segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

O Incra no fio da navalha

A aproximação do órgão responsável pela reforma agrária com representantes do agronegócio acirra debate sobre os planos do governo acerca do arranjo fundiário nacional

Por Verena Glass*

Os fracos resultados da reforma agrária no governo Dilma – marcado pelo menor desempenho na criação de assentamentos dos últimos 20 anos - e o recente estreitamento de relações do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) com a bancada ruralista e a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) têm proliferado especulações (comemorativas ou críticas, a depender da origem) sobre os planos do governo federal para a questão fundiária nacional.
Presidente da CNA, senadora Katia Abreu negocia titulações de áreas na Amazônia com ministro Pepe Vargas (MDA) e presidente do Incra, Carlos Guedes. Foto: Divulgação/CNA

Depois da realização de uma reunião entre a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) e o presidente do Incra, Carlos Guedes, em novembro de 2012, o setor ruralista tem visto com otimismo a abertura de dialogo com o órgão, de acordo com a assessoria da Frente. 
“Naquela reunião, foram discutidas questões como regularização fundiária, assentamentos de reforma agrária e terras indígenas e quilombolas, e os resultados foram positivos. O presidente do Incra deixou bem claro que quer trabalhar com apoio da Frente, e os parlamentares [da bancada ruralista] saíram bastante satisfeitos”, afirma a assessoria da FPA.

O primeiro passo desta parceria, segundo a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), acertado com o Ministério do Desenvolvimento Agrário e o Incra em dezembro, é a simplificação de procedimentos de certificação de imóveis rurais, em especial os localizados em áreas de fronteira e às margens de rodovias federais na Amazônia. Como base de dados das ações, o Incra deverá usar o cadastro de áreas e produtores da CNA. Outra demanda, a de disponibilizar com mais celeridade as áreas de assentamentos no mercado de terras através da titulação dos assentados e da emancipação dos assentamentos, teria sido bem recebida pelo Incra, informou a CNA.

Em editorial de 05 de janeiro, intitulado “Um novo Incra”, o jornal O Estado de S. Paulo comemorou o que considerou uma mudança radical das prioridades do órgão. Na opinião do Estadão, o Incra estaria passando por mudanças que indicam o abandono das tarefas de criação e gestão infraestrutural de assentamentos, e de cadastramento de clientes da reforma agrária, passando a  “dedicar-se exclusivamente ao que lhe deveria caber, isto é, prestar assistência aos agricultores nos assentamentos”. Mais além, o órgão teria feito uma “opção pela integração dos pequenos agricultores ao agronegócio, algo que será benéfico para todos - menos, claro, para aqueles que lucram politicamente com a proliferação de sem-terra”, afirmou o Estadão.

Presidente do Incra
De acordo com o presidente do Incra, Carlos Guedes, no entanto, o jornal cometeu vários equívocos. Em primeiro lugar, não se confirma a tese de que o Incra deixará de fazer novos assentamentos, uma vez que o orçamento para este fim em 2013 seria maior do que o de 2012. Concretamente, explica Guedes, o órgão deverá assentar ainda no primeiro semestre 16 mil famílias em 300 áreas já arrecadadas no ano passado, e priorizará as regiões Nordeste e Centro-oeste para a obtenção de novas terras. Também não se confirma o boato de que o Incra deixará de cadastrar sem-terras para destinação a novas áreas de assentamento. “O que faremos é integrar o cadastro dos clientes da reforma agrária ao Cadastro Único do Governo Federal (que relaciona os beneficiários do Bolsa Família, Brasil Sorridente e Brasil Carinhoso), para que as famílias que pleiteiam acesso à terra já possam acessar os demais programas sociais do governo”, explica o presidente do Incra.

É fato que algumas das (até então) responsabilidades do Incra, como habitação e infraestrutura hídrica, serão repassadas aos programas federais “Minha Casa Minha Vida” e “Água para Todos”, respectivamente; e, em municípios que “adotarem” os assentamentos (efetuando compra da produção via Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar e Programa Nacional de Alimentação Escolar), o Incra repassará recursos para a manutenção de estradas. “Assim liberamos técnicos destas tarefas pra que possam acompanhar questões mais estratégicas, como o combate à concentração de terras”, afirma Guedes.

Já a aceleração dos processos de titulação dos assentados e de emancipação dos assentamentos de fato será uma das prioridades do Incra.  Segundo Guedes, a titulação é um direito legal do assentado que, depois de 10 anos, passa a dispor livremente sobre o lote. “Titular rapidamente o assentado facilita seu acesso a outras políticas públicas, além das específicas da reforma agrária. Mas tudo depende da legalização do assentamento, do imóvel estar em nome do Incra e dos lotes estarem demarcados. Depois disso, pode titular”, explica. A emancipação, continua Guedes, segue um raciocínio similar. Segundo ele, emancipado, o assentamento deixa de ser responsabilidade do Incra e os assentados passam a ser agricultores familiares como os demais, podendo usufruir de todos os direitos do setor. “Não queremos nos livrar dos assentamentos, mas a emancipação é conseqüência do processo”.

MST critica
As mudanças no Incra que mexem com programas infraestruturais nos assentamentos a princípio não incomodam o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Em Pernambuco, o membro da direção nacional do MST, Jaime Amorim, explica que a construção de casas já vinha sendo reivindicada pelo movimento junto à Caixa Econômica Federal. “Não temos problema com o repasse da responsabilidade para o ‘Minha Casa, Minha Vida’. Tirar técnicos e orçamento do Incra para a habitação libera pra outros setores. Quanto ao ‘Água para Todos’, o Incra nunca fez estruturas de irrigação. Será bom ter alguém realmente responsável, termos de quem reivindicar”, explica Amorim.


Sem apoio do Incra, em 2012 Jaime Amorim, do MST/PE, negociou estrutura de irrigação com governo do estado. Foto: Verena Glass
O problema, avalia o MST, é a postura do Incra frente à reforma agrária propriamente dita. Segundo Amorim, é fato que o Nordeste hoje concentra o maior número de famílias sem-terra, o que exige uma atenção especial para a região. Mas isso não justifica a paralisação da reforma agrária nas demais, e a adoção, pelo Incra, de um limite de R$ 100 mil para assentar uma família deve diminuir ainda mais o número de sem-terras beneficiados.

Já ceder à CNA e acelerar a emancipação de assentamentos - e a possibilidade de alienação dos lotes - levará à reconcentração de terras em ritmo acelerado, deixando os assentados à mercê de pressões do agronegócio, afirma outro dirigente do movimento. Também a simplificação da titulação de áreas da União na Amazônia, principalmente nas margens de rodovias onde se concentra grande parte dos problemas de grilagem e disputas de terras, pode aprofundar os já graves conflitos na região, avalia o movimento.

Submissão
As mudanças de rumo e de estrutura do Incra também têm preocupado os funcionários do órgão. De acordo com Reginaldo Aguiar, dirigente da Confederação Nacional dos Servidores do Incra (Cnasi), elas não foram discutidas com o corpo técnico, que ainda aguarda esclarecimentos da direção. O maior incômodo, no entanto, é a aparente aproximação do órgão com os representantes do agronegócio. De acordo com outro funcionário, “parece estar ocorrendo uma espécie de submissão do Ministério do Desenvolvimento Agrário aos interesses ruralistas, uma vez que a CNA passará a interferir nos principais instrumentos de controle e desenvolvimento territorial, ajeitando processos de ocupação irregular com a flexibilização das normas exigidas por lei”. 

Do ponto de vista estrutural, a maior preocupação de parte do corpo técnico é a aparente desistência do governo de usar o Incra como instrumento para o desenvolvimento territorial. Ou seja, existe uma diferença óbvia entre crescimento da produção e desenvolvimento, mas ela é mais séria quando se coloca o qualificativo do ‘territorial’, no sentido de que o desenvolvimento real está mais associado à geografia e às relações sociais do que à superprodutividade econômica.

Ainda, a emancipação de assentamentos antigos, bem sucedidos, leva à substituição de famílias assentadas por agricultores capitalizados, passando a idéia de que o desenvolvimento se deve à evasão dos beneficiários originais, e não à organização das famílias, não à política em si. Com a emancipação dos assentamentos "antigos", perde-se a articulação que traz resultados maiores do que as qualidades da terra e das famílias, perde-se a liderança que orienta os investimentos grupais e puxa o apoio externo, e perde-se a visibilidade dos resultados positivos. Assim, sobrarão como assentados apenas aqueles que ajudam a ilustrar o discurso das “favelas rurais”, justificando o discurso de inoperância da reforma agrária.

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