Assassinato
do líder sem-terra Cícero Guedes reaviva a saga das mortes no campo, drama que
o país não consegue resolver
Christina Nascimento*
Dona
Lúcia respira fundo antes de cada palavra. A voz é baixinha e parece doída.
“Ele só queria um pedaço de terra. Só um.” O assassinato do marido, o líder
sem-terra Cícero Guedes, 48, há uma semana em Campos, no Norte Fluminense,
desenha a realidade de um país que ostenta a posição de sexta economia mundial
mas ainda tem no campo a mesma violência de cinco décadas atrás.
O alagoano foi executado faltando sete dias para se completar 22
anos da morte de Expedito Ribeiro de Souza, 43, outra liderança que terminou a
luta pela reforma agrária com o corpo crivado de balas, só que no Pará.
Como num círculo vicioso, a história do conflito de terra no
país repete os mesmos personagens. Cícero, assim como Expedito, era negro,
semianalfabeto, idealista e migrou da cidade de origem para fugir da miséria.
Deixou para trás o município de Murici (cidade de 27 mil habitantes no interior
de Alagoas) com a mulher e dois filhos pequenos, porque não suportava mais o
trabalho escravo, a fome e a falta de expectativa de vida. Expedito saiu de
Minas Gerais, passou pela Bahia e Goiás e se fixou no Pará, atraído pela
propaganda do regime militar, que prometia terra na Amazônia.
Viúva de Cícero, Dona
Lúcia, na verdade Maria Luciene Ferreira, 42, conta uma história parecida. “A
gente saiu de lá (Murici) só com uma trouxa de roupa e um dinheiro para o
lanche. Ficamos uma semana na estrada de carona. Não tínhamos rumo certo”,
contou.
Sem
saber ler, o casal nunca teve noção por onde passou. A viagem terminou em
Campos, pois o motorista de um ônibus, que aceitou levar a família de graça,
disse que o lugar “era mais calmo que o Rio”. Ao ver tanta terra, Cícero
acreditou que tinha encontrado seu ‘Eldorado’, o mesmo que imaginava existir no
latifúndio improdutivo em que se transformou a Usina Cambahyba.
Mesmo com título de posse no assentamento Zumbi dos Palmares, a 15 minutos da usina, Cícero liderou a ocupação de cerca de 200 famílias na antiga fábrica. Morreu perto dali, executado. “Meu pai se foi acreditando na justiça agrária. Não poderá ir à formatura da única filha que fez faculdade. Parece que ainda o vejo no sofá, soletrando as letras do jornal, tentando entender o que estava escrito”, desabafou o filho Mateus Silva, 16.
Mesmo com título de posse no assentamento Zumbi dos Palmares, a 15 minutos da usina, Cícero liderou a ocupação de cerca de 200 famílias na antiga fábrica. Morreu perto dali, executado. “Meu pai se foi acreditando na justiça agrária. Não poderá ir à formatura da única filha que fez faculdade. Parece que ainda o vejo no sofá, soletrando as letras do jornal, tentando entender o que estava escrito”, desabafou o filho Mateus Silva, 16.
Assassino de Expedito ficou apenas um ano e meio preso
Se para a Polícia Civil
o assassinato de Cícero está quase esclarecido — com a prisão de um acusado e a
identificação de três pessoas ligadas ao crime — para amigos do líder do MST o
caminho para a investigação é mais sinuoso. Isso porque existe uma prática conhecida
nos acampamentos que é a infiltração de pessoas para desarticular o movimento.
“O acampamento é um
ambiente bastante complexo, e o Cícero ocupava justamente o papel de equilibrar
os diferentes interesses que existem no agrupamento”, diz o professor da
Universidade Estadual do Norte Fluminense (Uenf), Antonio Pedlowski, que há 15
anos estuda assentamentos no Norte fluminense.
Cícero e a bandeira do MST: lavrador saiu de
Alagoas com a família fugindo da fome e sonhando com terra | Foto: Arquivo
pessoa
|
O acusado de ser o mandante é o funcionário público de São João
da Barra, José Renato Gomes de Abreu, 45. Segundo o delegado Geraldo Assed, da
134ªDP (Campos), ele teria ligação com traficantes e vivia no acampamento da
Usina Cambahyba. O MST reconhece sua presença na fazenda, mas nega ligação com
o movimento.
No caso da morte de Expedito,
há 22 anos, o mandante foi encontrado, mas manobras judiciais permitiram que o
fazendeiro Jerônimo Alves de Amorim, condenado há 19 anos, no Pará, ficasse
apenas um ano e meio preso. Parte da pena foi cumprida em casa. Durante o
processo, ele conseguiu transferir os autos para a Justiça de Goiás, onde vivia
a sua família.
Área da usina é
disputada há 14 anos
Campos tem 81 grandes
propriedades rurais e também o maior latifúndio do Estado — a Fazenda Sapucaia,
com 10,7 mil hectares. Lá, mais de 20 mil hectares estão em processo de
desapropriação e o clima de tensão no campo, na região, aumentou desde a morte
de Cícero.
A falida Usina
Cambahyba, alvo de disputa pelo MST, é formada por oito fazendas e a briga pela
desapropriação do local já dura 14 anos. A ocupação por famílias, como a da
grávida Ana Carolina Oliveira, 26, que tem cinco filhos, ocorreu no dia 2 de
novembro.
“Não tenho como pagar R$
100 de aluguel. Meu marido é biscateiro. Viemos porque queremos terra para
plantar”, disse ela, que dorme no chão batido com as crianças.
Em 1998, o complexo
Cambahyba foi considerado pelo Incra passível de desapropriação, por ser
improdutivo. Mas os herdeiros contestaram com uma ação. O desfecho só ocorreu
no ano passado e foi favorável ao parecer do órgão federal.
Das oito propriedades,
três foram arrecadadas pela Fazenda Nacional, em função de dívidas de quase R$
100 milhões da usina com a União. As restantes estão sendo avaliadas pelo Incra
para se chegar ao valor da indenização a ser paga aos proprietários pela
desapropriação.
Fonte: O Dia (RJ)