição de 1988 –
pleiteados por comunidades étnicas e tradicionais. Procuram dividir o bloco dos
subalternos, tentando opor direitos universais à terra a direitos específicos a
territórios. Ações dessa ordem são, por sua vez, complementares aos esforços de
atrair o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra para acordos com agentes
do agronegócio, como é o caso do projeto “Assentamentos Sustentáveis com
Agroflorestas e Biodiversidade”, pelo qual uma grande empresa monocultora de
eucalipto alega pretender ensinar às famílias de sem-terra assentadas processos
técnicos e organizacionais que as empresas, elas próprias, se recusam a aplicar
em suas propriedades, a saber, a “produção de alimentos com base nos princípios
agroflorestais e agroecológicos e na organização social”. Segundo o site dessa
empresa, “o histórico processo de desenvolvimento rural brasileiro, a luta pela
Reforma Agrária no Extremo Sul da Bahia e a ocupação de seis fazendas da
Empresa Fibria Celulose, pelo MST, desencadeou um diálogo entre a empresa e as
famílias acampadas”2 que teria resultado na transferência – poderíamos
dizer, desse “não saber” – da empresa para os camponeses.
Num esforço de dividir o
bloco dos trabalhadores do campo, observa-se o recurso a um manejo irônico da
linguagem –“empresas de monocultura do eucalipto ensinam agroecologia ao
campesinato sem terra” –por parte de corporações cujos negócios dependem
fortemente da subtração ou subordinação dos espaços ocupados pelo campesinato e
os povos tradicionais. Trata-se de recurso análogo ao dos projetos ditos de
“educação ambiental” oferecidos a pescadores impossibilitados de pescar pelo
avanço territorial da cadeia do petróleo-petroquímica ou das empresas do setor
elétrico que dizem oferecer projetos de “desenvolvimento sustentável” para os índios
do Xingu, rio cujas águas, em certas áreas, deixarão de correr em razão da
construção de Belo Monte. Esses são alguns exemplos de como muitas corporações
têm, com frequência, recorrido ao que Vladimir Safatle considera o “cinismo
como modo hegemônico de racionalização nas esferas de interação social do
capitalismo contemporâneo, conformando procedimentos de justificação a
interesses que não podem ser revelados”.3
A experiência recente
mostra, porém, que os diferentes esforços destinados a dissociar e opor entre
si as perspectivas dos diferentes movimentos sociais no campo têm se chocado
com a adesão destes a um duplo critério de justiça, no sentido de Nancy Fraser
–aquele que articula lutas por distribuição a lutas por reconhecimento.4 São
os próprios atores sociais que dão sinais de estar efetuando essa articulação,
tal como configurado no Encontro dos Trabalhadores e Trabalhadoras e Povos do
Campo, das Águas e das Florestas, realizado em Brasília em agosto, que incluiu
em sua pauta, ao lado da “reforma agrária ampla e de qualidade com transição
agroecológica”, a garantia dos direitos territoriais dos povos indígenas e
quilombolas, assim como das comunidades tradicionais que têm a terra como meio
de vida e de afirmação de sua identidade sociocultural.
*Henri Acselrad é Professor
do Ippur - UFRJ e pesquisador CNPq. Artigo publicado originalmente em Le Monde
Diplomatique – Brasil.
2 Disponível em: www.fibria.com.br/web/pt/midia/noticias/noticia_2012mai31d.htm.
3 Vladimir Safatle, Cinismo e falência da crítica, Boitempo, São Paulo, 2008
4 Nancy Fraser, “Igualdade, identidades e justiça social”, Le Monde Diplomatique Brasil, jun. 2012