Por: André Borges*
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Foto: Dida Sampaio/O Estado de São Paulo
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“Corre, João Vitor!”, grita Maria
das Graças para o filho. Sem tempo para mais nada, pega o garoto pelo braço,
abre o portão e sai. O trator avança nas paredes da casa vizinha. São menos de
dois minutos até tudo ir abaixo. Em três dias, será a vez de a casa de Maria
das Graças cair. Ela assiste de longe, sem largar as mãos do garoto. Duas
semanas atrás, um caminhão carregado de entulho derrubou o poste de sua casa e
lançou a viga de madeira sobre ela, abrindo um rasgo em sua cabeça. A mulher
desmaiou e foi socorrida pelo filho. Levou nove pontos. Desde então, não
consegue mais dormir direito.
Em cada esquina de Altamira, histórias
como a de Maria das Graças proliferam entre as pilhas de entulho e a derrubada
constante de casas e barracos, que já somam 4 mil demolições. Muitas vão cair.
Cerca de 1.100 casas. Há pressa. É hora de abrir espaço para encher o lago da
hidrelétrica de Belo Monte. É hora de barrar o Rio Xingu.
A corrida frenética dos
reassentamentos causada por Belo Monte envolve 7,8 mil famílias – ou cerca de
27 mil pessoas –, impactadas pela obra da quarta maior hidrelétrica do mundo,
que neste mês, completa quatro anos de construção no coração do Pará.
A concessionária Norte Energia, dona
da usina, devia ter ligado a primeira turbina em fevereiro. Atrasada, corre
contra o relógio para retirar, nos próximos dois meses, milhares de imóveis que
estão na orla de Altamira, liberando a área para subir o nível do rio e
entregar energia a partir de novembro.
O Estado percorreu toda a região nesta
reta final para o enchimento do lago de Belo Monte, uma ação que ainda depende
de emissão de licença ambiental. Altamira, município que vai trocar a paisagem
de um rio pela de um reservatório, mais parece um cenário de guerra, com casas
destruídas e escombros por todo lado. A derrubada e retirada de milhares de
toneladas de material é uma exigência do licenciamento. Entre os milhares de
moradores que ainda não trocaram de endereço, o clima é de apreensão, e por
vezes, de revolta.
Caos. “A cidade é um caos hoje. Vai
precisar de, no mínimo, três anos para voltar à normalidade”, admite o prefeito
de Altamira, Domingos Juvenil (PMDB). À frente do município desde 2013, ele diz
que boa parte da culpa pela convulsão que toma conta da cidade é da gestão
pública. “A origem do caos é o impacto causado pela construção [DA USINA], mas
muito disso se deve aos governos do Estado e do município, porque não houve
ações antecipatórias que pudessem minimizar esse caos.”
Discutida há 40 anos, Belo Monte
escreve linha a linha em Altamira o mesmo roteiro de outras cidades da Amazônia
que já receberam grandes projetos hidrelétricos. O município, que em 2010 tinha
cerca de 100 mil habitantes, viu sua população subir para mais de 150 mil pessoas.
Neste período, já recebeu da concessionária Norte Energia R$ 3,092 bilhões para
minimizar os impactos e melhorar as condições de vida.
O resultado mais aparente das mudanças
está na retirada de milhares de famílias que viviam em palafitas precárias e
insalubres nos igarapés à beira do Xingu. Quase todas as casas de madeira já
foram destruídas e a população, levada para os bairros que a empresa ergueu
fora da cidade. No mais, Altamira continua a ser a mesma cidade precária,
incapaz de traduzir os benefícios de sediar um empreendimento hoje avaliado em
R$ 32 bilhões e que terá capacidade de entregar energia para 18 milhões de
famílias.
Violência. As ações compensatórias
atreladas a Belo Monte acabam de ser medidas pelo Instituto Socioambiental
(ISA), a partir de dados oficiais, entrevistas na região e artigos de 20
especialistas. O levantamento mostra que, entre 2011 e 2014, o número de
assassinatos na cidade saltou de 48 para 86 casos por ano. Acidentes de
trânsito, furtos e roubos mais que duplicaram nesse período. O principal
hospital da cidade só ficou pronto em março deste ano e ainda tem pendências
para operar, porque o município não tem orçamento suficiente para
administrá-lo. Faltam itens como leitos para atendimento e internação.
No saneamento básico, a promessa era
entregar para 100% da população uma rede de água e esgoto “igual à da Suíça”,
mas o projeto ainda não saiu do papel. As estações de tratamento e as
tubulações centrais estão prontas, mas as conexões com as casas foram alvo de
um ano de discussões e intrigas entre a concessionária, o município e o Estado.
Na última semana, resolveu-se finalmente que a prefeitura ficará responsável
pelas ligações até as casas e que a Norte Energia pagará a conta.
Na orla do Xingu, o desespero toma
conta de José Marconi Bonfim, que vê seu barraco de madeira ser derrubado. O
pescador, conhecido como Ceará, perambula em cima dos escombros do que era a
sua casa. Treme e chora. Perguntado sobre onde colocou as suas coisas e onde
vai dormir, aponta para o barco. “Vou dormir ali, por ali”.
Projeto pode ter até 1.800 processos
judiciais
Antes de produzir energia, Belo Monte
está prestes a gerar uma infindável quantidade de processos judiciais movidos
por moradores que protestam para receber uma nova casa ou indenizações em
dinheiro.
Nas gavetas improvisadas da Defensoria
Pública da União (DPU) em Altamira, já se acumulam processos administrativos de
mais de 2 mil famílias que não conseguiram entrar no cadastro social feito pela
concessionária. Essa lista, que foi fechada em janeiro de 2013, é o que
estabelece quem tem direito às indenizações, segundo a empresa.
Em acordos já feitos com a Norte
Energia, a defensoria conseguiu garantir a entrega de casas para cerca de 80
famílias que não estavam nesse cadastro. Algumas indenizações também foram
acertadas. A maioria dos casos, porém, tem enfrentado forte resistência da
concessionária.
“Vínhamos conseguindo taxas boas de
acordo, mas isso foi caindo cada vez mais, porque a empresa passou a fazer
várias exigências adicionais que praticamente inviabilizam as negociações. Por
isso, devemos judicializar mais de 1,8 mil processos. Não restará outro
caminho, teremos de recorrer à Justiça”, diz o defensor público Francisco de
Assis Nóbrega. Cerca de 30 processos já foram apresentados à Justiça Federal. O
número ainda é pequeno porque Altamira só passou a ter uma defensoria pública
para zelar por seus cidadãos em janeiro deste ano.
Entre os casos que já chegaram à
Justiça está o de Laura Mendes da Silva. Dona Laura é uma típica beiradeira,
como é conhecida a população que habita as ilhas e margens do Rio Xingu. Ela se
divide entre a casa que tem na beira do rio, onde produz alimentos, e
residência que tem em Altamira, onde vende o que planta. “Disseram que eu não
tinha direito a casa na cidade porque eu era dona de uma casa de apoio. Me
ofereceram R$ 48 mil. Parece muito, mas não vale mais nada por aqui. Falaram
que, se eu não estava satisfeita, que procurasse meus direitos, porque essa
casa eu já tinha perdido. Vou lutar até o fim”, diz.
Nos novos bairros falta energia
Bairros construídos na periferia de
Altamira pela maior hidrelétrica do Brasil têm enfrentado constantes problemas
com abastecimento de energia. É o que se houve de moradores que já passaram a
viver no Jatobá, São Joaquim e Casa Nova, três dos cinco bairros erguidos pela
Norte Energia. As reclamações incluem o preço caro da conta de luz. “Aqui a luz
acaba uma, duas vezes por semana. Às vezes demora um dia inteiro para voltar”,
diz Aracélia Oliveira Porto, moradora do bairro Casa Nova, a cerca de 8 km do
centro, isolado por uma estrada de terra.
Casa Nova segue o padrão das demais
vilas que foram erguidas para abrigar os reassentamentos, com casas coloridas e
padronizadas. Nesses bairros, a Norte Energia ergueu cerca de 4,6 mil
residências com área de 63 m² cada, em terrenos de 300 m². Todas têm três
dormitórios e uma suíte. O saneamento foi concluído e há ônibus escolar para as
crianças. O transporte público ainda não existe. Não há rede de comércio nos
locais.
Gente que antes morava perto do rio e
vivia da pesca reclama que agora tem de se virar com transporte pago ou pegar
carona para chegar ao Xingu. Muitos já desistiram da profissão e tentam se
virar como podem. Diversas casas das vilas já transformaram a sala em pequenos
comércios e salão de cabeleireiro e manicure.
Rapidamente, o visual padronizado das
vilas começa a mudar. Famílias erguem cercas de madeira e constroem mais
cômodos no terreno.
São muitos os relatos de pessoas que
enxergam melhora na qualidade de vida, principalmente daquelas que viviam sobre
as palafitas instaladas sobre o lixo e que hoje estão no Jatobá, o bairro mais
próximo do centro, há cerca de 5 km. São muitos também os casos de pessoas que
não se adaptaram e que já colocaram suas casas à venda, apesar da orientação
oficial de que não devem se desfazer dos imóveis.
Para além das queixas sobre a
infraestrutura e a distância das vilas, uma das mais ouvidas é a perda de laços
sociais com famílias e vizinhos com os quais se convivia há anos, na mesma rua.
O plano de reassentamento previa que blocos de residências fossem levados para
uma mesma área, mas a correria para garantir a escolha do lar separou muita
gente.
Moradora de Casa Nova desde outubro do
ano passado, Aracélia colocou uma plaquinha de venda em sua casa no dia em que
falou com a reportagem. “Eu tinha tudo lá no centro da cidade. Aqui não tem um
açougue, uma farmácia, um supermercado. Quero ir embora, nem que seja para um
lugar menor, mas quero voltar para a cidade”, diz ela. Ele pede R$ 75 mil pela
casa, mas avisa que negocia.
O fim das obras dos ‘barrageiros’
Os mais de 24 mil trabalhadores que
hoje atuam diretamente nos canteiros de obra de Belo Monte estão em vias de
fechar um ciclo. Muitos desse barrageiros – como são conhecidos os funcionários
que atuam na construção de hidrelétricas – são da própria região de Altamira,
mas uma grande parte desse contingente também saiu do Rio Madeira, em Porto
Velho (RO), por conta das desmobilizações nas usinas de Jirau e Santo Antônio.
Ocorre que a próxima grande
hidrelétrica que manteria o emprego desse exército de trabalhadores, a usina de
São Luiz, prevista para ser erguida no Rio Tapajós, em Itaituba (PA), ainda
está longe de se tornar realidade, dada a extrema complexidade ambiental que envolve
o projeto. Sem licenciamento, rodeada por florestas protegidas e aldeias
indígenas, a usina estimada em mais de R$ 30 bilhões ainda é uma incógnita.
Essa situação é agravada ainda mais
por conta dos esquemas de corrupção em que se meteram as principais
empreiteiras do País. Trata-se de um grupo de empresa que joga papel central na
construção e na formação de sociedades para viabilizar esses empreendimentos.
A ameaça de demissões em massa é
iminente. Entre funcionários diretos e indiretos, Belo Monte reúne cerca de 40
mil. Muitos deles começarão a perder emprego já no segundo semestre, quando
começa a acabar o pico das obras. Em reunião em Altamira, o diretor
socioambiental da Norte Energia, José Anchieta, disse aos convidados que a
empresa já está contratando um programa de desmobilização de mão de obra. Sobre
os funcionários da região, explicou que serão oferecidos “cursos de readequação
e capacitação” para que voltem ao trabalho, seja ele qual for.
“Aqueles que vieram de fora, o CCBM
(Consórcio Construtor de Belo Monte, que reúne as empreiteiras que executam as
obras da hidrelétrica) tem a obrigação de, da mesma forma que os trouxe,
devolvê-los ao seu lugar de origem. Eles receberão passagem de ida sem volta”,
disse.
Apesar da atual realidade dos projetos,
Anchieta disse que os barrageiros não terão dificuldades de se encaixar em
outras obras, porque já aprenderam a construir usinas e há muitos projetos para
serem executados. Ele citou como exemplo a Hidrelétrica de Marabá. Trata-se de
mais uma que ainda não tem data para se viabilizar.
Empresa afirma estar ‘aberta à
negociação’
As mais de 1,8 mil famílias que ainda
lutam para conseguir indenizações da Norte Energia podem se preparar para uma
boa briga nos tribunais. Por meio de nota, a concessionária informou que está
aberta ao diálogo e à negociação em todas as etapas da construção da usina, mas
sinalizou que já fechou seu plano de reassentamento. “A empresa cai argumentar
e se defender na Justiça.”
O valor investido em ações
socioambientais e aquisições fundiárias até maio chegou a R$ 3,092 bilhões e a
maior parte dos investimentos exigidos será feita até dezembro.
Segundo a empresa, o cadastro que
prevê compensações atinge 7.790 famílias. “Já foram beneficiadas 3,3 mil e mais
600 estão sendo transferidas para casas nos novos bairros.” Informou que foram
construídas 3,7 mil casas nas novas vilas e que serão 3,9 mil no total. Sobre
as indenizações, 3,4 mil famílias receberam valores em dinheiro e outras 400
aguardam pagamento.
Sobre reclamações de que os valores
das indenizações são insuficientes para comprar outra casa, a empresa declarou
que “vêm sendo realizadas com o respeito à legislação sobre o tema” e que o
assunto foi “amplamente discutido com a sociedade, órgãos competentes e
entidades de classe”.
A respeito da conclusão das obras de
saneamento, informou que as ligações para as casas dos moradores de Altamira
serão feitas em parceria com a prefeitura. Já foram concluídos 170 km de
tubulação, oito reservatórios, uma estação de captação e uma de tratamento. A
rede de esgoto tem prontos 220 km de tubos, 13 estações elevatórias e uma
estação de tratamento.
Quanto à distância dos bairros para
abrigar a população ser maior que a prevista, a empresa disse que todos os
investimentos e obras foram feitos “após intensa discussão com a população e
aprovados pelos órgãos licenciadores”. Reiterou que acompanha a pesca no Xingu,
e que suas análises “evidenciam que não houve alterações na qualidade da água
do rio além das naturais, com exceção de pontos próximos às obras e por curtos
períodos, as quais não ultrapassam os limites da legislação ambiental.”
Pescadores e índios dizem que peixe
sumiu
Estudos técnicos e relatos feitos pela
Norte Energia concluem que a pesca no Rio Xingu, que sempre foi fonte de
alimentação e meio de vida para milhares de pessoas, não sofreu impacto em
decorrência da usina. Os pescadores e índios, porém, são unânimes em dizer que
o peixe está sumindo rapidamente em meio à água que está mais turva, às luzes
das obras que ficam acesas à noite e às explosões de dinamites.
Ribeirinha nascida na região, Maria de
Lourdes Soares da Silva, conhecida como “rainha do tucunaré”, diz que nunca
viveu situação igual. “Tenho 55 anos e pesco nesse Xingu desde os nove. A pesca
está acabando. Com essa zoada toda e a água suja, o peixe vai sumindo. Antes,
eu passava três dias pescando e voltava com 150, 200 quilos de peixe. Hoje, são
20 ou 30 quilos, e quando pega. Os peixes estão correndo daqui”, diz.
Maria vive com a família em uma casa
isolada na mata, na Volta Grande do Xingu, área do rio com cerca de 100 km de
extensão que ficará isolada entre as duas barragens que formam Belo Monte.
Neste trecho, a oscilação natural do nível das águas deixará de existir,
permanecendo em sua cota mínima, por conta do represamento no reservatório
principal da hidrelétrica. Diversas espécies de peixes, principalmente
ornamentais, estão ameaçadas de desaparecer.
Segundo o Instituto Socioambiental, as
ameaças à pesca têm sido ignoradas pelo Ibama, que não se pronuncia sobre os
programas de monitoramento há mais de dois anos.
A Norte Energia, após muita
negociação, concordou em erguer uma vila mais próxima do rio para abrigar
ribeirinhos e indígenas. O bairro Pedral prevê a construção de 500 casas para
quem depende da pesca artesanal. Outra saída dada pela concessionária é que a
população adote “tanques-rede” para a criação de peixes, técnica que aproveita
o leito dos rios para produção em confinamento.
Na última sexta-feira, o escritório da
Norte Energia em Altamira foi bloqueado por pescadores que reclamam de terem
sido ignorados pela empresa em compensações e indenizações. Todos os
funcionários tiveram de ir embora.
*Fonte: O Estado de São Paulo