Os dois mandantes que
participaram diretamente do caso, o “Bida” e o “Taradão”, estão soltos
por Felipe
Milanez*
A missionária Dorothy Stang
foi assassinada em 12 de fevereiro de 2005, no interior de Anapu, cidade na
beira da Transamazônica, no Pará. Desde então, parte da quadrilha que organizou
o crime passou pela cadeia. Em um levantamento
feito pela EBC (sim, é preciso fazer um levantamento para descobrir se
alguém está preso), foi constatado que ninguém, efetivamente, está na cadeia
pelo crime — apenas o pistoleiro que reincidiu em mais homicídios.
Os dois mandantes que
participaram diretamente do caso, Vitalmiro Bastos de Moura, o “Bida”, e
Regivaldo Pereira Galvão, o “Taradão”, estão soltos. Outros poderosos
fazendeiros e madeireiros da região que também tiveram participação na
organização e financiamento, conseguiram escapar já na fase dos inquéritos.
Comenta-se pelo menos o nome de um grande madeireiro, que foi vice-prefeito em
Anapu e candidato a prefeito em Altamira, que também teria participação no
crime — Bida fugiu utilizando a pista de pouso de sua propriedade, num jogo
aparentemente de cartas marcadas. Taradão foi condenado a 30 anos,
mas não cumpriu a pena. Esses outros que permanecem anônimos na justiça
integram o chamado “consórcio”, que ficou protegido pela impunidade em razão da
“falta de provas”.
O levantamento
da EBC detalha o paradeiro dos criminosos:
Clodoaldo Batista, um dos
autores do assassinato condenado a 18 anos de prisão, cumpre pena em regime
semiaberto em um centro de recuperação em Belém. Rayfran das Neves Sales, autor
dos disparos, foi condenado a 27 anos de prisão, cumpriu quase nove anos na
cadeia e teve direito à progressão de regime, com prisão domiciliar. Em outubro
de 2014, entretanto, ele foi detido novamente acusado de envolvimento em outro
assassinato. Amair Feijoli Cunha, indicado como intermediário e condenado a 17
anos, cumpre prisão domiciliar em Tailândia, no sudeste do Pará.
Por que o sangue jorra na
Amazônia?
Quando Laísa Santos Sampaio,
irmã de Maria do Espírito Santo da Silva e cunhada de José Cláudio Ribeiro da
Silva, foi receber o prêmio
póstumo em homenagem a eles da ONU de “Heróis da Floresta”, ela disse:
“Na Amazônia tem se intensificado casos de assassinatos de pessoas que como
eles defendem a vida na floresta. A Amazônia é manchada de sangue. E essa
mancha continua se espalhando.”
Na última década, de 2005
até 2014, segundo levantamento da Comissão Pastoral da Terra, foram
assassinadas 325 pessoas em razão de conflitos no campo, sendo que mais da
metade desses crimes aconteceram na Amazônia (67,3% dos casos). OGreenpeace
chama de um “círculo
vicioso de mortes, impunidade e mais violência alimenta uma indústria que vem
financiando há anos o desmatamento da Amazônia.”
Os crimes seguem um padrão
muito semelhante. São mortes por encomenda, serviço de pistolagem, por
“empresas de segurança”, e as impunidades são sempre garantidas como parte de
um sistema que, invertendo a lógica de Max Weber de que o Estado seria o
detentor do monopólio do uso legítimo da força, na Amazônia, segundo interpreta
a socióloga Violenta Loureiro, esse monopólio é compartilhado com o setor
privado. O uso da força cabe tanto ao Estado quanto a classe dominante. Matar,
na Amazônia, faz parte do jogo político-econômico.
Essa violência pode estar,
ou não, associada ao desmatamento — ao contrário do que se popularizou dizer.
Isso porque as áreas onde ocorre o desmatamento são também áreas violentas, com
uso intensivo do trabalho escravo, assassinato dos trabalhadores e disputa,
como numa “fronteira” de expansão, pela terra. Acontece que essa tese que
associa desmatamento a assassinados não explica porque, nos últimos anos, diminuiu
o desmatamento e continuou alto e constante o assassinato de trabalhadorxs no
campo?
Do sul do Pará à Terra do
Meio
Antes de ir para Anapu lutar
ao lado dos pequenos agricultores sem-terra que chegavam por lá atrás de um
pedaço de chão e de floresta, a missionária Dorothy Stang havia trabalhado, por
muitos anos durante a violentíssima década de 1975 a 1985, em Jacundá, no
sudeste do Pará. Ela sabia muito bem como essas áreas de disputa na Amazônia
são violentas. Sabia como se organizava os sindicatos do crime, os consórcios
das mortes dos latifundiários. E sabia que os pobres precisavam de um
território para viver — que a migração como “peão do trecho” ou garimpeiro é
uma terrível forma de exploração.
A região de Anapu, ao
contrário de outros trechos da Transamazônica, não foi dividida entre pequenos
proprietários, mas sim entre grandes latifúndios. Esses latifundiários não só
grilaram terras como se beneficiaram de diversos esquemas de corrupção e de investimento
públicos que se destinava a “desenvolver” a Amazônia. Foi ali que a “Máfia da
Sudam” desviou milhões e milhões.
Por outro lado, chegavam sem
parar pobres vindos do Maranhão, expulsos de outras áreas de conflitos nos sul
do Pará, garimpeiros que não bamburraram. Por que não organizar esse pessoal
para viver da floresta, ao contrário de deixar as terras publicas e a floresta
serem consumidas pelos mesmos mafiosos que roubaram milhões do Estado e matam
tanta gente? Explicando de forma bem simples, a lógica dos Projetos de
Desenvolvimento Sustentável que foram implantados em Anapu tinha tudo para dar
certo. Não fosse a funesta aliança entre setores corruptos do Estado e um
sindicato do crime que explora os recursos naturais locais para acumular mais e
mais dinheiro.
Assentados do PDS Esperança denunciam extração ilegal de madeira em 2011. Foto: Felipe Milanez |
O Projeto de Desenvolvimento
Sustentável (PDS) Esperança foi talvez o estopim que provocou o consorcio a
tramar a morte da missionária. Do outro lado da Transamazônica, um outro PDS
Viola Jatobá, vive as mesmas dificuldades. Foi preciso colocar uma guarita, a
pedido dos assentados, para evitar a saída indiscriminada de madeira. É difícil
imaginar que a guarita vai dar conta de segurar toda a riqueza que está sendo
saqueada. Uma investigação do Greenpeace mostrou como ocorre a lavagem da madeira
ilegal que sai do Viola Jatobá, feita pela empresa Vitória Régia, de um dos
cabeças do assassinato de Dorothy que escapou do inquérito e protegido pela
impunidade. O relatório pode ser baixado aqui.
Chama a atenção que essa
mesma máfia que organiza a extração ilegal de madeiras e grilagem de terras,
responsável pela morte da missionária Dorothy Stang, também atua distribuindo
crédito ilegal para legalização da produção de carvão, que é consumido pelas
siderúrgicas do polo de Marabá. Você pode conferir essa outra profunda
investigação do Greenpeace clicando
aqui.
A produção ilegal de carvão
é um dos maiores vetores de desmatamento, de trabalho escravo e de violências.
O casal José Cláudio e Maria lutavam contra a produção ilegal de carvão dentro
do assentamento agroextrativista onde viviam, em Nova Ipixuna. E por isso eram
ameaçados de morte. É constrangedor pensar que a mesma máfia que matou Dorothy
também tenha envolvimento, ao menos no aspecto econômico, com a morte de Ze
Cláudio e Maria.
A economia e a política da
morte e do saque
É a economia, e a
organização política, o que tem provocado tantas mortes na Amazônia. A economia
predatória, baseada seja na extração dos recursos naturais para a exportação –
o chamado neo-extrativismo. Ou a economia da grilagem de terras, da renda
fundiária. Esses dois sistemas se articulam na Amazônia, e essa articulação é
feita por uma elite extremamente violenta, escravagista, que são os
latifundiários, a Confederação Nacional da Agricultura (CNA) que ocupa, hoje, o
espaço da violenta União Democrática Ruralista (UDR).
É por isso que mesmo que o
desmatamento tenha diminuído, muita gente continua sendo morta. A luta pela
terra e pelos recursos dos territórios continua mesmo depois de criados os
assentamentos, por exemplo, com a exploração da madeira, ou a expansão da mineração
sobre terra de camponeses – no caso do sul do Pará, pela Vale.
E depois das mortes físicas,
é preciso também operar as mortes simbólicas para esse sistema funcionar.
Dorothy Stang, a senhora de 73 anos assassinada com seis tiros, passou a ser
difamada localmente como uma guerrilheira e traficante de armas. O que pode
parecer — e é — bizarro, faz algum sentido no imaginário local pois evoca-se a
memória da Guerrilha do Araguaia, fortemente presente. E como os assassinos do
Araguaia continuam impunes e os corpos dos guerrilheiros seguem desaparecidos,
faz um certo sentido evocar essa história de terror presente no imaginário
local.
Com um Congresso reacionário
que representa os interesses desses grupos violentos do campo, e como governo
federal aliado a esses grupos e acelerando ainda mais o avanço de mega-projetos
que provocam mais disputas por territórios, tudo indica que, infelizmente, os
próximos anos devem ser ainda mais duros e violentos. A morte de Dorothy Stang
não é um evento do passado, mas uma premonição de um futuro desigual, triste e
violento caso essa trajetória não seja mudada.