Andréia Sadi e Felipe Coutinho*
Oficiais da Marinha foram flagrados em vídeo agredindo uma
líder quilombola que havia alertado meses antes a presidente Dilma Rousseff
sobre o clima de tensão entre os militares e os moradores da comunidade, na
Bahia.
A Folha
teve acesso às imagens, usadas no inquérito para investigar se houve abuso
dos militares durante o episódio, ocorrido em 6 de janeiro. O vídeo mostra os
irmãos Rosimeire e Edinei dos Santos dentro de um carro, quando chegam na área
da Marinha que dá acesso à comunidade quilombola, na região de Rio dos Macacos,
próxima a Salvador.
Eles ficam oito segundos parados,
quando o oficial já chega com o dedo em riste e começa então uma discussão. O
celular de Rosimeire é arremessado para longe. O militar está, desde o início,
visivelmente agressivo – o que denota que a briga era iminente e a tensão já
vinha de outros episódios.
Na discussão, a líder quilombola
Rosimeire dos Santos desce do carro para apartar o militar que discutia com seu
irmão, quando então é afastada e jogada ao chão. Num determinado momento do bate-boca,
o militar saca uma arma. Depois, ela é jogada ao chão mais uma vez. Dois
oficiais tentam amarrar as mãos de Rosimeire. Ela acaba sendo empurrada em
direção ao carro.
As duas filhas de Rosimeire, de 17 e
seis anos de idade, presenciaram a cena. Pelo menos seis militares estavam no
local. Os quatro que abordaram os irmãos foram afastados de suas funções.
O episódio todo durou cerca de dez
minutos. A briga aconteceu duas horas depois de uma primeira discussão, quando
os irmãos saíam da comunidade. Os militares viram como uma provocação a demora
que os irmãos levaram para sair do portão. "Eles disseram 'você vai, mas
quando voltar te dou o troco'", afirmou Rosimeire à Folha.
À época da briga, a Marinha chegou a
divulgar que os militares deram voz de prisão em razão de "ameaças
proferidas por Edinei e do comportamento violento de Rosimeire". A Marinha
havia dito ainda que Rosimeire tentou tomar a arma do militar. Os irmãos
negaram. Numa segunda nota, a Marinha disse dias depois que repudiava atos de
violência.
Tensão
A briga é fruto do clima de tensão
entre militares e quilombolas. Para entrar e sair da comunidade, é preciso
passar pela área da Marinha. Dias antes, um portão interno havia sido aberto
pelos quilombolas.
Essa situação não é novidade para o governo.
Três meses antes, a mesma Rosimeire entregou uma carta pessoalmente à
presidente Dilma Rousseff, relatando os problemas. "A todo momento avisei
a Dilma [sobre a tensão]", disse Rosimeire à Folha.
À época, a Seppir (Secretaria de
Políticas de Promoção da Igualdade Racial) chegou a divulgar nota na qual disse
que "a presidente se compromete em atender as reivindicações" dos
moradores da região.
Inquérito
A Marinha abriu inquérito para
investigar o caso. O chefe de gabinete do ministro Celso Amorim (Defesa),
Antônio Lessa, é um dos interlocutores do governo para discutir com moradores e
militares uma solução. "O Ministério da Defesa e a Marinha lamentam
profundamente o que aconteceu e não referendam nenhum ato de violência. Foi um
evento tópico que aconteceu por uma tensão latente entre a comunidade da vila
naval e a quilombola", disse Lessa à reportagem.
Lessa diz que as reclamações são
mútuas. "Mesmo as famílias residentes têm que parar no portão, sair do
carro e se identificar. Isso não se coaduna com a liberdade de ir e vir que os
civis têm para ir para casa. Os militares reclamam da não atenção desses
procedimentos. É uma incompatibilidade, é o civil que vive dentro de uma
organização militar. De um lado, militares reclamam dessa falta de compromisso
e o civil vê isso como uma restrição da liberdade de ir e vir. E aí vão
crescendo as tensões", explicou.
As imagens do ocorrido estão sendo
analisadas também pelo Ministério Público Militar, na Bahia. São quase duzentas
horas de vídeo, em 14 câmeras. "[As imagens] mostram, em momentos
diversos, um veículo obstruindo a entrada da Base e, horas depois, a agressão
sofrida pela líder comunitária e por seu irmão", diz a nota da
procuradoria.
A procuradoria afirma ainda que os
militares também relataram problemas em relação aos quilombolas. "A
procuradoria também foi procurada por moradores da Vila Militar, que relataram
ameaças e provocações da comunidade, inclusive com vários episódios de
fechamento do acesso à Vila, até em horário escolar".
Em comum, procuradoria, quilombolas e
governo federal dizem que uma das soluções para resolver a tensão é a
construção de uma nova estrada, para que os moradores não precisem atravessar a
área da Marinha.
Há ainda um conjunto de reformas e
reparos em casas na comunidade quilombola com risco de desabamento. O
Ministério da Defesa já reservou R$ 500 mil para o projeto. A nova estrada e
essas reformas devem ser realizadas ainda neste semestre
Fonte: Folha