segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Sue Branford e Nayana Fernandez: A vida num garimpo


As jornalistas de Latin America Bureau, Sue Branford e Nayana Fernandez, chegaram à cidade de Santarém no dia 5 de setembro. Estão passando um mês viajando pela região para conhecer o impacto de “grandes projetos de desenvolvimento” sobre comunidades locais. Estas são a segunda e a terceira de uma série de postagens que Sue escreve sobre a região para o LAB, que agora publico no blog num texto único. O documento aborda a situação de um garimpo no Alto Tapajós. O texto em português foi gentilmente repassado ao blog Língua Ferina pela jornalista Sue Branford. A  versão em inglês dos textos encontra-se no sítio do LAB:  O primeiro texto pode ser lido em português AQUI e em inglês AQUI. 

A vida no garimpo
Estou em um lugar impressionante. Pegamos um barco em Jacareacanga, descendo o rio Tapajós até chegamos ao rio Pacu, seu afluente da margem direita, que subimos até chegar à vila (ou, currutela, como alguns chamam) de São José. Uma viagem de cerca de quatro horas.


Descemos do barco e logo nos encontramos no centro da comunidade – um campo de futebol, cercado de casas simples, cobertas de telhas de amianto, sempre com uma pequena varanda, que parece ser a parte mais ocupada da casa. E, no amanhecer deste 15 de setembro, em uma dessas casas, em uma dessas varandas, escrevo esta postagem.

Seria uma típica comunidade da fronteira amazônica? Sim, e sob muitos pontos de vista. A antiga vila que já foi uma colocação de seringais foi (re)fundada pela “folia” do garimpo, ainda nos anos 60. Estamos no epicentro da “febre de ouro” do vale do Tapajós, algo tão voluptuoso que fez do pequeno aeroporto de Itaituba o mais movimentado em pousos e decolagens do planeta. Ninguém sabe ao certo, mas concorda-se que a quantidade de garimpos na região entrou na casa dos milhares.


Pequeno porto no rio Pacu, na Comunidade de São José.
Fotografia: Nayana Fernandez - LAB 
Nenhum desses garimpos chegou perto da escala de Serra Pelada, aquela enorme mineração a céu aberto, próxima a Marabá-PA. Nunca foi encontrado um grande filão, mas, uma quantidade ainda maior de ouro espalhava-se pela vasta província garimpeira do Tapajós.Muitos fizeram fortuna, mas, na cultura de garimpo, ser rico não é acumular, é gastar. Gastar abusadamente, como deixar rios de dinheiro em noitadas extravagantes de bebedeiras e mulheres. São comuns os relatos de garimpeiros que tiveram quilos de ouros e vários aviões e hoje, mal conseguem o suficiente para comer. Porém, a narrativa não é de fracasso. Nesta curiosa lógica, os homens que se criaram na miséria, ao menos por um instante, conheceram a plenitude. 

São José perdeu a extravagância dos anos 80 e 90, mas continua uma vila de garimpo. Todos os pequenos comércios, ao redor do campo de futebol, vendem mercadoria a preços altos (até R$ 10 por um quilo de cebola), sempre recebendo em ouro aferido nas pequenas balanças instaladas onde esperaríamos uma caixa registradora. E os cabarés (ou bregas), ainda que sem a exuberância de antes, resistem. Dos 11 estabelecimentos da praça central, quatro são bregas. Durante a semana, as mulheres se sentam, aborrecidas ou ajudam no pequeno movimento de venda de bebidas, mas nos fins de semana os bregas florescem quando os garimpeiros chegam dos “baixões” e gastam generosamente o ouro ganho com um trabalho árduo.

Mas, ao mesmo tempo, São José é também uma verdadeira comunidade, na acepção cristã do termo, com famílias, escola, posto de saúde, várias igrejas, festas comunitárias, organização política própria e regras que eles mesmos implantaram e que o grupo respeita e faz valer. O lugar parece tranquilo, segundo relatam os moradores, quase não ocorrem roubos e as drogas não entram. É uma vila agradável, um dos lugares mais hospitaleiros que conheci. Não há mendigos e quando alguém atravessa dificuldades, sempre conta com a cooperação da comunidade. Recentemente, o grupo se juntou rapidamente e reconstruiu voluntariamente a casa de uma família destruída num incêndio. A prostituição é vista como profissão qualquer – o novo presidente da comunidade é dono de um brega, aliás, o anterior também. Enfim, como explicou um jovem garimpeiro, parece ser um bom lugar pra se viver, principalmente quando se é pobre: “Prefiro mil vezes morar aqui do que na periferia de São Paulo”.

O que torna tudo isso bem interessante é que, para a maioria dos brasileiros, garimpo é sinônimo de crime, desordem e violência. De fato, nos anos 70, a vila era um faroeste, era comum haver até três ou quatro assassinatos em um fim de semana. Como nos outros garimpos, qualquer questão era resolvida “à bala”.
Por que é tão diferente hoje? Recebi muitas respostas. “Foi a chegada de famílias na vila”, afirma um. “Foi diminuição do ouro que os garimpeiros pegavam”, fala outro. “Hoje tem menos ouro, não dá mais pra um garimpeiro ‘botar tudo na beira’, não dá mais pra ‘fechar a zona’”. “Foi a chegada da policia”, afirma outro, referindo-se ao pequeno posto da policia militar com seus quatro soldados, sem veículos, sem telefone, sem energia elétrica e, é claro, sem acesso à internet. “São corruptos e extorquem”, acrescenta, falando ainda da polícia local, “mais eles fazem os criminosos pensar duas vezes”. “Foi o conflito que nos uniu”, afirma outro. E a esse conflito que voltaremos na próxima postagem.

Bomba relógio
Ainda estamos em São José, uma comunidade de garimpeiros na margem do rio Pacu, um afluente do Rio Tapajós. Eles estão envolvidos em um tenso conflito com uma mineradora, a Ouro Roxo (“até o nome eles roubaram da gente”, se queixou um garimpeiro). A empresa chegou à região há poucos anos, afirmando que tinha “os papéis” da terra em que os garimpeiros trabalhavam há décadas e daí se instalou uma violenta tensão.

Nos garimpos, o ouro é extraído por meio de galerias cavadas manualmente na “fofoca do Paxiúba”, o local de maior movimento hoje. E, em nossa visita, descemos, pendurados por um cabo, 12 metros até chegarmos à galeria (outro túnel que parte horizontalmente) para ver como um garimpeiro extrai ouro de um “filão”. É trabalho duro e, embora os garimpeiros conheçam muito bem a geologia e saibam quando uma área tem ouro, nunca sabem qual das muitas galerias que cavam vão render bem. Isso ajuda a explicar a fascínio do garimpo – sempre se crê que um pouco mais pra frente se vai “bamburrar”, pegar uma grande quantidade de ouro. E assim, nunca se percebe a hora de parar. Parece ser a mesma embriagues que leva o jogador a, sempre, apostar tudo o que ganhou.


Jornalista Nayana Fernandez desce até a mina: extração há doze metros de profundidade - Fotografia: LAB
Os garimpeiros não se importam que a mineradora explore ouro a mais de 50 metros de profundidade (onde estudos geológicos indicam haver imensas jazidas). Também, a comunidade reconhece o direito da mineradora às terras que ela comprou de garimpeiros locais, “lá ninguém entra”. O problema maior é uma pequena poção, a Paxiúba, que a empresa não comprou, mas onde, segundo a própria, obteve junto ao Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) os direitos de pesquisa.

A mineradora não aceita a exigência do grupo sobre a Paxiúba. Enviam requerimentos e mais requerimentos às autoridades e preocupam-se muito em afirmar que não se trata de uma demanda social, da comunidade como um todo, mas de uns poucos “criminosos que tentam se passar por representantes” do grupo para enriquecer às custas de toda a comunidade. A mineradora acusa os garimpeiros de danos ambientais: “agem como gafanhotos; por onde passam, só deixam devastação”. Ironicamente, a própria mineradora opera sem licença ambiental válida e com impactos talvez ainda maiores do que a ação dos garimpeiros.

Com alguns dos muitos moto-taxistas da comunidade, fomos visitar a operação da empresa. A atividade e as instalações são muito rústicas e precárias. Neste momento só processam o “curimã”, rejeito do cascalho retirado do subsolo que já passou pela primeira retirada de ouro, mas que ainda contém bastante do metal entranhado e que pode ser extraído com o uso de cianeto, um produto altamente tóxico. 

O gerente da mina, Francisco Pereira Viegas, nos assegurou que tudo era muito seguro. Porém, vimos tanques cavados na terra, revestidos apenas por uma fina lona preta, muitas vezes, rasgada. Segundo os empregados da mineradora, nestes tanques, o curimã é misturado com o cianeto. O órgão ambiental indicou que a lona plástica deveria ser substituída por polietileno de alta densidade. Não só continua a lona, como também, agora, está rasgada, deixando o produto em contato direto com o solo. Antigos empregados nos confirmaram que as condições de segurança eram mínimas e acidentes sérios já aconteceram, como o caso de um homem que caiu em um desses tanques e ficou próximo de morrer. 

Tanque com cianeto e fina camada de plástico rasgado
Fotografia: Lorenza Sganzetta

Um detalhe: tudo isso acontece dentro de uma unidade de conservação federal, a Área de Proteção Ambiental (APA) do Tapajós.
A empresa é representada na região por Dirceu Santos Frederico Sobrinho. Entretanto, segundo o contrato social da mineradora, ele detém apenas uma cota num total de 613.668. A que pertencem as outras? O gerente disse que achava que a empresa era de capital canadense e venezuelano mas não sabia ao certo. Outro assunto em nossa lista de tarefas: descobrir os donos. Alguém lendo essa postagem pode ajudar?

Em março de 2010, a partir de denúncias da mineradora, o DNPM emitiu um “Auto de Paralisação” das atividades dos garimpeiros na Paxiúba. Em abril do mesmo ano, os garimpeiros foram despejados da área pelo DNPM com apoio da Policia Federal. Estranhamente, nas centenas e centenas de garimpos do vale do Tapajós que atuam na irregularidade, este foi o único que tivemos notícias de ter tido uma ação do DNPM. 

As atividades na área ficaram paralisadas por mais de dois anos, até que, em 12 de junho último, em protesto às ações da Mineração Ouro Roxo, desesperados para ganhar de volta seu sustento e convencidos da razão de sua causa, a comunidade de São José retomaram suas atividades na Paxiúba. 

Rapidamente, a empresa reagiu e já obteve na Justiça Estadual decisão provisória deferindo um “interdito proibitório”, uma ordem judicial que impede toda a comunidade de trabalhar na área. A ordem judicial obriga os comunitários a deixar a área imediatamente após serem notificados, o que pode acontecer a qualquer momento. O oficial de justiça que fará a notificação aguarda apenas o reforço policial que já fora requisitado. Não se sabe como vão reagir os garimpeiros e as perspectivas são bastante preocupantes.
E qual seria a saída para a comunidade? Os direitos do grupo dependem, inclusive, do seu reconhecimento como “interesses coletivos” e não individuais. Ainda mais se puderem fazer ver que são um grupo culturalmente diferenciado e com relações próprias com o território, ou seja, uma “comunidade tradicional”. Os povos e comunidades tradicionais tiveram direitos diferenciados reconhecidos a partir da Constituição de 1988 e da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) da qual o Brasil é signatário. 

A repetição com que os advogados da mineradora negam o grupo como comunidade tradicional (ou, mesmo, como uma comunidade), acaba por revelar o quanto isto os preocupa. Em um dos tantos requerimentos desses advogados, chegam a renunciar à coerência ao afirmar que se trata de “um grupo restrito e individualizado de garimpeiros, que desafiando solenemente as ordens expressas das autoridades competentes insistem na reiterada pratica de crimes diversos”.
Estivemos na comunidade de São José por quase uma semana e, poucas vezes, encontramos uma comunidade tão unida, coesa e com peculiaridades próprias. Inclusive, no dia 14 de setembro se realizou uma assembleia da comunidade, com a presença de quase 300 pessoas, no salão comunitário (que também funciona como um brega quando não ocupado nestas atividades) e vimos o entusiasmo e o consenso de um grupo que levantava os braços para rejeitar as propostas da mineradora para que a comunidade lhes permita apoderarem-se da área da Paxiúba.


Hospitalidade contrasta com ameaça de despejo a qualquer momento.
Fotografia: Nayana Fernandez-LAB 

Sem dúvida, o trabalho efetivado pela comunidade tem impactos e precisa ser regulamentado com a adoção de medidas de mitigação e controle ambiental. Entretanto, a sua luta nos parece justa, em mais um dos tantos exemplos da distância entre o legal e o legítimo nessa plural Amazônia.

Depois da reunião, tomando uma cerveja em um dos bares da praça central (o campo de futebol), ouvimos um punhado interminável de músicas (Será que o homem chora? era a favorita), o volume era tão alto que quase não se podia falar. Só coisas essenciais – se aproximaram às duas jovens que nos acompanham vários garimpeiros esperançosos, propondo educada, mas não tão sutilmente, “você não quer dormir comigo hoje?”. A insistência foi pouca e baseada em curiosos argumentos: “Olha, tenho ar condicionado”. As recusas foram sempre aceitas com bom humor. 

E assim, a vida continua nesta currutela “pouco sutil” e agradável. Mas por quanto tempo? Temos a sensação que tudo acontece sobre uma grande bomba prestes a explodir.
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