Márcio Santilli*
A manobra urdida no “colégio de líderes” da Câmara dos Deputados, na semana passada, e que ainda poderá se consumar, nesta semana, pretende revogar, sem qualquer discussão, o capítulo “Dos Índios” da Constituição brasileira. Trata-se de um requerimento para se votar, em regime de urgência, um projeto de lei complementar (PLP) que permite legalizar latifúndios, implantar assentamentos de reforma agrária, abrir estradas, construir hidrelétricas e cidades, explorar minérios e outros recursos naturais em terras indígenas (saiba mais).
O parágrafo 6º do artigo 231 da Constituição prevê a edição de uma lei complementar para regular as situações extremas em que o “relevante interesse público da União” imponha a exceção ao direito dos índios de usar, de forma exclusiva, seu território. Pois o projeto de lei em foco pretende travestir o interesse de proprietários de terra e de outros grupos econômicos em interesse público do próprio Estado.
Mas, se é que é possível, a aberração no processo legislativo em curso é ainda mais grave que o conteúdo de verdadeiro estupro aos direitos constitucionais dos índios. O tal PLP, de número 227/2012, havia sido aprovado na manhã da última quarta-feira pela Comissão de Agricultura e, no começo da tarde, já havia um requerimento assinado por vários líderes de partidos que, provavelmente, não leram o que assinaram. A comissão piorou um projeto oligárquico de autoria do deputado Homero Pereira (PSD-MT) e relatado pelo deputado Moreira Mendes (PSD-RO), ambos fazendeiros e membros da bancada ruralista.
O mais incrível é que a obra corporativista e inconstitucional da Comissão de Agricultura recebeu apoio de partidos políticos, foi avalizada pelo presidente da Câmara, deputado Henrique Alves (PMDB-RN), e pelo líder do governo, deputado Arlindo Chinaglia (PT-SP), para que fosse imediatamente votada em plenário, sem qualquer discussão, sem a análise de quaisquer outras comissões e, pelo jeito, sequer com leitura! Como é possível aceitar que a Câmara altere o sentido da Constituição, em horas, por meio de um subterfúgio legislativo?
Henrique Alves tem uma dívida ética, pois, ao avalizar a manobra espúria, rompeu o acordo público feito com representantes dos povos indígenas, que haviam ocupado o plenário da Câmara em abril, após a ameaça de instalação de uma Comissão Especial para emendar o artigo 231 e paralisar a demarcação de terras no Congresso. Alves havia constituído uma comissão de negociação que deveria decidir sobre o encaminhamento de proposições legislativas de interesse dos índios. Assim mesmo, decidiu-se pela traição.
Pior ainda está sendo a falha ética do governo, pois a manobra ocorreu na mesma hora em que a presidente Dilma recebia 20 representantes indígenas no Palácio do Planalto para, supostamente, iniciar um diálogo direto, nunca experimentado em seu mandato. Pouco antes dos índios serem recebidos e o ministro da Justiça, Eduardo Cardozo, conceder entrevista expressando restrições ao PLP, o advogado-geral da União, Luís Adams, e a ministra chefe da Casa Civil, Gleisi Hoffman, orientavam o líder do governo a apoiar o regime de urgência para votar o projeto e rifar os direitos indígenas a toque de caixa. Esta proposta faz parte de um pacote de iniciativas que tem o mesmo objetivo, como a PEC 237, apresentada este ano e que permite a concessão da posse de até 50% de uma terra indígena por produtores rurais.
Observadores da cena perguntam-se se foi a presidente Dilma que tomou uma facada nas costas por parte dos seus próprios ministros, ou se foi ela que a aplicou nas costas dos índios.
Uma coisa é certa: se a manobra consumar-se, com a aprovação em regime de urgência do estupro aos direitos dos índios, a presidente e o presidente devem esperar por uma dura resposta.