Por: Roldão Arruda*
“Os conflitos não ocorrem porque os
índios têm terra demais”, diz o antropólogo Márcio Meira, ex-presidente da
Funai. “Eles ocorrem porque os índios têm terras que interessam ao
agronegócio.”
Há
uma reação cada vez mais forte na sociedade brasileira às demandas das
populações indígenas, na avaliação do antropólogo Márcio Meira, ex-presidente
da Fundação Nacional do Índio (Funai). A reação decorre do crescimento econômico
e o consequente avanço sobre áreas ocupadas pelos índios por empreendimentos do
agronegócio, da mineração e hidrelétricas, segundo o especialista.
Outro
fator preocupante para os índios, na avaliação do especialista, é o
fortalecimento da bancada ruralista no Congresso e o seu alinhamento com grupos
religiosos que apoiam missionários. Meira afirma que o objetivo da Proposta de
Emenda Constitucional 215 (PEC-215), que está sendo desarquivada na Câmara, é a
paralisação da Funai – cuja missão legal é a proteção dos interesses indígenas.
O
antropólogo também acredita, por outro lado, que as comunidades indígenas estão
melhor preparadas para a defesa de seus direitos. A perspectiva é de
acirramento dos conflitos.
Meira
presidiu a Funai durante cinco anos, entre 2007 e 2012. Foi o presidente mais
longevo da instituição, desde que foi criada em 1967. Em seu mandato ocorreram
a retirada dos arrozeiros da Terra Indígena Raposa Serra do Sol e a aprovação
do projeto de construção da usina hidrelétrica de Belo Monte.
Em entrevista ao Estadão, em 2008, o
senhor disse que o preconceito contra os índios estava aumentando no Brasil.
Como vê a situação hoje?
Ficou
pior. As reações anti-indígenas estão cada vez mais visíveis entre os atores
políticos no Legislativo e no Executivo – onde existem ministros favoráveis e
contrários às demandas indígenas. Mas não é só. O sentimento anti-indígena é
forte no conjunto da sociedade. As pesquisas de opinião mostram isso. Um
levantamento realizado em 2011 pela Fundação Perseu Abramo mostrou que 5% dos
entrevistados concordavam de maneira total ou parcial com a expressão ‘índio
bom é índio morto’. Isso significa uma concordância de 10 milhões de
brasileiros.
A que atribui esse sentimento?
Quando
se observa a história do Brasil no período republicano, verifica-se o seguinte:
em todas as ocasiões nas quais o País passou por um grande processo de
desenvolvimento econômico, sempre associado à expansão da ocupação territorial,
houve acirramento das tensões com os indígenas. No início do século 20, o
crescimento econômico provocou o avanço territorial em direção a áreas quase
inacessíveis nos Estado dos Rio Grande do Sul, Paraná, São Paulo. Os conflitos
com os indígenas foram muito fortes, porque eles estavam no caminho da
construção das estradas de ferro e também do movimento de colonização que
trazia para o Brasil os alemães e os italianos. O massacre dos índios kaingang
nessas regiões foi brutal.
De que maneira isso repercutiu na
sociedade?
Houve
um grande debate na imprensa. O então diretor do Museu Paulista, Herman Von
Hering, publicou um artigo no qual defendeu o extermínio dos índios. Dizia que
não podiam ser um obstáculo ao progresso, ao avanço da civilização. Se fosse
necessário, deveriam morrer. Uma das pessoas que se levantaram contra essa
ideia foi Cândido Rondon. Para ele, a civilização não podia significar morte
para os índios. O Estado, dizia o sertanista, tinha que proteger esses povos.
Foi um processo semelhante ao que
ocorreu na ditadura, com o avanço em direção à Amazônia Legal, não?
Sim.
O padrão se repete nos anos 50 e, mais tarde, na época dos governos militares,
nas décadas de 60 e 70. Com a construção das rodovias BR-163, BR-364 e
Transamazônica, que cortam a região amazônica, vários povos que viviam isolados
foram contatados. Entre eles estão os panará, araweté, arara, assuri do
Tocantins. Quando a economia está em crise, verifica-se uma redução dos
conflitos, uma calmaria em relação às populações que estão no meio do mato, nas
terras deles. Não é o que está ocorrendo agora. Os conflitos são agravados
porque a expansão atual é capitaneada pelo agronegócio, o setor que mais tem a
ver com a ocupação do território.
Não é só com o agronegócio que surgem
conflitos.
Também
existem os interesses das empresas de mineração e a questão energética. Com a
expansão econômica, torna-se necessário melhorar e aumentar o suprimento
energético, para o País continuar crescendo. Como os mananciais das outras
regiões estão esgotados, é preciso construir hidrelétricas na Amazônia.
Hoje o deslocamento de índios de suas
terras é mais complicado do que nos ciclos de expansão anteriores. Há menos
terra, não é?
Sim.
O caso do Mato Grosso do Sul é o melhor exemplo disso. Por outro lado, também
mudou o sistema de proteção dos direitos indígenas. Ele tornou-se mais sólido a
partir da Constituição de 1988 e do regime democrático que veio a seguir, o
mais longo de toda a história republicana. Esses fatores, associados a
políticas de saúde que tiveram mais eficácia a partir da década de 80
permitiram que a população indígena voltasse a crescer. Passou de menos de 200
mil pessoas, no início dos anos 80, para quase 900 mil nos dias de hoje. Outra
novidade da história recente é que os índios passaram a ser atores políticos na
cena democrática. Hoje eles têm organizações próprias, desenvolvem suas próprias
narrativas, são atores políticos diretos.
Como vê o desarquivamento, na Câmara,
da Proposta de Emenda Constitucional 215?
Essa
PEC, o projeto de lei votado há pouco sobre recursos genéticos e outras medidas
anti-indígenas estão dentro do contexto de crescimento econômico sobre o qual
falei. Os atores políticos que atuam contra os indígenas estão interessados nas
terras deles. Essa é a questão fundamental. Não se trata de ser contra os
índios porque são índios ou porque possuem terras demais. O que acontece é que
os índios têm terras que interessam a esses atores políticos.
Pela sua exposição, o agronegócio está
sempre no centro do conflito.
O
que vimos recentemente foi o encolhimento da produção industrial, ao mesmo
tempo que cresciam a produção agropecuária e a exportação de commodities
agrícolas. O Brasil foi se tornando cada vez mais dependente da economia gerada
pelo agronegócio e isso teve esse repercussões políticas no governo. Não é por
acaso que a Kátia Abreu está no ministério.
Os ruralistas ganharam mais poder?
Os
ruralistas têm muito poder econômico e político nesse momento. Eles têm
dinheiro, financiam campanhas eleitorais, conseguem uma bancada cada vez maior
e estão se aliando cada vez mais à bandada religiosa, onde estão missionários
que também têm interesses conflitantes com os dos índios. Por outro lado, como
já disse, os índios também estão melhor preparados, vão a Brasília com mais
frequência. O arquivamento da PEC 215, no final do ano passado, foi uma
demonstração de que os indígenas e seus aliados ainda têm força no Congresso.
O que está havendo é um acirramento
dos conflitos?
Sim.
Isso é decorrência de um processo maior, estrutural, que envolve a economia, a
política, toda a sociedade brasileira. Os debates deste ano e do próximo ano no
Congresso serão muito marcados por essa agenda. O Judiciário e o Executivo
também serão pautados.
Como vê a Funai nesse processo?
A
Funai tem sido muito atacada. Procura-se, por todos os lados, construir uma
narrativa de que a instituição incompetente e não confiável, do ponto de vista
técnico, para a missão que deve desempenhar. Essa narrativa, construída pelos
ruralistas, pelos grupos anti-indígenas, tem um sentido ideológico. Na verdade,
a Funai foi muito competente nas suas ações. Se não fosse assim, não sofreria
tantos ataques, não haveria tanta reação. Se ela não tivesse demarcado nada, se
não tivesse conseguido impor e colocar na prática o que está estabelecido na
lei, ninguém estaria preocupado com ela. Do total das terras indígenas
existentes no País, 80% foram demarcadas após a Constituição de 1988, quando se
estabeleceram regras claras sobre a questão. Isso é demonstração clara de como
ela foi eficiente.
Acha que é por isso que querem retirar
da Funai e transferir para o Congresso a tarefa de demarcação de terras?
Demarcar
a terra significa retirar uma parte do território brasileiro do mercado
capitalista. A área demarcada fica fora, diz a Constituição. Não pode ser
vendida, trocada, alienada. É uma terra da União destinada ao uso coletivo
pelos índios. No fundo é a reforma agrária mais eficaz que já foi feita no
País.
*Fonte: O Estado de São Paulo