Foto de Rayanna Castro |
Decisão
que considerou indígenas “falsos” é alvo de protestos na Amazônia que visam,
também, denunciar atuação de antropólogo missionário
Por Felipe Milanez*
A sentença de um juiz federal em Santarém que disse
que indígenas do baixo rio Tapajós eram “falsos” e que a terra indígena em
processo de demarcação pela Funai era “inexistente”, tem sido alvo de intensos
protestos na cidade. Assim que souberam do conteúdo da decisão de Airton
Portela, os povos do Baixo Tapajós e Arapiuns desceram os rios e ocuparam o
Fórum. Diversos movimentos sociais da região se uniram aos indígenas, assim
como a diocese de Santarém, a Comissão Pastoral da Terra, a Terra de Direitos,
entre outras entidades que assinam o manifesto reproduzido ao final deste post.
A Justiça Federal fechou as
portas e negou-se a receber os manifestantes, que pularam o muro e acamparam
dentro das instalações. Um #Occupy na Justiça Federal. Durante a noite, foi
feita uma cerimônia ritual. Ou uma “suposta” cerimônia ritual, como diria o
juiz de acordo com os termos que ele utilizou na sentença para se referir aos
“supostos indígenas”. Nos cartazes, chamam a Justiça de racista.
Nesse protesto chamou a
atenção um cartaz inesperado: dois indígenas portam um cartaz culpando a
Mormaii por financiar o “falso antropólogo” Edward Luz . Luz foi contratado
pela associação Acutarm, lado oposto aos indígenas no conflito, e elaborou um
laudo contra a demarcação da terra indígena. Ele se vangloriou no Twitter por
ter produzido os principais argumentos acatados pelo juiz Portela contra os
direitos indígenas – mesmo sem ter sido citado na sentença. Os indígenas
denunciaram que a Mormaii patrocina uma ação “humanitária” na região em que
ONGs ligadas a Luz são beneficiadas, e que isso estaria acirrando ainda mais os
conflitos entre as comunidades, e isso repercutiu nas redes sociais.
A missão proselitista e os
conflitos internos.
Em seu website, a Mormaii diz
que “Só uma marca como a Mormaii com espírito de aventura, arrojada e
que vence obstáculos, busca atingir aqueles que precisam de ajuda, mas que
dificilmente a receberiam devido às distâncias e barreiras naturais”. Essa
“aventura” da Mormaii é o patrocínio do projeto “Águas da Amazônia”, coordenado
pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre o desenvolvimento dos Povos e
Comunidades tradicionais (NEP-DPTC) do Centro Universitário de Anápolis, do
qual Luz faz parte. Foi Luz quem teria sugerido à Mormaii trabalhar nessa
região de conflito através de uma parceria com a missão evangélica Asas do
Socorro. Segundo ele, o Baixo Tapajós seria uma “região necessitada”.
Assim que a denúncia dos
indígenas começou a circular, Luz apressou-se nas redes sociais a defender a
Mormaii e atacar os indígenas que protestavam: “não tem nenhum
"indigena" nesta foto, mas mestiços militantes q querem ser
reconhecidos como tal.#AquiNãoMermão”.
Luz costuma ser bastante ofensivo e agressivo nas redes contra quem pensa
diferente de sua maneira: “please, não deixem esse militonto @felipedjeguaka denegrir
vosso trabalho incrível no PA. Façam esse irresponsável responder”. E também:
“sorte sua q eu não tenho os advogados da @mormaiioficial senão já tinha te
assado na justiça” – escreveu ele, com a intenção de incitar a Mormaii a me
processar judicialmente para intimidar este trabalho jornalístico, o que, além
de tudo, ainda ameaça a liberdade de imprensa e de expressão.
Uma grande confusão no
burburinho das redes sociais é a razão dessa aliança. Os indígenas especulam
que Luz tenha procurado o investimento da Mormaii para agir em meio ao conflito
de que ele mesmo é parte como antropólogo que advoga para um lado. Ao menos, a
atuação das missões financiadas pela empresa de surf pode ter tido, até que o
caso seja mais esclarecido, um impacto na fomentação dos conflitos e atuação
racista na área. É o que informam as lideranças do Conselho Indígena Tapajós
Arapiuns (CITA), como Dinael Cardoso.
A parceria organizada por
Luz que envolve financiamento da Mormaii, a ONG holandesa Terre des Hommes,
dona do barco de saúde Abaré, e a missão Asas do Socorro. O contexto da atuação
das missões proselitistas na Amazônia, como a Asas do Socorro e da missão do
pai de Luz, New Tribes Mission, e a busca por almas para evangelizar, foi
objeto de uma longa investigação que publiquei na revista RollingStone.
Aventura na selva
Os anos de 2010 a 2012 foram
bastante tensos na região da Gleba Nova Olinda, no alto rio Arapiuns. As
comunidades contrárias a exploração madeireira, muitas das quais se identificam
como indígenas, haviam queimado duas balsas lotadas de madeira em protesto.
Queriam o fim da exploração madeireira predatória na região. E o barco de saúde
Abaré, que era utilizado pelo Projeto Saúde e Alegria, que trabalha desde os
anos 1980 na região, estava em disputa. Foi nesse contexto que surgiu a
expedição idealizada por Luz para uma região “necessitada”. E essa ação de
saúde bucal que ele trouxe para a área, de cunho “humanitário”, pode não apenas
ter sido o estopim para acirrar conflitos sociais, como para a prática de
proselitismo religioso.
Lideranças do CITA, como
Dinael Cardoso e João Tapajós, além de outros comunitários entrevistados,
disseram que o barco, enquanto funcionou com as missões evangélicas e com a
Mormaii, apenas atracava em comunidades evangélicas na Reserva Extrativista
Tapajós Arapiuns, como a Prainha do Maró e a Nova Canaã. Teriam se recusado,
inclusive, a atracar em comunidades não evangélicas. Essas ações também teriam
sido discriminatórias, atendendo apenas àqueles que não se identificavam como
indígenas, o que teria provocado mal estar — de acordo com as lideranças do
CITA.
Procurei a Mormaii para
ouvir da empresa a sua versão sobre essas denúncias. Liguei diversas vezes,
falei com diferentes atendentes, e enviei e-mails solicitando informações. Eu
já havia procurado a Mormaii em 2012, quando fui informado, pela primeira vez,
pelos indígenas da região, e ouvi dois representantes da empresa que haviam se
mostrado “surpresos” e se recusaram a conceder uma entrevista ou enviar um
comunicado – apenas divulguei em minha conta pessoal no Twitter a relação da
Mormaii com a missão Asas do Socorro.
Desta vez, após a sentença e
o protesto dos indígenas, procurei, novamente, a Mormaii, e fui atendido por
Sacha Juanuk, gerente comercial, que antes de começar a responder
perguntas pediu o meu endereço pessoal — o que não é usual na relação
entre jornalistas e entrevistados— para “enviar informativos”. Em seguida,
pediu 48 horas para se pronunciar, e logo depois passou a responder
parcialmente as questões, mostrando-se estar surpreso pela situação de conflito
no rio Arapiuns e que envolve a ação da empresa.
“Temos hoje todo um release
de um material onde deixa muito claro onde a Mormaii participa, chega e o ônus
nesse projeto”, afirmou Juanuk. Pedi para ele enviar o material por e-mail para
apresentar nesse texto, o que foi recusado. Algumas informações do projeto
podem ser acessadas no website da Mormaii, como na página http://www.mormaii.com.br/sem-categoria/2012/05/projeto-social-aguas-da-amazonia-em-nova-missao/
Juanuk disse que não sabia
que a área de atuação do projeto social era uma área de conflito na Amazônia.
“Nossa filosofia de trabalho é levar qualidade de vida e elevar o nível de
consciência dos evolvidos”, disse. E disse duvidar “que a Mormaii tenha
envolvimento que possa afetar qualquer ser humano. A Mormaii, pela instituição,
pela dimensão, afeta o meio ambiente. Mas não é isso, a nossa atividade
principal é outra. A Mormaii não tem conhecimento de que essa é uma área de
conflito”, insistiu Sacha Juanuk, não antes sem tecer para mim elogios do “seu
bom trabalho de jornalista” através do qual, segundo ele, teria ficado sabendo
do protesto dos indígenas. Juanuk afirmou que iria buscar mais informações
internamente para responder as questões que fiz, porém ele não atendeu mais as ligações.
A Missão
A Asas do Socorro, parceira
da empresa de surf, já foi expulsa da Venezuela e do Suriname, entre outros
países, acusada de praticar proselitismo religioso. No Brasil, o proselitismo
entre povos indígenas também é proibido — e as agencias missionárias desse
cunho foram expulsas, em 1991, de todas as terras indígenas, durante a gestão
do sertanista Sydney Possuelo como presidente da Funai. Um dos fatos que
levaram à decisão da Funai foi justamente a atuação da missão evangélica
presidida pelo pai de Edward Mantonelli Luz (o antropólogo contratado pela
Acutarm), que se chama Edward Gomes Luz e é o presidente da New Tribes Mission
no Brasil (NTMB), junto dos Zo’é, indígenas que vivem na Calha Norte do Pará e
cujo acesso aéreo se dá a partir de Santarém.
A sede da New Tribes no
Brasil fica na cidade de Anápolis (GO), onde também se localiza a
Unievangélica, o NEP-DPTC — de Luz filho — e a Asas do Socorro. O
contexto dessas organizações missionárias, que integram o guarda chuva da
Associação das Missões Transculturais Brasileiras (AMTB) cujas ações são
descritas pela Procuradoria Geral da Republica da 6ª Câmara e pela Funai como
proselitista, está na reportagem O
Mercado de Almas Selvagens.
A expulsão da família Luz e
a NMTB dos Zo’é foi um duro golpe na vida dos missionários, que nunca
desistiram de tentar retornar para a área. Luz filho nunca esqueceu desse
trauma, como me disse pelo twitter: “eu morei em STM (Santarém) minha
infância e adolescência? Conheço a carência da região faz muito tempo e quero
ajudar!”
A Funai tem denunciado as
investidas da missão New Tribes para tentar retornar para a área indígena e
recomeçar o proselitismo entre os Zo’é, como em um programa de Luciano Huck na
TV Globo. Os Zo'é são considerados um povo “de recente contato” pela Funai. Uma
base forte em Santarém poderia ser uma estratégia geopolítica de atuação. É
possível, dessa maneira, que trama politica e econômica em torno da região da
Gleba Nova Olinda, no rio Arapiuns, envolva além de problemas de identificação
indígena, exploração madeireira, e a sentença do juiz Portela, mas inclusive
relação com a expulsão da New Tribes Mission dos Zo’é, em 1991.
Outro fato relacionado a
este conflito é que, em 1991, o Projeto Saúde e Alegria havia feito uma
parceria com a Funai para cuidar da saúde dos Zo’é após a expulsão da New
Tribes. A situação era de emergência em razão da intensa mortandade e alta
contaminação por gripe e malária que estava dizimando os índios. A missão New
Tribes chegou inclusive a ser acusada de genocídio, e o descaso com a saúde dos
indígenas era a principal acusação formal da Funai.
Vinte anos mais tarde, nas
expedições realizadas pelo rio Arapiuns e que podem ter fomentado ainda mais o
rivalidade entre as comunidades, foi utilizado o mesmo barco que o PSA sempre
utilizou, o Abaré, um barco bastante conhecido na região. Porém, dessa vez, nas
mãos do projeto Águas da Amazônia da parceria da Mormaii, Asas do Socorro e
NEP-DPCT. Ao contrário de seus usos anteriores, no Abaré, durante essas
expedições, novamente de acordo com as lideranças do CITA, a saúde teria sido
promovida seletivamente, apenas para pessoas de uma certa categoria
étnica, ou seja, que não se identificavam como indígenas.
A sentença de Portela, que
segue o argumento de Luz, pode ter colocado mais gasolina nessa disputa que
aparentemente vai além de terra e de madeira – mas também de almas. Dada
Borari, uma das principais lideranças indígenas da região, é ameaçado de morte
e tem sido vítima constante de difamação, seja pelo trabalho do antropólogo
contratado por seus inimigos, seja até pela já citada matéria da revista Veja
que expunha Dadá, ou mesmo agora, por um juiz federal. Há um temor na região de
que a sentença venha a desencadear mais violência física nesse conflito e
resultar em mortes.
Antes de terminar este texto
liguei novamente para a Mormaii, na tarde da quinta-feira 11 de dezembro, para
ouvir a versão da empresa sobre essa acusação de lideranças do CITA de que o
projeto Águas da Amazônia teria discriminado as pessoas indígenas, mas Juanuk
limitou-se a dizer que a “Mormaii vai publicar um comunicado no site” e
desligou o telefone.
Abaixo, uma carta dos
movimentos sociais de Santarém
CARTA CIRCULAR DOS POVOS IN
DÍGENAS DO BAIXO TAPAJÓS
Nós, povos indígenas de
diversas etnias como: Arapiun, Arara-vermelha, Apiaká, Borari, Cumaruara,
Jaraky, Maytapú, Munduruku, Munduruku-cara-preta, Tapajó, Tapuia, Tupinambá e
Tupaiú, localizados na Região do Baixo Tapajós, dos Municípios de Santarém,
Belterra e Aveiro, no Oeste do Pará, além de contarmos com o apoio de etnias de
outras Regiões, COMUNICAMOS à sociedade em geral que, desde hoje
(09/12/2014) estamos OCUPANDO o prédio da JUSTIÇA FEDERAL, localizada no
Município de Santarem, por prazo indeterminado, como uma forma de protestar
contra SENTENÇA JUDICIAL proferida pelo juiz da 2ª VARA FEDERAL, o senhor José
Airton Portela, que declara “a inexistência da terra indígena Maró”,localizada na
chamada Gleba Nova Olinda. O juiz declara em 106 laudas que os indígenas da T.I
Maró seriam uma farsa.
Por conta dessa sentença
judicial discriminatória, nós, povos indígenas acima mencionados, REAFIRMAMOS
nossas identidades indígenas, não aceitamos no decorrer da História e não
aceitaremos jamais a violência do branco colonizador, a recusa de nossas
crenças, de nossa cultura e de nossos valores. Sabemos que as leis de forma
geral não nos favorecem, porém não há lei que possa nos exterminar. Temos
clareza que a política implementada pelos governos é anti-indigena e
anti-ambiental.
Existimos sim, e
sobreviveremos a mais um ataque preconceituoso e racista da elite branca
santarena, da imprensa vendida, dos setores do agronegócio, e de políticos
ruralistas. Resistimos a todas as adversidades no curso de nossa História com
muita luta e dessa vez não será diferente.
Estamos com apoio de vários
movimentos e entidades, na certeza que essa batalha será de longa duração. Por
fim, tal sentença esta sintonizada com a escalada de violência na qual o nosso
povo é submetido por todo o Brasil, assim queremos responsabilizar o Juiz
Airton Portela por toda e qualquer violência cometida contra os nossos
direitos, territórios e principalmente contra as nossas vidas.
Santarém, 09 de dezembro de
2014.
Conselho Indígena Tapajós
Arapiuns – CITA
Conselho Indígena
Intercomunitário Arapiun/Borari
Grupo Consciência Indígena
Comissão Pastoral da Terra –
Santarém
Terra de Direitos
Diretório Central dos
Estudantes – UFOPA
União dos Estudantes de
Ensino Superior de Santarém – UES
Coletivo Juntos
Coletivo Feminista Rosas de Liberdade
Sindicato dos Trabalhadores
e Trabalhadores Rurais de Santarém