Em
carta, Jairo Saw afirma que "a luta do Povo Munduruku não é contra um
governo, mas em defesa da vida". Segundo ele, o "governo não está
sendo capaz de ouvir"
Por
Jairo Saw Munduruku*
À
sociedade brasileira e internacional,
Somos
povos nativos da floresta Amazônica, existimos desde a origem da criação do
mundo quando o Karosakaybu nos transformou do barro (argila) e nos
soprou com a brisa do seu vento, dando a vida para todos nós. Desde o princípio
conhecemos o mundo que está ao nosso redor e sabemos da existência do pariwat (não-índio),
que já vivia em nosso meio. Éramos um só povo, criado por Karosakaybu,
criador e transformador de todos os seres vivos na face da Terra: os animais,
as florestas, os rios e a humanidade. Antes, outros povos não existiam, assim
como os pariwat não existiam.
O pariwat foi
expulso do coração da Amazônia, devido ao seu pensamento muito ambicioso, que
só enxergava a grande riqueza material. Portanto, a sua cobiça, a sua ganância,
a sua ambição, o seu olho grande despertou o grande interesse econômico sobre o
patrimônio que estava em seu poder. Não pretendia proteger, guardar, preservar,
manter intactos os bens comuns, o maior patrimônio da humanidade, e isso
despertou o seu plano de destruição da vida na Terra. Por isso, oKarosakaybu achou
melhor tirar a presença do pariwat deste lugar tão maravilhoso, onde
há sombra e água fresca.
Nossos
ancestrais, no decorrer do tempo, nos transmitiram oralmente esses relatos
sobre a vinda dos pariwat, oriundos de outro continente, a Europa.
Contaram-nos que um dia chegariam a esse paraíso onde nós estamos. Hoje podemos
presenciar os fatos sendo consumados.
O pariwat chegou,
depois de viajar pelo mundo em busca de especiarias, produtos, mercadorias. Foi
ampliando a expedição, em busca de conhecer outro mundo ou outra terra. Viajava
em caravelas até chegar ao chamado "novo continente", que se conhece
hoje como continente americano, onde está o Brasil, desde o século XIV.
Nossos
avós diziam que, quando os pariwat chegassem até o nosso território,
eles iriam tomar nossas terras, nossas mulheres, nossas crianças. Iriam nos
matar, não nos poupariam vidas para possuir tudo aquilo que nos pertence: a
nossa riqueza, os bens que possuímos, incluindo a nossa cultura, a forma como
vivemos.
Invadiram
nossa terra, muitos de nossos parentes foram massacrados, assassinados, foram
submetidos à tortura e foram usados nos trabalhos forçados, servindo de mão de
obra escrava.
Já
no século XXI, na era contemporânea, continuamos sendo oprimidos, como nos
tempos passados. Apesar de termos alcançado várias conquistas e garantido
nossos direitos específicos e diferenciados na Constituição Federal, ainda
assim esses direitos não são respeitados e reconhecidos. Hoje se utiliza do
poder para impor o lema do "progresso e desenvolvimento", a base da
bandeira nacional: “ordem e progresso". Tudo em nome do capital.
No
primeiro momento, o objetivo era seguir exatamente como está escrito no símbolo
da bandeira: pôr em ordem, organizar a política da sociedade civil. As leis
estão organizadas desde o princípio, elas não devem ser mudadas, o que se deve
fazer é cumprir e obedecer.
Nós,
Munduruku, obedecemos leis e, embora não se encontrem escritas em nenhum
arquivo, as conhecemos há milhões de anos e até hoje cumprimos essas leis. A
natureza tem leis e devem ser obedecidas. Se nós violarmos as suas regras, ela
se vingará e sofreremos as consequências. As leis estão em ordem, não devem
sofrer interferência alguma.
Os
"civilizados" escreveram leis e não as respeitam, usam o poder para
oprimir as pessoas que julgam ter menos conhecimentos. Não reconhecem os seus
direitos, chegam até a intimidar, a ponto de nos submeter. A razão é dada
apenas por um indivíduo ou classe com maior poder econômico.
Os
"civilizados" dariam bom exemplo de cidadão pleno e letrado para as
pessoas humildes, porque a lei foi feita por causa das injustiças criadas pelos pariwat.
Justiça é saber o que é certo e o que é errado, sem favorecer a um ou a outro,
a balança não deve pesar nem para a direita e nem para a esquerda. Existe uma
haste entre os dois pratos da balança, que deve manter o equilíbrio e a justiça
deve ser feita para o cumprimento da lei, deve ser obedecida e aplicada.
Então,
ao surgir a lei escrita, ela desvendou os nossos olhos, passamos a enxergar as
coisas erradas dos pariwat a nosso respeito. Os nossos direitos estão
em jogo. Falam tanto a nosso respeito, somos tratados como empecilhos para o
desenvolvimento econômico do país. Mas nós não somos contra o desenvolvimento,
o que queremos é que sejamos respeitados e que nossos direitos como indígenas
sejam reconhecidos. A Constituição diz que é dever do Estado proteger, demarcar
os territórios, garantir a segurança, respeitar as formas próprias de
organização social e as culturas diferenciadas, por isso queremos respeito. Até
a nossa crença, a nossa religião deve levar em consideração o modo como
vivemos.
Respeitamos
sempre a natureza, ela é de suma importância para nós e é essencial para a vida
no planeta. Nós estamos preocupados com o equilíbrio do clima, com as mudanças
climáticas. Resta apenas uma parte da floresta que está dando vida ao planeta
chamado Terra e a seus habitantes. Esta pequena parte tornou-se alvo da
ganância do pariwat.
Nós
percebemos que os países ricos querem levar o chamado
"desenvolvimento" para o coração da Amazônia, só para destruir. Não
levam em consideração os povos nativos desse continente, que estão aqui há
milhares de anos. Estamos lutando, resistindo, protegendo com unhas e dentes
esse nosso patrimônio, mas ninguém ouve nossos gritos de socorro em prol da
vida no planeta. Sabemos que a vida dos pariwat também está em risco
e não estamos apenas nos defendendo: estamos defendendo toda a vida, toda a
biodiversidade.
Existem
tantos cientistas que estudam os fenômenos da natureza e alguns devem estar
percebendo as mudanças climáticas, dia após dia, ano após ano. Em outros países
vemos as consequências dos impactos causados pela ação humana. As consequências
estão sendo sentidas e estão fora da normalidade. A natureza esta sofrendo
alterações no seu funcionamento, que vão além da sua capacidade, ela já não
está suportando a pressão causada pelos humanos.
Alguns
exemplos dessa pressão são: poluição do ar produzida pelas fábricas e
indústrias, automóveis, desmatamento, explosão de dinamites, dentre outros. A
natureza não consegue transformar o oxigênio para devolver para nós, porque a
impureza do ar contaminado é maior do que a sua capacidade. O acúmulo de ar
poluído torna-se pesado para as árvores. É notado isso claramente nas leis da
física. As árvores não conseguem absorver todo esse ar impuro.
O
peso do ar não é visto por nós, mas percebemos através do aquecimento. Em
algumas regiões, o clima é seco e quente, geralmente as fontes de água secam,
secam as relvas, assim como as folhas das árvores caem e os animais não
conseguem encontrar abrigos e alimentos. Por falta de vegetação, o equilíbrio
está ameaçado, colocando em risco a vida dos homens e dos animais. Não há mais
vapores de agua produzidos pelas árvores, pela manhã não há gotas de orvalho.
Nas grandes cidades, o clima não é diferente. Para dizer a verdade, as pessoas
estão sedentas, cansadas, querem sentir a brisa de ar frio pela manhã. No interior
das casas, seja de noite ou de dia, o ambiente não é favorável, já é quente.
Outro
fator de alto risco é o acúmulo de gás poluente, as fumaças das grandes
queimadas, que chegam e se alojam na camada de ozônio. Muitas vezes chegam
pouco a pouco de algumas regiões e outras vezes chegam em grandes quantidades,
aumentando a extensão do volume de gás poluente, rompendo a barreira de
proteção da filtração de raios solares em direção à Terra. Nem podemos imaginar
a causa disso. Pode ser que digam que isso é o aquecimento global ou o efeito
estufa, prejudicial à nossa saúde.
Todo
mundo sente e vê os impactos dos fenômenos estranhos decorrentes da mudança da
natureza. Em alguns países, vemos terremotos, enchentes, secas, doenças,
tsunamis, acidentes, maré alta, vulcões, chuvas com raios e trovoadas. Tudo
isso é consequência causada pelas mãos dos homens. Eles estão desequilibrando o
equilíbrio do ecossistema. Estão colocando em risco a vida da humanidade. O
planeta todo vai ao caos.
Alguns
estudiosos, como astrônomos, físicos, meteorologistas, que entendem de ciências
naturais, podem explicar melhor cientificamente, tecnicamente e
filosoficamente. A natureza tem uma lei. Ela age e faz acontecer tudo
naturalmente, sem que o homem a interfira. Mas essa lei não é obedecida, é
desrespeitada. Dá pra entender que temos leis (Constituição) para nos punir. Do
mesmo modo, a natureza nos pune. Temos capacidade além da natureza, mas nunca
vamos entender as suas ações.
A
Terra está sofrendo impactos, está sendo tirada a sua cobertura (vegetação),
seu teto destruído (camada de ozônio), alterada a sua fonte de vida (água) e
todas as formas de vida. A sua estrutura sólida, que é a base de sustentação
das rochas, solos e águas, está sendo destruída com explosão de dinamites. O lençol
freático, com a base rompida, poderá abrir frestas e a água potável poderá
secar o seu leito. As rochas, após sofrerem explosões, racham, se quebram,
rompem, se afastam uma das outras. Elas não vão estar sólidas.
Na
superfície da Terra, quando é provocada a estrutura que sustenta a camada
externa, com o tremor, a tendência da vida externa é sofrer impacto. Logo se
abre uma determinada camada da terra, causando a erosão, a fratura da base
subterrânea. Começa a encontrar um caminho para o fundo da Terra, através das
enxurradas penetram as águas potáveis, poderá secar a fonte de água doce, com
rompimento das camadas de rochas.
Nosso
receio é a liberação de gás prejudicial á vida dos seres humanos. O próprio
vulcão inativo se ativará. Será um desastre não só para a Amazônia, o mundo
todo sofrerá este impacto. Ao ser liberado o calor dos vapores do vulcão,
quando a água penetrar pelo canal aberto até o manto, o calor através de
vapores do contato com a água, o ar será aquecido, sendo prejudicial à vida
existente no planeta Terra.
Será
que o mundo vai permitir esse genocídio que está sendo anunciado com a decisão
do governo brasileiro de construir grandes hidrelétricas e outros grandes
projetos na região amazônica, que transformarão a natureza causando impactos irreversíveis
para toda a humanidade? É a vida na Terra que está em perigo e nós estamos
dispostos a continuar lutando, defendendo a nossa floresta e os nossos rios,
para o bem de toda a humanidade. E vocês? Vocês estão dispostos a ser
solidários nessa luta?
A
luta do Povo Munduruku não é contra um governo, mas em defesa da vida. É o
governo que não está sendo capaz de nos ouvir, de nos consultar, de respeitar
nossas decisões sobre os problemas que nos afetam e à da humanidade. Exigimos
respeito ao nosso direito de consulta prévia, livre e informada, pois não são
apenas os direitos indígenas que estão sendo violados, mas também os direitos
humanos e todo o patrimônio natural que preservamos há séculos.
Podemos
citar como exemplo o caso das Sete Quedas, localizada no rio Teles Pires (MT),
lugar sagrado, espiritual, onde estão os nossos ancestrais. Esse lugar sagrado
foi destruído para a construção de uma grande hidrelétrica projetada pelo
governo brasileiro. Sabemos que a energia que será gerada por essas hidrelétricas
não beneficiará a população Munduruku, nem tampouco a população do município.
Toda essa energia servirá apenas aos interesses do grande capital, de grandes
empresas multinacionais que pretendem explorar as nossas riquezas minerais.
Quem
vai decidir o nosso futuro, o futuro dos nossos filhos e netos? Será o governo,
com suas imposições, sua ganância e sua submissão aos interesses econômicos? O
que os países que ratificaram a Convenção 169 da OIT pensam a esse respeito? A
lei é para ser respeitada ou para ser violada? O governo brasileiro deve saber
ouvir as populações, assim como os demais países que assinaram a Convenção 169.
Exigimos
respeito aos direitos humanos, aos direitos indígenas, aos direitos do meio
ambiente, aos direitos de preservação do patrimônio arqueológico, ao nosso
direito de nos expressar enquanto povo com uma cultura diferenciada. A luta não
é somente nossa, a luta é em defesa de todas as formas de vida!
SAWE!
SAWE! SAWE!
*
Liderança da aldeia Sai Cinza, Terra Indígena Sai Cinza. Publicado no blog do jornalista Felipe Milanez
. Texto digitalizado por Rodrigo Oliveira, mestrando em Direitos Humanos na
UFPA e ativista do Dejusticia e também publicado no blog Autodemarcação
no Tapajós