Dez anos após o assassinato de Dorothy Stang, os mandantes do
crime continuam em liberdade e o círculo vicioso de exploração, violência e
impunidade segue imperando na Amazônia
"Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque
serão fartos. Bem-aventurados os pacificadores, porque serão chamados filhos de
Deus". Estas foram as últimas palavras ditas por Dorothy Stang antes de
ser alvejada por seis tiros, em uma estrada deserta de terra batida no interior
do Pará. A missionária norte-americana tinha 73 anos de idade. Segundo seu
executor, Rayfran das Neves, quando percebeu a aproximação da moto que levava
seus assassinos, a freira abriu a Bíblia que carregava debaixo do braço e
começou a rezar. O livro, inseparável, foi seu único consolo naqueles
solitários segundos finais.
Neste 12 de fevereiro, o
assassinato de Dorothy Stang completa dez anos, sem que os mandantes pelo crime
tenham sido, de fato, presos. Depois de sucessivos julgamentos e do polêmico
cancelamento do veredicto que condenou Vitalmiro Bastos de Moura a 30 anos de
prisão, tanto ele como o outro mandante, Regivaldo Pereira Galvão, continuam
livres. O caso, ao invés de exceção, infelizmente é a regra e retrato fiel da
violência e impunidade que assolam comunidades rurais de todo o Brasil e
especialmente da Amazônia.
De acordo com dados da
Comissão Pastoral da Terra (CPT), de 2005 a 2014, 325 pessoas foram vítimas de
assassinatos motivados por conflitos agrários. Mais da metade destes casos
(67,3%) aconteceram na Amazônia Legal. O que mostra que, passados dez anos
da morte de Dorothy, o sangue continua a correr na floresta.
Não bastasse o horror da violência, as famílias que sobrevivem
às ameaças e os parentes das vítimas assassinadas ainda têm que conviver com
seus algozes às soltas. De 1985 a 2013, a justiça recebeu 768 inquéritos
de assassinatos no campo na região amazônica. Apenas 5% deste total chegou a
julgamento, segundo a CPT. Pior: somente 19 mandantes receberam algum tipo de
punição, sendo que a maioria responde às acusações em liberdade.
Este círculo vicioso de
mortes, impunidade e mais violência alimenta uma indústria que vem financiando
há anos o desmatamento da Amazônia. As populações tradicionais da região vêm
sendo exterminadas por motivos econômicos muito claros, seja para a posterior
ocupação com atividades ligadas ao agronegócio, para a grilagem de terra ou
para a exploração madeireira ilegal, considerada o principal vetor de violência
na Amazônia.
Foi o que aconteceu com
Dorothy Stang. A missionária atuou por mais de 30 anos no município de Anapu,
sudoeste do Pará, prestando apoio a pequenos produtores agroextrativistas. Na
época de seu assassinato, ela lutava pela implantação do Projeto de
Desenvolvimento Sustentável (PDS) Esperança, há cerca de 40 quilômetros da sede
do município. O local, no entanto, era disputado por fazendeiros e madeireiros
da região. De acordo com a investigação da Polícia Civil, Vitalmiro e Regivaldo
pagaram R$ 50 mil pela morte de Dorothy.
Irmã Dorothy vinha
denunciando a violência e as ameaças de morte há pelo menos um ano. Em 2004 a
religiosa esteve em Brasília, por mais de uma vez, onde ofereceu denúncias ao
Ministério da Justiça, à Secretaria Especial dos Direitos Humanos da
Presidência da República, e participou da CPI Mista da Terra, na Câmara
Federal. Nada disso adiantou para evitar seu assassinato.
“Infelizmente, o que
vemos acontecer ano após ano é que as pessoas entram na lista de ameaçados de
morte e só saem dela para entrar em outra lista, a de assassinados”, afirma
Danicley Saraiva, da campanha Amazônia do Greenpeace. “Isso tem que acabar”.
Caixões de madeira amazônica
O embate com grileiros e
madeireiros ilegais também foi o estopim para o assassinato de outras vítimas
simbólicas na luta pela floresta em pé: Zé Claudio Ribeiro e Maria do Espírito
Santo. O casal de líderes extrativistas era conhecido pela defesa do manejo
sustentável da mata e pela oposição a sua exploração irrestrita. Eles
denunciavam constantemente a atuação dos criminosos no Assentamento
Agroextrativista Praia Alta Piranheira, a 50 quilômetros de Nova Ipixuna, no
Pará. Foram mortos a tiros, em 2011.
“Nosso lote era lindo, a gente levava uma vida muito tranquila e
pacata. Mas a partir de 2005, com a intensificação da exploração de madeira
dentro do assentamento, o Zé começou a ser ameaçado e ficou ruim de viver. Até
que aconteceu o que aconteceu”, relata Claudelice Santos, irmã caçula de Zé
Claudio.
A exploração ilegal de
madeira também foi o personagem principal da trama que levou à morte do
sindicalista Josias de Castro
e sua esposa, Ereni Silva, em agosto do ano passado, em Guariba, no
Mato Grosso; e também ao assassinato de José Dutra da Costa, o Dezinho,
ocorrido em novembro de 2000, em Rondon do Pará.
A violência no campo tem
relação direta com desmatamento ilegal na Amazônia. Nos últimos dez anos, por
exemplo, o Pará foi o estado que mais desmatou o bioma. Neste período, foram
perdidos 39.666 quilômetros quadrados de florestas na região, segundo dados do
PRODES (Projeto de Monitoramento da Floresta Amazônica por Satélite), do
Governo Federal. No mesmo intervalo, foram registrados 116 assassinatos no
estado, o maior índice dentre todas as unidades da federação. Nos últimos dez
anos 639 pessoas entraram para a lista
de ameaçados de morte do Pará.
Em 2013, segundo a CPT, 8.836 famílias que viviam no Pará foram
afetadas pela violência no campo. Destas, 477 tiveram suas casas destruídas,
264 tiveram suas roças arruinadas e 2.904 foram vítimas de alguma ação de
pistolagem.
Entre 2007 e 2012, cerca
de 80% de toda a área com exploração madeireira no Pará, maior produtor e
exportador de madeira nativa serrada, não contou com nenhuma autorização, ou
seja, a madeira foi extraída ilegalmente. No entanto, segundo apurou o Greenpeace em recente investigação,
este produto de origem ilegal ganha facilmente papéis oficiais, por meio de um
esquema de “lavagem” dessa madeira, que então ganha o mercado nacional e
internacional, com a conivência do poder público.
Impunidade e abandono
A origem da violência no
campo na Amazônia pode ser combatida através de ações do governo que melhorem a
governança na região e incentivo ao uso sustentável da floresta. A devida
apuração e julgamento dos casos também deve ser uma prioridade absoluta para o
poder judiciário, pois a impunidade funciona na prática como uma espécie de
“salvo-conduto” para aqueles que alimentam a violência na região.
Para isso, o governo
federal deve promover o aumento da capacidade de ação dos órgãos ambientais
estaduais e federais, com mais recursos para ações de monitoramento e
fiscalização, a fim de permitir que o crime seja combatido. Os planos de manejo
aprovados na Amazônia desde 2006, por sua vez, devem ser revistos, assim como
os sistemas de controle de madeira, com processos públicos, transparentes e
integrados.
"Precisamos nos
perguntar até quando a sociedade e o Estado brasileiro vão tolerar o extermínio
daqueles que lutam pelo simples exercício de seus direitos e garantias
constitucionais, e que enfrentam as forças responsáveis pela destruição da
Amazônia e pelo desrespeito ao Estado de Direito na região", alerta
Danicley Saraiva.
Fonte:
Greenpeace