Nesse domingo, 24 de maio,
completam-se quatro anos do assassinato de José Cláudio Ribeiro e Maria do
Espírito Santos, em Nova Ipixuna, Pará. O crime foi sucedido, naquele momento,
por uma série de outras mortes, espalhando ainda mais sangue na Amazônia, como
o assassinato de Adelino Ramos, em Rondônia, no dia 27 de maio, no total de 29
assassinatos no campo no Brasil inteiro – e entre elas, a de Nísio Gomes, liderança Guarani
Kaiowa no Mato Grosso
do Sul. Ao mesmo tempo, a bancada ruralista no Congresso avançava na defesa de
seus interesses, garantindo um novo código florestal, financiamento para seus
projetos, ameaças a direitos indígenas, paralisação das demarcações e, nesse
mesmo sentido, facilidades em mecanismos mais sofisticados, juridicamente, de
regularização da grilagem de terra.
Nesses
anos que passaram, por um lado, aumentou a violência no campo, segundo dados da
Comissão Pastoral da Terra, enquanto nas instâncias burocráticas ruralistas e
seus aliados no governo exercem cada vez mais o poder para seus próprios
benefícios. O último mês de maio expôs ainda mais a violência brutal – que
opera, por vezes, de forma silenciosa e discreta com ameaças e intimidações. O
Conselho Indigenista Missionário denunciou o sistemático assassinato de
lideranças indígenas, com a morte de Eusébio Ka’apor, no Maranhão, e duas
lideranças na Bahia, Gilmar, do povo Tumbalala, e Adenilson Pinduca, dos
Tupinambá. O CIMI protocolou um pedido de providências em órgãos públicos para tentar alguma
medida urgente do Estado no sentido de estancar a série de execuções de
lideranças indígenas, levadas a cabo logo na sequência das mobilizações do
Abril Indígena no país inteiro.
Todas
essas mortes foram de defensores da Terra, de ambientalistas, indígenas,
camponeses, extrativistas, que lutam por terra e defendem o território e os
recursos da exploração predatória e ilegal. Em todos os casos, o Estado
acobertou o crime com impunidade. Se há violência para a demarcação de terras e
criação de assentamentos, Leonilde Medeiros, no último caderno de Conflitos no
Campo da CPT, nota também uma violência continuada posterior: “o reconhecimento
do direito à terra não elimina a pressão e a violência, reabrindo condições
para conflitos.” Foi essa pressão e violência que acontece após o Estado
reconhecer o direito à terra que levou ao assassinato de Zé Cláudio e Maria.
Eles viviam em um assentamento criado em 1997, o Projeto de Assentamento
Agroextrativista Praialta Piranheira, mas que nos anos subsequentes passou a
conviver com extração ilegal de madeira e concentração de terras por grileiros.
O
crime contra Zé Cláudio e Maria chocou o mundo. A fala de Zé Cláudio no
TEDxAmazonia, realizado em Manaus em novembro de 2010 (em Marabá, difamadores
tentam dizer que a palestra teria sido realizada na CIA, nos Estado Unidos)
choca qualquer um que assisti-la hoje. Está disponível aqui no youtube.
Eu havia convidado Zé Cláudio a falar no TEDx com a intenção de atrair atenção
para sua luta, e a pedido dele e de sua esposa, pois sabiam que apenas uma
repercussão poderia salva-los. Como ele dizia, para ver se os mandantes fossem
ficar mais “receosos”. Não ficaram. E mesmo depois da imensa repercussão do
caso, ainda não estão receosos de seguir matando mais pessoas, mais
ambientalistas, mais camponeses, mais extrativistas.
Recentemente,
durante a cerimonia em homenagem aos 19 sem terra mortos em Eldorado dos
Carajás, na Curva do S, encontrei um assentado que era amigo de Zé Cláudio. E
ele me
contou: o assentamento hoje vive um clima de terror. A razão: a
família do mandante, José Rodrigues, continua ameaçando novas pessoas,
concentrando terras, expulsando trabalhadores que sequer se acham
ambientalistas, sequer denunciam as irregularidades, e sequer eram amigos de Zé
Claudio ou Maria. Simplesmente porque Zé Rodrigues, que esta foragido da
Justiça, está escondido no assentamento e quer continuar grilando terras.
Fiquei
pensando: como é possível isso? Por que esse “coração das trevas”? De forma
patente, há duas razões urgentes. Primeiro, a impunidade de uma justiça injusta,
cruel e infame. Depois, um órgão federal tomado por corrupção e descaso – sendo
usado, de maneira eficiente, para a concentração de terras. O INCRA veste o que
antropólogo Eduardo Viveiros de Castro me disse ser uma suposta impotência
estratégica” do Estado. Finge não dar conta do problema, finge uma “ausência”,
que na verdade, nada mais é do que uma aliança com certos interesses
ilegítimos.
1:
A Justiça injusta
O
julgamento dos assassinos e dos mandantes foi uma violência contra a sociedade
brasileira. O juiz conduziu todo o processo para que ele caminhasse para a
impunidade. E foi brindado com uma articulação religiosa entre o advogado e
dois jurados que colocaram suas crenças evangélicas sobre a lei. Como me
disse o advogado
assistente de acusação, da Comissão Pastoral da Terra: “condenar os executores
e inocentar o mandante não tem sustentação”.
O
juiz Murilo Lemos Simão escreveu, na sua sentença, que as vítimas “contribuíram
para o crime”.
Literalmente,
o juiz criminalizou as vítimas. Os dois mortos passaram, na retórica da justiça
injusta, a terem a culpa por suas mortes.
Esse mesmo juiz soltou, em 2012, o fazendeiro
Vicente Correia Neto e os dois pistoleiros que ele contratou, Valdenir
Lima dos Santos e Diego Pereira Marinho, que tinham confessado terem sido pagos
para matar o líder sindical Valdemar Barbosa de Oliveira, o Piauí, em 2011, em
Marabá. E os movimentos sociais e a CPT protestaram contra a sua parcialidade no julgamento de conflitos por terra.
Ano passado, de forma reincidente, mais uma vez esse mesmo juiz soltou outros dois
pistoleiros que mataram o líder camponês Jair Cleber e o tratorista Agnaldo
Queiroz. Novamente, mais uma vez, os movimentos sociais protestaram.
Para
que serve um Poder Judiciário que julga dessa maneira?
E,
como previu o advogado da CPT, a sentença de Simão não teve sustentação quando
subiu de instância: o Tribunal de Justiça do Estado do Pará, em julgamento em
agosto do ano passado, anulou a absolvição de Zé Rodrigues. O tribunal decidiu
que foi, efetivamente, a disputa pela terra o que motivou o crime.
Agora
vem um fato confuso: Zé Rodrigues está foragido e não se sabe aonde está o
mandado de prisão para prendê-lo. As últimas informações que chequei dão conta
de que o judiciário paraense não expediu um mandado de prisão. Primeiro,
deveria ter sido expedido pelo TJ, logo após o julgamento do recurso que anulou
a absolvição. Mas não o fez, e remeteu diretamente o processo para Marabá. Em
Marabá, o juiz Simão tampouco mandou expedir o mandado para cumprir o acórdão
do TJ. A polícia civil, que deveria prender Rodrigues, tem dado explicações
vagas quando questionada. Na Delegacia de Conlfitos Agrários de Marabá e em
Nova Ipixuna dizem que nada receberam. Na secretaria de Segurança Pública do
estado dizem que o mandado estaria no “setor de inteligência”. Corri
atrás do tal mandado
de prisão do mandante nessas delegacias no Pará e na secretaria de segurança
pública. A última informação prestada pela CPT é que iria peticionar o o
Tribunal de Justiça para expedir e determinar a prisão com urgência. Mas, e o
Ministério Público, que deveria cuidar da segurança da sociedade nesse caso?
O
próximo objetivo dos familiares das vítimas e seus advogados, que corre em
paralelo com a expectativa de prisão de Rodrigues, desaforar o júri de Marabá
para que um novo julgamento ocorra em Belém. O argumento principal é que não há
condições de seguranças para se realizar um novo júri em Marabá – e basta se
lembrar que, no julgamento anterior, a principal testemunha foi ameaçada de
morte por um irmão de Rodrigues na frente de todo mundo, e nada aconteceu. Aqui
uma análise desse
gosto amargo da impunidade.
No
pedido de desaforamento protocolado, escrevem os advogados da CPT que no
primeiro Juri, “A tensão e a pressão também atingiu o conselho de sentença,
causando reação de jurados na forma de choro”; “Essa situação comprometeu a
ordem pública e, sem dúvida interferiu na imparcialidade do conselho de
sentença.” Esse choro reportado havia sido de compaixão evangélica entre uma
das juradas e a cena religiosa perpetrada por Rodrigues pedido perdão a seu
deus e sendo amparado pelo juiz Simão – o que havia causado transtorno e
revolta no público que assistia.
2:
O INCRA e a culpa do governo nas mortes
Enquanto
Zé Rodrigues estava preso, por ação da polícia civil do Pará que em uma mega
operação o havia prendido (nessa reportagem na revista GQ mostrei os detalhes
dessa operação que envolveu 65 homes da polícia), escondido com seu irmão e
pistoleiro Lindonjonson, a superintendência do INCRA em Marabá decidiu
assenta-lo como beneficiário da reforma agrária. Foi um escândalo – como era de
se esperar, e o superintendente do INCRA caiu.
Tal
foi o erro grotesco do INCRA que suspeitava-se que seria um caso de
“desatenção” – e talvez não de “corrupção”.
Acontece
que novas denuncias da região apontam que a situação do INCRA em Marabá é
absolutamente crítica. Assentados acusam funcionários do INCRA de cobrarem
propina para que eles recebam o documento de Relação de Beneficiários (RB). O
mesmo INCRA que assentou um assassino, dando causa não apenas a legitimar o
crime praticado (isso foi usado como um argumento da defesa no julgamento)
também é acusado de extorquir assentados – segundo denúncias dos próprios, eu
mesmo ouvi de diferentes pessoas que pediram anonimato – para que suas posses sejam
regularizadas.
Uma
denúncia a que tive acesso, protocolada no Ministério Público Federal semana
passada, aponta que a “omissão de gestores do INCRA foi uma das causas do
assassinato do casal.” O INCRA havia assentado diversos laranjas de uma
cartorária que grilava terras; o INCRA nunca apurou as denuncias feitas por
Maria do Espírito Santo; o casal havia apoiado três famílias extrativistas que
viviam no assentamento e que estavam sendo expulsas por Zé Rodrigues, e o INCRA
nunca tomou nenhuma providência. E, o pior: o mandante e seus familiares
continuam assentados, o INCRA não ingressou com nenhuma ação para retomar os
lotes que foram adquiridos de forma ilegal.
A
principal vítima que está em risco, agora, é a irmã de Maria, Laisa Santos
Sampaio, que continua vivendo no assentamento e tem recebido ameaças de morte
da família. A última, ela me contou pelo telefone essa semana, veio de uma irmã
de Zé Rodrigues que disse para uma vizinha de Laisa que ela iria ser morta em
breve.
Nessa
última semana de maio que segue, a presidenta do INCRA Maira Lúcia de Oliveira
Falcón prometeu visitar a superintendência de Marabá (SR 27). Não vai faltar
problemas a serem seriamente investigados e medidas a serem tomadas com
coragem. Caso não venha a ser tomada alguma providência urgente, é difícil
imaginar que os escândalos que ocorrem em Marabá não respinguem em Brasília.
Zé
Cláudio sabia
Andei
escutando novamente as entrevistas que eu fiz com Zé Cláudio em seu lote,
quando o visitei no dia 9 de outubro de 2010. Me chamou a atenção rever a sua
preocupação com a questão fundiária, a concentração de terras no assentamento,
e o que ele previa: as novas ameaças vindo daí. Ele sabia que o INCRA não
estava cumprindo o seu papel, e que o risco a sua vida viria da parte de empresários
da cidade, um consórcio: com o declínio da madeira em razão da intensidade da
exploração predatória, eles iriam começar a grilar terras dentro do
assentamento. E isso poderia custar a sua vida.
Zé
Rodrigues, nesse sentido, é apenas um dos mandantes – e mesmo assim impune. Há
outras pessoas envolvidas, como tem denunciado os familiares de Zé Cláudio e
Maria, e como mostrou o inquérito feito pela polícia federal (que apontava um
outro pequeno grileiro, dentro do assentamento, e um fazendeiro e empresário da
cidade de Nova Ipixuna).
Disse
Zé Cláudio:
Eu
vivo em constante tensão, vivo de orelha em pé. De noite, a gente não consegue
dormir direito. Cachorro quando late você fica alerto. Em constante tensão.
Ultimamente,
já teve muita ameaça. Sem contar com ameaça de defender o meio ambiente contra
os madeireiros, ainda teve umas ameaças com fazendeiros. E agora as ameaças
estão continuando de novo. Porque os empresários estão concentrando terra aqui,
porque está ficando difícil: a madeira está acabando mesmo e daqui mais uns
anos não vai mais ter madeira mesmo. Então, o que eles estão fazendo? Estão
concentrando terra aqui dentro do projeto de assentamento, o que não pode. Não
pode comprar terra aqui dentro do projeto de assentamento. Ainda mais
empresário. E ai, eu vou para cima, eu denuncio, eu entro no Ministério
Público, e vou para o INCRA. Inclusive já teve retomada de área de gente que já
esteve concentrando terra, já tomou e já perderam.
E
aí, a gente fica na mira que, algum dia que venha acontecer algum negócio
desses, a gente não sabe nem da onde foi que veio.
As
investigações apontaram, caro Zé Cláudio. Hoje, a gente sabe de onde é que
vieram os tiros que mataram você e sua esposa.
E
o mesmo que Zé Cláudio viu acontecer com Dedé em Morada Nova, com o Dézinho em
Rondon do Pará, com o Dema, em Altamira, conforme tinha me falado,
aconteceu, até agora, com ele e sua esposa: os mandantes estão soltos.
Ainda
bem que as ideias não morreram junto. Zé Cláudio tinha me falado:
Mas
a gente tem uma bandeira de luta, a gente tem uma obrigação como cidadão. E eu
jamais vou ver uma injustiça e ficar de boca calada, eu não fico, de jeito
nenhum. Nem que isso custe a minha vida, mas eu não fico calado. Porque
enquanto eu tiver folego de vida e viver aqui dentro eu combato as injustiças,
seja pela depredação do ambiente, seja pela apropriação da terra que ninguém
tem direito de ter a terra só para si, a terra tem que ser distribuída para
todos.
Nesse
domingo, 24 de maio de 2015, familiares e diversos ativistas dos movimentos
sociais da região estão lá no lote onde o casal vivia, lutando por essas ideias
e pela memória de Zé Cláudio e Maria.
Fonte: Blog do Felipe
Milanez na Carta Capital