Artigo avalia que, de forma
associada, mercado e Estado passaram a praticar uma espécie de 'bullying'
contra a Reforma Agrária, através do esvaziamento das políticas públicas para
as famílias camponesas.
Da Comissão Pastoral da Terra
(Regional Nordeste II)*
O declínio dos dados
referentes à Reforma Agrária em 2012 são assustadores. No ano que se encerrou,
o Brasil assistiu a Reforma Agrária atingir um de seus piores indicadores em
décadas. Em um país onde existem cerca de 200 mil trabalhadores e trabalhadoras
em luta pela terra, o Governo Brasileiro desapropriou apenas 31 novas áreas,
totalizando somente 72 mil hectares, segundo informações do próprio Incra.
Neste mesmo ano, somente 23 mil famílias foram assentadas em 117 assentamentos
criados a partir de processos muitos antigos. Índices tão baixos só foram
atingidos na década de 90, com o Governo de Fernando Collor. O Brasil permanece
com o posto de país que mais concentra terras no mundo.
Vale ressaltar que 120
milhões de hectares de terras em grandes propriedades improdutivas foram
detectados quando da elaboração do segundo Plano Nacional de Reforma Agrária,
em 2003. De lá até aqui, nenhuma medida concreta alterou a concentração de
terras no país.
Já que o Governo não
desapropria as terras dos latifúndios que não cumprem a função social, como
manda a Constituição, deveria, ao menos, destinar as terras Públicas devolutas
para fins de Reforma Agrária. O problema é que grande parte destas terras está
sob domínio do agronegócio. São mais de 309 milhões de hectares de terras que o
Censo agropecuário de 2006 classificou como "outras ocupações".
De acordo com as análises
do professor e pesquisador Ariovaldo Umbelino, o dado corresponde como sendo
terras públicas devolutas, que o Censo não incluiu na classificação. Soma-se a
isto, milhares de hectares de Terras da União, que desde o século XIX,
encontram-se nas mãos dos usineiros na região Nordeste, por exemplo, sem
pagamento de impostos nem de taxas de aforamento. Onde existe ocupação de
Terras da União por povos tradicionais e posseiros, há a ameaça do agronegócio
e da mineração, como na região Norte.
Os números envergonham e
comprovam: O Estado brasileiro não foi constituído para realizar uma ampla e
radical modificação da estrutura da propriedade da terra e os diversos Governos
que passaram pelo Palácio do Planalto nada ou pouco fizeram para tencionar em
favor da democratização das terras no país.
Questão
de Estado
Os números vergonhosos para
o país resultam da escolha, histórica e injustificável, dos Governos pela implementação
do agronegócio como modelo ideal de desenvolvimento para campo. O Capital
financeiro-industrial-agrário torna-se cada vez mais fortalecido, se alicerça
no apoio e proteção do Poder Judiciário, no Parlamento e nos diversos setores
do Governo Federal.
Cada vez mais a terra se
consolida como simples ativo econômico a serviço do mercado em suas diversas
formas de especulação e expansão. Ao optar pelo modelo clássico-concentrador de
produção agropecuária, inclusive através de financiamentos públicos e
incentivos fiscais, o Brasil parece continuar a repetir os mesmos erros do
tempo das capitanias hereditárias, mas com o cinismo dos paradigmas de mercado.
Enquanto isso, os
investimentos para a agricultura camponesa e especialmente para a Reforma
Agrária continuam reprimidos pela falta de recursos e normas excessivamente
protecionistas do latifúndio. De forma associada, mercado e Estado passaram a
praticar uma espécie de 'bullying' contra a Reforma Agrária, através do
esvaziamento das políticas públicas para as famílias camponesas, de forma a
impor o Agronegócio como modelo "único" e "consolidado".
Neste cenário desfavorável, o grande Capital acaba por distanciar os movimentos
sociais de luta pela terra da realização do seu projeto camponês.
O outro reflexo, não menos
perverso, ocorre pela corrida desenfreada do Capital por novos ativos
econômicos com maior potencial de expansão. Nesse caso, outro grande revés
sofrido pela coletividade ocorre através dos danos ambientais. A destruição da
floresta Amazônica e do Cerrado voltou a acelerar em 2012, acompanhando a
dinâmica de hegemonia e ocupação do território pelo agronegócio. Nestes casos,
alguns elementos são obstáculos a serem eliminados para a maior expansão do
agronegócio: as florestas, os projetos de assentamento da Reforma Agrária e as
populações tradicionais, não por coincidência, cada vez mais negligenciadas e
criminalizadas pelo Estado brasileiro.
A ousadia ilimitada do
capital se materializa nas medidas de Governo. A nova frente de ação em curso
no Congresso e no Governo Federal é a flexibilização da compra de terra por o
capital estrangeiro, que encontra-se ávido por participar dessa cruzada anticivilizatória
em curso nos campos brasileiros. Em projeto já aprovado na Câmara dos Deputados
no segundo semestre do ano passado, qualquer empresa ou pessoa física de
qualquer país do mundo poderá adquirir terras no Brasil. Para tanto, precisará
apenas constituir ou adquirir empresas no país. O relator do projeto na Câmara,
o Ministro da Agricultura, garante que a proposta será acolhida pelo Governo.
Não restará ao país sequer as diferenças legais que o distingua da antiga
condição de colônia.
Transformação
estrutural
Esta "pujança" do
agronegócio ainda é cotidianamente exaltada pela grande mídia. Não é por acaso
também que quase não há visibilidade para a violência cometida todos os dias
pelos empreendimentos do agronegócio. De acordo com os dados parciais da
Comissão Pastoral da Terra (CPT), de janeiro à outubro de 2012, o ano foi
marcado pelo aumento da violência do poder privado contra as famílias
camponesas em processos de luta e resistência. Pouco ou quase nada desta
violência foi estampada nos Jornais e na TV. Neste período, foram registrados o
assassinato de 21 camponeses e a tentativa de assassinato de 96 pessoas no
campo.
A ação de pistolagem
cresceu em todo País. Na região Nordeste teve um acréscimo de 133%, a Centro
Oeste de 73%. Já na região Sudeste, o número de famílias vítimas de pistolagem
passou de 371 famílias para 1.198, correspondendo a um aumento de 323%,
comparado com o mesmo período do ano anterior. O aumento destas ações de
violência privada ocorre pela omissão e conivência do Estado, como também pela
perversidade e ânsia do capital em explorar novas terras.
Como não há força nem
vontade em alterar o modelo de produção no campo nem a estrutura fundiária, os
programas que fazem parte da chamada Reforma Agrária apresentam-se de forma
tímida e muito burocratizada: não provocam e não exigem o avanço de um
verdadeiro projeto de Reforma Agrária que garanta a permanência das famílias na
terra. Também inviabilizam o aumento da oferta de alimentos baratos e sadios,
além de não eliminarem a pobreza no campo. O que se vê é o caminho inverso.
A ausência do Estado para a
consolidação de uma agricultura camponesa nas áreas já desapropriadas acaba por
"transferir" as terras para a intervenção livre e aberta das grandes
empresas de monocultivos. São muitos os agricultores e agricultoras assentados
que se vêm pressionados e submetidos às investidas do agronegócio.
A luta pela Reforma Agrária
no Brasil só pode assumir a face de uma luta anticapitalista. Portanto, não há
possibilidade da realização da Reforma Agrária em nosso país sem uma mudança na
estrutura do Estado e das relações de poder, sem uma profunda alteração entre o
sistema político e econômico, hoje um só.
A realização da Reforma
Agrária só se dará via processo de ruptura do modelo em curso, com a atuação
corajosa de governos populares e com um intenso processo de lutas, organização
e mobilização popular, o que não tem sido visto nos últimos anos. É necessário
construir uma correlação de forças e uma conjuntura mais favorável para que o
campesinato possa seguir semeando alimentos e sonhos para toda a sociedade.
*Fonte:
Caros Amigos