Gerson
Teixeira*
“Terras da União sob o controle dos
assentados poderão vir a ser transferidas para as grandes propriedades”.
Na década de 1990, as organizações dos
trabalhadores do campo combateram, com êxito, a implantação, no Brasil, das
estratégias do Banco Mundial para as áreas rurais da América Latina, centradas
na chamada reforma agrária de mercado. No auge do neoliberalismo, pretendia-se
delegar ao mercado o poder regulatório sobre a questão agrária brasileira.
Restou que os instrumentos de compra e
venda de terra ficaram nas franjas institucionais. Tanto que, de 1995 a 2002, a
desapropriação de grandes propriedades alcançou 10,3 milhões de hectares contra
4,3 milhões nos oito anos seguintes.
Assim, em termos de “obtenção de terras
privadas para a política de assentamentos” (grifei), “bons tempos” os anos de
1990! Afinal, por força das lutas sociais, as desapropriações, com as
insuficiências e anomalias conhecidas, foram preservadas, e as restritas
operações de compra e venda de terras continham uma réstia redistributiva, pois
transferiam para os camponeses frações de grandes propriedades.
Hoje, percebemos sinais em sentido
oposto. Terras da União sob o controle dos assentados poderão vir a ser
transferidas para as grandes propriedades. É o desfecho esperado da proposta de
emancipação dos assentamentos abandonados pelos poderes públicos.
Sugerida pela entidade máxima do
agronegócio, a Confederação Nacional da Agricultura (CNA), a emancipação
traduziria a sensibilidade social da sua presidente pela “libertação dos
assentados”. O alvo real: a expectativa de apropriação, pelo agronegócio, de
milhões de hectares dos assentados, a exemplo do que ambicionam com as suas
lutas pela subtração dos territórios indígenas, quilombolas e das áreas
protegidas em geral.
Entre as medidas do “pacote da CNA”,
supostamente acolhido pelo governo, constariam também a regularização “de
ofício” dos imóveis localizados às margens das rodovias federais na Amazônia, o
que equivaleria ao “carnaval do grilo”. E, ainda, a facilitação da ratificação
dos títulos das propriedades nas faixas de fronteiras indevidamente emitidos
pelos Estados.
Nos últimos dois anos, foram
desapropriados apenas 130 mil hectares; desempenho tão pífio que, desde 1985,
só rivaliza com o período Collor. Comenta-se que tal desempenho resultou da
imposição, pela Casa Civil, do limite de R$ 100 mil por família nos projetos de
assentamentos. O equívoco do limite deve-se à sua forma irrefletida. Até as
cercas dos latifúndios sabem que a desapropriação gera enormes ganhos indevidos
aos seus donos, graças à persistência de legislações lenientes e
jurisprudências duvidosas.
Exemplo: enquanto a taxa Selic, na
atualidade, é de 7,25% aa e a inflação, menor ainda, os juros compensatórios,
indevidamente aplicados sobre os valores da desapropriação contestados em
juízo, são de 12% aa. Então, em vez de se extinguir anomalias da espécie,
opta-se por um corte arbitrário que inviabiliza de vez a desapropriação.
Mas, esse é apenas um detalhe de uma
mudança essencial. Efetivadas as medidas anunciadas, a política agrária terá
“evoluído” do seu tradicional perfil restrito de contenção de conflitos sociais
em proteção ao latifúndio/agronegócio para um estágio de funcionalidade direta
às necessidades da própria expansão do agronegócio. Transição equivalente
ocorre com a política ambiental.
Em suma, a sedução e a rendição
política aos quase US$ 100 bilhões gerados pelas exportações do agronegócio
poderão levar o Brasil a cenários sombrios de um “abismo agrário-ambiental”. A
presidente Dilma Rousseff, que vem enfrentando com coragem interesses
econômicos poderosos em defesa do povo brasileiro, haverá de rever esses rumos
desastrosos das políticas agrária e ambiental.
*Presidente
da ABRA (Associação Brasileira de Reforma Agrária). Publicado originalmente na Folha de São Paulo, 17/01/2013. (fotografia não incluída na publicação original).