Em 9 de junho, guerreiros munduruku realizaram um ato na reunião do Conselho Consultivo das Florestas Nacionais (Flona) Itaituba I e II, em protesto a um histórico de desrespeitos, pelo governo brasileiro, aos processos decisórios do povo indígena. Divulgada com três dias de antecedência, a pauta da reunião incluía uma concessão madeireira, por meio da qual o Serviço Florestal Brasileiro pretende leiloar 295.050,60 hectares (quase o dobro do tamanho da Terra Indígena vizinha, Sawre Muybu). Essa área conta com a presença de sítios arqueológicos e é onde Munduruku e ribeirinhos do PAE Montanha e Mangabal caçam, fazem seus roçados e pescam de maneira tradicional.
Durante o protesto, Munduruku do Médio e Baixo
Tapajós, que viajaram urgentemente para Itaituba, salientaram a perda de
confiança nas instituições governamentais de participação, uma vez que já protocolaram
junto ao Governo Brasileiro como devem ser consultados antes de qualquer
projeto que possa impactar seu território.
De acordo com esse Protocolo de Consulta,
elaborado com base na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, o
povo Munduruku deve ser consultado em conjunto, antes de o governo tomar suas
decisões.
Suas Assembleias refletem exatamente essa forma
de fazer política – são longas horas de discussão, das quais participam
crianças, mulheres, sábios, pajés, guerreiros, caciques e todos os convidados
presentes. A palavra de todos é ouvida e as discussões só se encerram com o
consenso ou com a protelação da discussão.
Esse processo não foi respeitado com o convite
enviado, três dias antes, a apenas uma das oito associações munduruku na
região. A reunião teve caráter meramente informativo – o conselho não é
deliberativo – e discutiu, entre outras questões, os limites da TI Sawre Muybu
e a intenção de leiloar a madeireiros uma área de uso tradicional. Os Munduruku
questionam a competência do conselho para discutir limites da TI sem a presença
do povo indígena e sua omissão quanto à avaliação de impactos que um projeto
desse porte geraria sobre seu território e o dos beiradeiros.
Os esforços de diálogo dos Munduruku com o
ICMBio e o Serviço Florestal Brasileiro datam de setembro de 2015, quando convidaram servidores desses órgãos para a Assembleia Geral do
Médio Tapajós. Durante a assembleia, os servidores foram sabatinados sobre a
instalação de placas identificadoras da Floresta Nacional no interior da T.I. e
sobre as contestações dos órgãos em relação à existência da T.I., que teve seu
Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação publicado em 19 de
abril de 2016. O Ministério do Meio Ambiente sustenta um parecer (processo
08001.005022/2015-52), protocolado em 26 de agosto de 2015 na FUNAI, em que
questiona a tradicionalidade da ocupação Munduruku nas terras do Médio curso do
rio Tapajós.
Essa não é a primeira vez que o governo federal
falha em conduzir uma consulta culturalmente adequada com os Munduruku na
questão das concessões florestais madeireiras. Em 2014, o Serviço Florestal
Brasileiro concedeu a uma grande madeireira quase meio milhão de hectares no
interior da Flona do Crepori, em área contígua à TI Munduruku, com ocupação de
ribeirinhos e do próprio povo Munduruku sem realizar qualquer consulta e
desrespeitando manifestações dos Munduruku e recomendação do MPF de que a área
não poderia ser leiloada para exploração madeireira por ser tradicionalmente
ocupada. Os estudos realizados pelo ICMBio apontavam existência de populações
tradicionais e indígenas na região, mas o órgão preferiu ignorar essas
informações em favor da exploração de madeira em grande escala. Graças a uma
ação civil pública movida pelo Ministério Público Federal, a Justiça Federal
reconheceu que a concessão expropriava povos e comunidades tradicionais e
deferiu liminar suspendendo a execução do contrato de Concessão Florestal
Madeireira que expropriaria os Munduruku e outras populações tradicionais.
O Ministério Público Federal também moveu ação contra
a Concessão Florestal Madeireira nas Flonas Itaituba 1 e 2. O pesquisador
Maurício Torres, um dos responsáveis pelo parecer que embasa a ação, comenta
que, o processo de concessão madeireira, além de ignorar a presença dos
Munduruku, dos ribeirinhos de Montanha e Mangabal e da riqueza arqueológica
local, não leva em conta as possibilidades de impacto de um Plano de Manejo
Madeireiro de grande escala. “Não são considerados os possíveis impactos da retirada
em massa de espécies seletivas necessárias ao funcionamento do ecossistema
local (englobando a própria TI), a possibilidade de avanço da exploração
madeireira sobre a Terra Indígena, a restrição de acesso às áreas de concessão,
entre outros impactos. Mais grave ainda foi a omissão do ICMBio, ao elaborar o
zoneamento das Flonas, em relação à presença ancestral dos indígenas e ribeirinhos
nessas áreas e a redução de seu território às aldeias e comunidades onde
constroem suas casas, negando seu direito às terras imprescindíveis à preservação
dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e à sua sobrevivência
física e cultural”.
Leia abaixo a carta entregue ao ICMBio, Serviço
Florestal Brasileiro e Ministério do Meio Ambiente pelos Munduruku do Médio
Tapajós.
Manifestação dos munduruku do Médio Tapajós
Manifestação dos munduruku do Médio Tapajós
09 de junho de 2016
Aqui manifestamos nossa posição contrária ao
ICMBio, Serviço Florestal Brasileiro e MMA, que desrespeitam a nossa ocupação e
a nossa história e querem apagar a Mundurukânia do rastro do tempo. Devolvemos
a contestação e questionamos a origem e a imagem de “protetores da floresta”
que o ICMBio insiste em sustentar. Vemos que as áreas que dizem proteger, estão
sendo cruelmente devastadas.
Há extração ilegal de madeira e palmito, além de
uma série de balsas iscariantes exercendo as atividades de garimpagem,
contaminando as águas do rio e os peixes. Isso tudo justamente nas áreas que
dizem proteger.
Quando nós Munduruku exigimos ao governo que
reconheça e demarque o nosso território, estamos seguindo o artigo 231 da
Constituição, criada por ele mesmo, para proteger a nossa política, cultura, economia,
organização social e o conhecimento deixado pelos nossos ancestrais. Vocês
afirmam que essa terra não é “tradicionalmente ocupada por nós” e vocês
quererem leiloar uma grande área de florestas ao nosso redor para madeireiros.
Querem fazer isso sem saber o impacto que isso trará pra nós, sem nos consultar
como a lei obriga e, ainda, sabendo que essa floresta que vocês querem entregar
pra madeireiro tem nossas marcas. São terras de ocupação ancestral indígena e
ribeirinha, que vocês decidiram chamar de FLONA. Fazendo isso, vocês, Ministério
do Meio Ambiente, ICMBio e SERVIÇO FLORESTAL BRASILEIRO se assumem como parte
do processo colonizador que extermina povos e pensamentos. Estão usando de
violência, desprezando nosso conhecimento e desrespeitando nossos locais
sagrados, bens de natureza imaterial, que são também parte do Patrimônio
Cultural Brasileiro, segundo o artigo 216 da Constituição.
Desde a chegada dos colonizadores, no século XV,
o Brasil era dos indígenas. Somos a raiz dessa terra. A FLONA foi criada ainda
neste século. Não deveria, então, prevalecer o nosso direito originário a
terra?
Nós Munduruku é que sabemos cuidar da terra,
como nossos antepassados: conhecemos e respeitamos o ciclo da natureza, os
processos de reprodução e desenvolvimento de uma infinidade de vidas. Isso
vocês chamam de conhecimento cientifico e tecnológico.
Os que criam leis não conseguem proteger.
Reservam um pedaço de floresta, chamam de unidade de conservação, para depois
terminar de destruí-lo. Pensam apenas nos lucros que ela pode dar.
Vocês devem entender que não dividimos e
encarceramos o território como vocês. Para nós, ele não tem limites. Assim como
os beiradeiros de Montanha e Mangabal, que não foram sequer informados sobre
essa reunião, andamos por todo esse território há muitos e muitos anos. Vocês
escondem as coisas dos beiradeiros porque estão querendo entregar para os
madeireiros as terras que os beiradeiros ocupam, onde eles têm roça, onde eles
caçam.
Nosso manifesto é pela falta de respeito com que
as instituições governamentais vêm nos tratando, contrariando nossas decisões e
passando por cima do nosso direito à consulta. Fizemos um Protocolo de Consulta
que mostra a nossa forma de dialogar e decidir. Se não recebemos informações e
nem fomos consultados sobre a Concessão Florestal, nos termos que exigimos
nesse documento, não temos por que participar de um Conselho que nada decide e
de uma reunião que somente “informa”. Nosso Protocolo é bem claro ao dizer que
ninguém sozinho, nenhuma Associação ou liderança, poderá representar o povo
Munduruku e que todas as aldeias devem ser consultadas e decidir sobre assuntos
tão graves como a Concessão florestal nos limites do nosso território.
Não vamos discutir o Plano de vocês. O Plano
deverá ser elaborado e feito por nós e nós não queremos que caminhões de
madeira bloqueiem os lugares por onde andamos livremente.
A demarcação e proteção do nosso território é a
nossa prioridade. Enquanto houver planos de construir empreendimentos e
implantar projetos de retirada de madeira ao nosso redor e que possam afetar nossas
florestas, não vamos aceitar convites desse tipo.
Então, é melhor vocês aprenderem a falar a nossa
língua, se querem MESMO dialogar. Temos que usar as suas palavras, para fazer
ouvir nossas vozes, mas elas não podem dizer o nosso mundo. Enquanto vocês
falam em “madeira”, nós conhecemos cada uma das árvores, sabemos de sua origem,
como nos ajudam a curar e até mesmo a construir nossas casas. Vocês usam esses
nomes “concessão florestal”, “manejo madeireiro” e outros, para transformar tudo
em uma coisa só, tirar o valor que elas já têm e colocar o valor do dinheiro de
vocês.
Sabemos que o ICMbio convocou essa reunião às
pressas para cumprir exigências legais e legitimar suas decisões, passando mais
uma vez por cima do povo Munduruku e mentindo que dialoga com a gente.
Deixaremos aqui bem claro: Não vamos participar dessa reunião e nem deixar que
ela aconteça.
Não queremos participar de um Conselho que não
respeita nossa forma de dialogar (vejam nosso protocolo). Não iremos participar
de um conselho que não decide nada, e que vai permitir que vocês digam que nós
participamos das decisões que vocês tomaram. E não vamos permitir que discutam
“delimitação” do nosso território do jeito que vocês bem entendem.
A mais, não vamos permitir que aconteçam as
reuniões desse Conselho enquanto o ICMBio não retirar as placas que colocou na
nossa terra. Não vamos permitir que aconteçam as reuniões desse Conselho enquanto
ICMBio e Serviço Florestal Brasileiro não CANCELAREM o processo de concessão
nas áreas que ficam em volta da nossa terra.
Exigimos também o Pronunciamento do ICMBio em
relação ao ofício enviado ao Ministério da Justiça e ao Presidente da FUNAI
pelo Ministério do Meio Ambiente, que cita sua pesquisa na área indígena e
questiona a historicidade da ocupação Munduruku: ICMBio deve admitir que não
conhece os Munduruku e nem sua história. – onde está o parecer que o ICMbio de
Itaituba prometeu que faria quando foi na nossa Assembleia, em setembro de
2015?
Fonte: Movimento Xingu Vivo Para Sempre