Por Talles Reis*
Entre bandeiras vermelhas e símbolos
da luta, a mística trouxe erguida a mesma bandeira de toda a sua vida: a
reforma agrária e a melhoria de vida do povo do campo.
Na
pequena sala se espremiam quarenta pessoas, a maioria parentes e amigos da
aniversariante; mesmo com as portas e janelas abertas, o calor era grande,
passava dos 30ºC lá fora com o sol do meio dia.
O
formato retangular da sala, estreita e cumprida, não favorecia a visão, dando
ainda mais trabalho para uns poucos fotógrafos ali presentes, todos em busca do
melhor ângulo. O bolo era alto, três andares em formato de pirâmide, bem
branquinho e com rosas amarelas delicadamente colocadas.
O
bolo estava sobre uma mesa redonda forrada com um cetim azul, na parede ao
fundo também cortinas azuis, ambas combinando com o vestido da aniversariante.
Tantos azuis ressaltavam ainda mais o clima de serenidade e tranquilidade que
pairavam no ar.
Atrás do bolo, quase invisível, sentada, estava a aniversariante, cabisbaixa e
pensativa num profundo silêncio. Lá estava Elizabeth Teixeira. Sempre ao
seu lado, ali já se colocavam seus filhos Carlos, Marta, Nevinha e Maria José.
Apenas quatro dos 11 que teve, dois ausentes e outros cinco falecidos de morte
morrida ou de morte matada, como se diz no sertão.
O primeiro parabéns soou tímido e descompassado, como um ensaio, mas não tinha
problema, pois durante aquela tarde seria cantado outras três vezes.
A temperatura na salinha aumentava, lenços, toalhas, folhas de papel, tudo
valia a pena para tentar se refrescar. Apesar do calor ninguém conseguia
arredar o pé dali, algo os atraía e os fascinava. E era aquela pequena mulher.
Nesta mesma casa, há mais de 50 anos, ela soube do assassinato de seu
companheiro, João Pedro Teixeira, importante líder das Ligas Camponesas de
Sapé, na Paraíba. Também ali foi procurada várias vezes pelo exército, ameaçada
de morte por jagunços e intimidada por coronéis. Sua vida nunca mais seria a
mesma.
Viúva, com onze filhos pequenos, não titubeou em escolher o caminho mais
difícil, porém o mais coerente com aquilo que acreditava, decidiu seguir lutando.
Assim sua família se espalhou pelo mundo. Caçada pelos militares, trocou de
nome e se escondeu no interior do Rio Grande do Norte. Encontrou-se com Fidel e
Che Guevara, recusou o convite de se mudar com toda a família para Cuba; a luta
no Brasil naquele momento era mais importante.
O
segundo parabéns ecoou mais forte e viçoso, não parava de chegar gente e nem a
temperatura de subir. Entre múrmuros e conversas, e após olhar por longos
segundos para os 'Parabéns 90 anos' escritos no bolo, ela começou seu discurso
de aniversariante, a casa toda foi aos poucos entrando em silêncio, até reinar
somente a sua voz. As palavras saíram baixas e econômicas, agradeceu a presença
de todos, lembrou a luta de João Pedro Teixeira, a luta pela reforma agrária e
se disse muito feliz. Bastava.
Na hora de comer o bolo as pessoas se dispersaram, em busca de ar, sombra ou um
copo d'água. Ela se sentou numa cadeira no lado de fora, tentava comer seu bolo
entre pedidos para tirar fotografias, cumprimentos, abraços e rápidas
conversas. Atendia a todos e todas atenciosamente.
Cabra marcado para morrer
Cabra marcado para morrer
No início de 1964, ela aceitou o convite para participar de um filme, ia
interpretar ela mesma numa ficção que contaria a história das Ligas Camponesas
e do assassinato de João Pedro Teixeira. Os massacres de lideranças camponesas
na Paraíba obrigaram a mudança de local das filmagens. Foram parar no Engenho
Galileia, no município de Vitória de Santo Antão, em Pernambuco.
O golpe militar de 1º de abril interrompeu as filmagens. A equipe e camponeses,
que eram os atores e atrizes do filme, foram perseguidos e muitos presos. A
proposta do filme foi abandonada... E, 20 anos depois, retomada na forma de
documentário. O que teria sido daquela mulher e sua família? Onde estavam? E os
camponeses do filme, o que faziam depois de tudo? Nascia assim o documentário
“Cabra marcado para morrer” de Eduardo Coutinho, simplesmente um clássico do
documentário nacional.
Antes
de ser brutalmente assassinado, o cineasta Eduardo Coutinho ainda conseguiu
finalizar dois outros filmes sobre ela e sua família, como um posfácio da saga
familiar. Os novos filmes, juntamente com “Cabra”, foram lançados ano passado
numa edição comemorativa pelo Instituto Moreira Salles (IMS). Assim, a
aniversariante e seus filhos são retratados em 1962/64, 1982 e 2013. Cinquenta
anos de dramas, tragédias, lutas, sonhos e esperanças.
A
mesma bandeira
Ônibus, vans escolares e muitos carros não paravam de chegar. Já estava para
começar o segundo momento da festa: um ato público, cultural e político de
comemoração do seu aniversário. Mais de quinhentas pessoas disputavam cadeiras
e sombra sob quatro tendas, estranhamente armadas bem distante do palco
principal. Tantas pessoas que nem parecia uma sexta-feira véspera de carnaval.
A aniversariante caminhou lentamente amparada pelos filhos e acompanhada por
uma multidão de pessoas atrás dela. A reverência de alguns se misturava à
emoção e alegria de outros, por poderem estar tão perto de sua pessoa.
Entre bandeiras vermelhas e símbolos da luta, a mística trouxe erguida a mesma
bandeira de toda a sua vida: a reforma agrária e a melhoria de vida do povo do
campo. A mesa com a sua família ficou o tempo toda cercada por uma multidão,
como a lhe proteger para que mais nada lhe acontecesse, um cordão de amor,
carinho e admiração.
No
palco as intervenções foram intercaladas por músicas e apresentações culturais.
Entre as falas, Anacleto Julião, filho de Francisco Julião, relembrou momentos
difíceis da luta; João Pedro Stedile, da coordenação nacional do MST, disse que
a presidenta Dilma Rousseff deveria se sentir envergonhada por ter recebido o
voto da aniversariante e de tantos apoiadores da reforma agrária e, mesmo
assim, colocar Kátia Abreu, inimiga histórica dos movimentos sociais, no
Ministério da Agricultura.
Um dos coordenadores do 'Memorial das Ligas Camponesas' aproveitou o momento
para cobrar do governo da Paraíba o cumprimento de acordos e compromissos já
assumidos que visam melhorias de acesso e da estrutura do local.
O discurso de um dos seus netos, incapaz de segurar as lágrimas ao relatar as
dificuldades familiares, emocionou a todos os presentes. Finalmente, o parabéns
maior tocado por uma banda, sob a batuta do maestro Geraldo Menucci, e
acompanhado por todos os presentes. Menucci ainda tocou o Hino das Ligas
Camponesas, que ele próprio musicou a letra composta por Julião.
Como festa boa é aquela que dura dois dias, no dia seguinte as comemorações
seguiram em Lagoa Seca, com a inauguração do Centro de Formação João Pedro
Teixeira, do MST.
Por mais que tudo tenha sido lindo e grandioso nesta tarde ensolarada
paraibana, ficamos com o sentimento de que ainda foi pouco, de que poderíamos
ter feito algo mais para homenagear aquela mulher marcada para viver, parabéns
Elizabeth Teixeira.
*Fonte:
Página do MST
Assista ao documentário “Cabra marcado
para morrer” de Eduardo Coutinho: