Na foto no altar da paróquia de Anapu, Dorothy aparece ao lado de um agricultor crucificado |
A
vida de Dorothy Stang foi marcada por uma intensa luta pelo direito à terra dos
numerosos camponeses que migraram para o Norte do país em busca de sustento.
Para desestimular as ações a favor da reforma agrária protagonizadas por
Dorothy Stang, a Câmara dos Vereadores de Anapu aprovou uma moção
de persona non grata à missionária em 2002. Ela confrontou os
poderosos da região.
O
primeiro destino da missionária nascida nos Estados Unidos, mas naturalizada
brasileira, foi o município de Coroatá, no Maranhão, onde chegou em 1966, aos
35 anos.
Freira
da Congregação Notre Dame de Namur, irmã Dorothy percebeu cedo o movimento de
exploração que começava a tomar conta da Floresta Amazônica. Incentivados pelo
governo, muitos fazendeiros derrubavam a mata e faziam testes para saber o que
poderia ser produzido ali. Como consequência, pequenos agricultores vindos do
Nordeste, em especial do Maranhão, começaram a ser expulsos e a migrar para regiões
do interior do Pará.
De
acordo com a missionária Rebeca Spires, os camponeses nordestinos souberam da
existência de lotes à disposição de colonos às margens da Rodovia
Transamazônica, que estava sendo construída. “Aí ela [Dorothy] disse: ‘Olha, o
nosso povo está migrando para o Pará. Vamos também. A gente não pode
deixar o povo ir embora e ficar aqui’. Foi por esse motivo que viemos”,
relembra a freira, amiga de Dorothy.
Ainda
na década de 1970, sob o lema “Integrar para não Entregar”, o governo
brasileiro começou a vender lotes de terras no Pará, denominados Contratos de
Alienação de Terras Públicas (CATP). “Nós que estamos aqui fomos colocados há
35 anos e educados para quê? Nós tínhamos que desmatar para que outro país não
viesse tomar a nossa Amazônia Legal. Era para plantar arroz e capim. Era para
desmatar mesmo, ou seja, desbravar”, lembra Francisco de Jesus Portela,
cacaueiro em Anapu.
Esses
documentos eram concedidos a pessoas que, na maioria dos casos, não chegaram a
visitar ou conhecer os lotes. Os contratos previam ainda que, caso os donos não
fizessem benfeitoria no prazo de cinco anos após a compra, as terras seriam
devolvidas à União. Mas esses lotes foram revendidos a outras pessoas que, anos
depois, alegaram desconhecer essa cláusula e reivindicavam a posse dos lotes.
Nessa época, começaram a surgir também os contratos forjados, praticados por
grileiros.
Nesse
complicado cenário fundiário – em que a União, os fazendeiros e pequenos
proprietários disputavam espaço –, a missionária Dorothy Stang surge como uma
voz a favor dos camponeses pobres.
Dom
Erwin Krautler, bispo do Xingu, conta que, com a chegada dos grandes
fazendeiros que se diziam donos dos terrenos, o conflito se tornou ainda mais
visível. Para ele, os órgãos do governo foram “negligentes e omissos”. “Na área
do atual município de Anapu a migração era desordenada e, em consequência, a
situação das famílias, desde o começo, muito precária. Esse foi o ambiente em
que irmã Dorothy entrou em cena e a fez tomar a decisão de apoiar os pobres na
sua luta pela realização do sonho de ganhar o tão sonhado pedaço de chão”.
Com
sua chegada a Anapu, em 1982, a missionária começou a reivindicar os direitos
de pequenos agricultores e estimulou a organização, como lembra a missionária
Rebeca Spires. “A primeira coisa que a Dorothy me disse foi: ‘Você tem que
aprender a Bíblia em português, mas tem que aprender o Estatuto da Terra,
porque nós trabalhamos com lavradores e eles têm que saber como defender seus
direitos. Os direitos que a lei reconhece, a gente tem que conhecer e ensinar o
povo para eles saberem como batalhar por si. A gente não vai ficar a vida inteira
batalhando por eles, eles que têm que fazer’”, recorda.
A
missionária conta que o protagonismo de Dorothy era visível em sua forma de
liderar e ensinar. Ela estabeleceu dezenas de escolas por onde passava na base
do “Você sabe ler? Então você pega essas crianças e ensina”. “Sempre que a
Dorothy vinha aqui na cidade [Belém], ela trazia alguns lavradores juntos para
mostrar, aqui tem o Ibama [Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos
Naturais Renováveis], aqui tem o Incra [Instituto Nacional de Colonização e
Reforma Agrária], você busca aqui. Para que amanhã ou depois eles fizessem, não
ela”, destaca Rebeca. Foi dessa maneira que Dorothy Stang passou a auxiliar os
pequenos produtores rurais que chegavam à região, sem orientação, à procura de
um terreno para produzir.
Dom
Erwin, que à época era o responsável por designar os locais onde os
missionários deveriam atuar, lembra da chegada de Dorothy ao município.
“Lembro-me perfeitamente da visita daquela senhora de vozinha mansa e sotaque
estadunidense bastante acentuado. Vinha falar com o bispo para ver se ela e sua
congregação podiam trabalhar na Prelazia do Xingu. Com a migração contínua à
Transamazônica e a outras regiões da Prelazia, qualquer congregação de
religiosas era bem-vinda e, logicamente, aceitei a proposta sem logo pensar
numa determinada área de atuação”, recorda o bispo.
Ele
lembra também que a freira alimentava o sonho de trabalhar entre os camponeses
mais carentes da região. “Ela logo me avisou que queria trabalhar entre os
pobres mais pobres. Brinquei e disse que como cidadã norte-americana, oriunda
do aprazível estado de Ohio, certamente ela não conhecia a pobreza extrema.
Falei logo da Transamazônica-Leste, região infestada de doenças tropicais onde
vive gente que não tem onde cair morta. Ela nem me deixou terminar de falar e
respondeu: ‘Então eu quero ir’. Tentei ponderar: ‘Mas a senhora não vai
aguentar’. E ela: ‘Deixe-me pelo menos fazer uma experiência’. Pensei que
depois de poucas semanas viria pedir-me outra área ou então estaria já curtindo
a primeira malária. Enganei-me redondamente”, relata dom Erwin.
Para
muitos moradores da cidade, entretanto, a presença de Dorothy era um empecilho
ao desenvolvimento econômico da cidade. “Alguém ia perder a terra porque não
tinha documento. Foi o que culminou com a morte da irmã Dorothy”, explica Paulo
Anacleto, taxista e vereador na época em que a tensão por terra começou a
aumentar. No início dos anos 2000, várias manifestações contrárias à criação do
Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS) – incentivado por Dorothy Stang –
foram promovidas na cidade.
José
Carlos Pereira, que foi presidente da associação dos comerciantes de Anapu, diz
que o entendimento à época era o de que possíveis prejuízos para os madeireiros
e fazendeiros também se refletiriam nos resultados do comércio. “O objetivo das
manifestações era resgatar o nosso município, que estava prestes a ser tomado
por alguém que você não sabia nem quem era”, revela.
“Foram
feitos vários movimentos porque naquela época ficava todo mundo desesperado com
o que podia acontecer. Madeireiro não vai serrar árvore, fazendeiro não pode
ter terra. Tinha gente que tinha fazenda com dois mil bois, que foi
desapropriado”, lembra.
Para
desestimular as ações a favor da reforma agrária protagonizadas por Dorothy
Stang, a Câmara dos Vereadores de Anapu aprovou uma moção de persona non
grata à missionária em 2002. “Ninguém tinha nada contra ela. A gente via o
risco que ela corria e tinha uma preocupação de acontecer algo, então a gente
fez aquela moção para que ela fosse embora daqui com vida. Era a nossa
intenção, que ela deixasse os madeireiros, na época, e os fazendeiros, que eram
ameaçados, viver em paz. A gente achava que com a saída dela, tanto o setor
madeireiro quanto o setor pecuarista, ia ter sossego”, justifica o antigo
presidente da associação de comerciantes.
Dez
anos depois, José Carlos Pereira admite que a sua opinião é diferente. “Se hoje
eu tivesse de fazer o que eu fiz [manifestações], eu parava duas vezes para
pensar. Até porque muita coisa mudou com a implantação do PDS”, reconhece. “A
gente está vendo grandes exemplos lá em São Paulo, lá em Minas, faltando água
até para beber. E se isso [a implantação do PDS] não tivesse acontecido para
dar um freio aqui, daqui 20, 30 anos, nós estaríamos passando pela mesma
situação. Então, hoje, eu dou a mão à palmatória. Pelo menos em parte, ela
tinha razão”, diz.
Fonte: Agência Brasil via Comissão Pastoral da Terra