Para lideranças, a saída contra o despejo iminente é a assinatura
pela presidente Dilma Rousseff do decreto de desapropriação da área por
interesse social.
Por Gabriela Moncau*
Eram 4h da manhã do dia 15 de janeiro quando o cadeado do prédio do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) em São Paulo foi arrombado por uma marreta. Sem fazer muito barulho, as cerca de 120 pessoas entraram e estenderam as faixas do lado de fora que já avisavam que agora, o prédio estava ocupado. “Poder popular”, “Contra o despejo do Assentamento Milton Santos”. Seis horas mais tarde um oficial de justiça entregava a ordem de despejo aos que permaneceram no assentamento. O prazo de 15 dias começa a correr.
São no total 75 famílias (68 assentadas mais agregados) que vivem já há sete anos no Assentamento Milton Santos, localizado em Americana e Cosmópolis, interior de São Paulo. Em 1976 a área de 103 hectares foi confiscada de seus antigos proprietários, a família Abdalla, por conta do acúmulo de dívidas em impostos, e anos mais tarde foi repassada para o Instituto Nacional de Seguro Social (INSS).
Em 2006 o terreno foi destinado para a reforma agrária e o assentamento (que começara no ano anterior) foi reconhecido pelo Incra e pelo então governo Lula. Desde então, essa “ilha” de agricultura familiar rodeada pelos canaviais da Usina Ester produz mais de 40 variedades de produtos agrícolas que são enviados às feiras semanais de Cosmópolis e às merendas escolares das instituições do município.
O imbróglio começou quando, em julho do ano passado, a família Abdalla – grande possuidora de terras da região, arrendadas para a Usina Ester – entrou com recurso para ter de volta essa área que lhe foi confiscada. A ordem de despejo foi autorizada pelo Desembargador Federal Luiz Stefanini.
Entre idas e vindas de recursos e adiamento do prazo para a reintegração de posse, em 15 de janeiro os assentados e o Incra foram oficialmente comunicados da decisão judicial, determinando que a partir de 24 de janeiro o despejo pode ser efetivado com uso de força policial. “No nosso entendimento o único jeito é a presidente Dilma Rousseff assinar um decreto de desapropriação por interesse social da área”, explica Paulo Albuquerque, membro da coordenação do Assentamento Milton Santos.
Correndo contra o tempo
“Desde que surgiu a ameaça de despejo começamos uma ampla articulação com diversos movimentos para construir a luta que possa reverter esse quadro”, conta Paulo. Nos últimos meses o movimento fez três audiências com representantes do governo federal, duas ocupações na sede da presidência em São Paulo, marcha na av. Paulista, acampamento no Incra, ato em Americana, trancamento simultâneo de 10 rodovias do estado de São Paulo e nesse momento permanecem na ocupação do Incra. “Em todas as ocasiões que falamos com representantes do governo federal eles disseram que conseguiriam evitar o despejo. Mas se recusaram a assinar qualquer documento ou ata”, relata.
A reportagem da Caros Amigos entrou em contato com a assessoria de imprensa da Presidência da República, que afirmou “não estar sabendo de nada” e que retornaria a ligação. Até o fechamento dessa matéria não houve retorno. A possibilidade de a presidenta Dilma Rousseff não estar ciente da situação não é cogitada.
Os assentados entregaram uma carta diretamente a ela quando esteve em Campinas, no fim de 2012, participando do comício do então candidato petista à prefeitura, Márcio Pochmann. “Também conversamos por telefone com vários assessores dela”, acrescenta Albuquerque. “Temos até o dia 24 para evitar esse despejo. Estamos correndo contra o tempo. Por isso essa ocupação aqui no Incra”, resume.
Incra ocupado
A guarda do portão do Incra de São Paulo, na Santa Cecília, é revezada e durante o dia todo circulam apoiadores da ocupação. Colchonetes e cobertores espalhados pela garagem do prédio. Ao lado algumas pessoas improvisaram uma mesinha e trocavam ideia, sentados no chão. No térreo, os assentados têm a sua ocupação observada pelos quadros do “mural da reforma agrária”, com intelectuais e militantes como Paulo Freire, Florestan Fernandes e Caio Prado Jr.
Divididos em equipes como de disciplina, higiene, alimentação, finanças, infra-estrutura e relações públicas, os ocupantes optaram por ocupar apenas o térreo e o oitavo andar, mantendo o máximo possível do prédio intacto. No oitavo andar, cheiro de feijão. “O jantar é servido cedo pra que barriga vazia nenhuma atrapalhe as reuniões”, brincou a mulher que picava cebola.
“Essa ação foi organizada pelos assentados em conjunto com MST, Intersindical, Conlutas, entidades do movimento estudantil, STU (Sindicato dos Trabalhadores da Unicamp), Universidade Popular da Unicamp, entre outros. A direção dessa ocupação é coletiva”, salienta Paulo. Cerca de 50 assentados vieram para a ação e a outra parte permaneceu cuidando do assentamento. Até o momento a ocupação do Incra não recebeu nenhuma visita da polícia nem de órgãos governamentais.
A assentada Fátima Silva, integrante da coordenação do assentamento e da direção estadual do MST, vê a pressão ao governo Dilma como “única saída”. “Nós já vivemos um processo de tortura psicológica desde o ano passado. O pessoal do assentamento não está conseguindo dormir de tanta tensão. Não é fácil passar por isso, esse processo não convém, depois de já termos contrato de concessão de uso, nossas roças, nossa produção”, reflete. “Não aceitamos perder isso, somos assentados da reforma agrária. São só 103 hectares no meio de 16 mil da Usina. Mas eles não querem pobres no meio deles”.
“Apesar de estarmos passando por um momento dificílimo, essa situação impulsionou muito debate político qualificado dentro do assentamento e desafiou nossa capacidade de mobilização, o que eu vejo como positivo”, avalia Paulo: “Reafirmou também nossa autonomia para enfrentar o governo, não temos nenhuma subordinação com ninguém. Talvez não sejamos muitos, mas somos corajosos”.
A última trincheira
José Soares da Silva – ou Seu Zé da Água como é conhecido por ser o responsável por ligar e cuidar da bomba de água do assentamento – tem 73 anos e vive no Milton Santos desde o começo. Pernambucano, veio para São Paulo aos 17, “é que lá é muito sofrido, falta chuva”. Parou em Bauru, depois em Presidente Prudente, sempre trabalhando na construção civil. “Aí me casei em 1964 e fui para Limeira, depois para Americana. Era 1997 quando me aproximei do trabalho de base que o MST estava fazendo lá”, relembra. “Tenho cinco filhos, todos moram em Limeira, mas vão visitar eu e minha véia de vez em quando. É bom para eu ver meus netos, tenho 21”, se orgulha.
“Ninguém quer sair do Assentamento Milton Santos de maneira nenhuma. Tamo disposto pro que der e vier. Estamos aqui para reivindicar nosso direito à terra, para a gente ficar tranquilo, poder trabalhar em paz”, expõe Seu Zé da Água. “Não temos para onde ir. Minha casa, minhas coisas, tudo que construí minha vida toda, está tudo lá”. Se a Dilma não assinar o decreto e a polícia for fazer o despejo forçado? “A gente mal consegue pensar nessa possibilidade, porque não pode ser. Não temos plano b. Temos direito a essa terra, ela é nossa. Vamos resistir até o fim”, salienta Fátima.
“Chamamos o assentamento de a última trincheira. A gente sabe que vai ser muito difícil se chegarmos ao ponto de a PM fazer a reintegração de posse. Estamos fazendo de tudo para evitar isso. Não queremos outro Pinheirinho”, afirma Paulo: “Não é a gente que vai enfrentar a polícia. Mas a polícia vai ter que enfrentar a gente”. Seu Zé ressalta que da casa dele ele “não arreda pé”. “Só saio do Incra com a vitória na mão”.
Por Gabriela Moncau*
Eram 4h da manhã do dia 15 de janeiro quando o cadeado do prédio do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) em São Paulo foi arrombado por uma marreta. Sem fazer muito barulho, as cerca de 120 pessoas entraram e estenderam as faixas do lado de fora que já avisavam que agora, o prédio estava ocupado. “Poder popular”, “Contra o despejo do Assentamento Milton Santos”. Seis horas mais tarde um oficial de justiça entregava a ordem de despejo aos que permaneceram no assentamento. O prazo de 15 dias começa a correr.
São no total 75 famílias (68 assentadas mais agregados) que vivem já há sete anos no Assentamento Milton Santos, localizado em Americana e Cosmópolis, interior de São Paulo. Em 1976 a área de 103 hectares foi confiscada de seus antigos proprietários, a família Abdalla, por conta do acúmulo de dívidas em impostos, e anos mais tarde foi repassada para o Instituto Nacional de Seguro Social (INSS).
Em 2006 o terreno foi destinado para a reforma agrária e o assentamento (que começara no ano anterior) foi reconhecido pelo Incra e pelo então governo Lula. Desde então, essa “ilha” de agricultura familiar rodeada pelos canaviais da Usina Ester produz mais de 40 variedades de produtos agrícolas que são enviados às feiras semanais de Cosmópolis e às merendas escolares das instituições do município.
O imbróglio começou quando, em julho do ano passado, a família Abdalla – grande possuidora de terras da região, arrendadas para a Usina Ester – entrou com recurso para ter de volta essa área que lhe foi confiscada. A ordem de despejo foi autorizada pelo Desembargador Federal Luiz Stefanini.
Entre idas e vindas de recursos e adiamento do prazo para a reintegração de posse, em 15 de janeiro os assentados e o Incra foram oficialmente comunicados da decisão judicial, determinando que a partir de 24 de janeiro o despejo pode ser efetivado com uso de força policial. “No nosso entendimento o único jeito é a presidente Dilma Rousseff assinar um decreto de desapropriação por interesse social da área”, explica Paulo Albuquerque, membro da coordenação do Assentamento Milton Santos.
Correndo contra o tempo
“Desde que surgiu a ameaça de despejo começamos uma ampla articulação com diversos movimentos para construir a luta que possa reverter esse quadro”, conta Paulo. Nos últimos meses o movimento fez três audiências com representantes do governo federal, duas ocupações na sede da presidência em São Paulo, marcha na av. Paulista, acampamento no Incra, ato em Americana, trancamento simultâneo de 10 rodovias do estado de São Paulo e nesse momento permanecem na ocupação do Incra. “Em todas as ocasiões que falamos com representantes do governo federal eles disseram que conseguiriam evitar o despejo. Mas se recusaram a assinar qualquer documento ou ata”, relata.
A reportagem da Caros Amigos entrou em contato com a assessoria de imprensa da Presidência da República, que afirmou “não estar sabendo de nada” e que retornaria a ligação. Até o fechamento dessa matéria não houve retorno. A possibilidade de a presidenta Dilma Rousseff não estar ciente da situação não é cogitada.
Os assentados entregaram uma carta diretamente a ela quando esteve em Campinas, no fim de 2012, participando do comício do então candidato petista à prefeitura, Márcio Pochmann. “Também conversamos por telefone com vários assessores dela”, acrescenta Albuquerque. “Temos até o dia 24 para evitar esse despejo. Estamos correndo contra o tempo. Por isso essa ocupação aqui no Incra”, resume.
Incra ocupado
A guarda do portão do Incra de São Paulo, na Santa Cecília, é revezada e durante o dia todo circulam apoiadores da ocupação. Colchonetes e cobertores espalhados pela garagem do prédio. Ao lado algumas pessoas improvisaram uma mesinha e trocavam ideia, sentados no chão. No térreo, os assentados têm a sua ocupação observada pelos quadros do “mural da reforma agrária”, com intelectuais e militantes como Paulo Freire, Florestan Fernandes e Caio Prado Jr.
Divididos em equipes como de disciplina, higiene, alimentação, finanças, infra-estrutura e relações públicas, os ocupantes optaram por ocupar apenas o térreo e o oitavo andar, mantendo o máximo possível do prédio intacto. No oitavo andar, cheiro de feijão. “O jantar é servido cedo pra que barriga vazia nenhuma atrapalhe as reuniões”, brincou a mulher que picava cebola.
“Essa ação foi organizada pelos assentados em conjunto com MST, Intersindical, Conlutas, entidades do movimento estudantil, STU (Sindicato dos Trabalhadores da Unicamp), Universidade Popular da Unicamp, entre outros. A direção dessa ocupação é coletiva”, salienta Paulo. Cerca de 50 assentados vieram para a ação e a outra parte permaneceu cuidando do assentamento. Até o momento a ocupação do Incra não recebeu nenhuma visita da polícia nem de órgãos governamentais.
A assentada Fátima Silva, integrante da coordenação do assentamento e da direção estadual do MST, vê a pressão ao governo Dilma como “única saída”. “Nós já vivemos um processo de tortura psicológica desde o ano passado. O pessoal do assentamento não está conseguindo dormir de tanta tensão. Não é fácil passar por isso, esse processo não convém, depois de já termos contrato de concessão de uso, nossas roças, nossa produção”, reflete. “Não aceitamos perder isso, somos assentados da reforma agrária. São só 103 hectares no meio de 16 mil da Usina. Mas eles não querem pobres no meio deles”.
“Apesar de estarmos passando por um momento dificílimo, essa situação impulsionou muito debate político qualificado dentro do assentamento e desafiou nossa capacidade de mobilização, o que eu vejo como positivo”, avalia Paulo: “Reafirmou também nossa autonomia para enfrentar o governo, não temos nenhuma subordinação com ninguém. Talvez não sejamos muitos, mas somos corajosos”.
A última trincheira
José Soares da Silva – ou Seu Zé da Água como é conhecido por ser o responsável por ligar e cuidar da bomba de água do assentamento – tem 73 anos e vive no Milton Santos desde o começo. Pernambucano, veio para São Paulo aos 17, “é que lá é muito sofrido, falta chuva”. Parou em Bauru, depois em Presidente Prudente, sempre trabalhando na construção civil. “Aí me casei em 1964 e fui para Limeira, depois para Americana. Era 1997 quando me aproximei do trabalho de base que o MST estava fazendo lá”, relembra. “Tenho cinco filhos, todos moram em Limeira, mas vão visitar eu e minha véia de vez em quando. É bom para eu ver meus netos, tenho 21”, se orgulha.
“Ninguém quer sair do Assentamento Milton Santos de maneira nenhuma. Tamo disposto pro que der e vier. Estamos aqui para reivindicar nosso direito à terra, para a gente ficar tranquilo, poder trabalhar em paz”, expõe Seu Zé da Água. “Não temos para onde ir. Minha casa, minhas coisas, tudo que construí minha vida toda, está tudo lá”. Se a Dilma não assinar o decreto e a polícia for fazer o despejo forçado? “A gente mal consegue pensar nessa possibilidade, porque não pode ser. Não temos plano b. Temos direito a essa terra, ela é nossa. Vamos resistir até o fim”, salienta Fátima.
“Chamamos o assentamento de a última trincheira. A gente sabe que vai ser muito difícil se chegarmos ao ponto de a PM fazer a reintegração de posse. Estamos fazendo de tudo para evitar isso. Não queremos outro Pinheirinho”, afirma Paulo: “Não é a gente que vai enfrentar a polícia. Mas a polícia vai ter que enfrentar a gente”. Seu Zé ressalta que da casa dele ele “não arreda pé”. “Só saio do Incra com a vitória na mão”.
*Fonte: Caros Amigos - Foto: Equipe de comunicação do Assentamento
Milton Santos.