domingo, 17 de maio de 2015

São Gabriel e seus demônios

A reportagem da Pública  foi até o alto rio Negro, no noroeste do Amazonas, em busca de entender por que o município mais indígena do Brasil é também o que tem o maior índice de suicídios

Faz pouco mais de dois meses que ela se foi, um dia antes do seu aniversário. Maria – vamos chamá-la assim – completaria 20 anos em 2 de março. Ninguém diria que não era uma indiazinha como tantas que colorem as ruas de São Gabriel da Cachoeira, município no noroeste do Amazonas, às margens do rio Negro. Era baixinha, os cabelos negros sobre os ombros, as roupas justas, chinelo de dedos. Mas Maria estava ali só de passagem. No seu enterro os parentes contaram que tinham vindo rio abaixo para passar o período de férias escolares, quando centenas de indígenas de diversas etnias deixam suas aldeias e enchem a sede do município para resolver pendências burocráticas. Ali na cidade, ela arrumou namorado, um militar, e passava os dias com ele, quando não estava entre amigos. Mas nos últimos dias Maria andava triste: o casal havia rompido o namoro. Estava estranha, nervosa. Os parentes contaram que chegou a ter alucinações.
Os pais tinham achado bom o fim do namoro. Ninguém chegou a conhecer de perto o tal soldado. Nunca conseguiram ver o seu rosto porque, segundo contaram, quando ele vinha ao bairro do Dabaru, um dos mais pobres do município, onde a família morava numa espécie de vilazinha com casas coladas umas nas outras, ele sempre se escondia nas sombras formadas pela parca iluminação. Tinha o rosto coberto pelas trevas da noite. Era branco? Era preto? Era gente?
Na madrugada de sábado para domingo, dia 1o de março, depois de ter passado a tarde e o começo da noite com o irmão mais velho e amigos bebendo na praia do rio, Maria começou a se transformar de vez. Estava agressiva. Os olhos já não eram os dela, contou o irmão, reviravam e mudavam de cor enquanto ela gritava que os pais não gostavam dela, que era ele o filho predileto. O irmão ainda arrastou Maria de volta, mas, quando chegaram em casa, os pais não conseguiam enxergá-la. No lugar dela viam apenas algo escuro, uma sombra. Um ser da escuridão. O pai não pôde nem levantar da rede no pequeno quarto que dividia com os filhos. Ficou chorando, atônito. Maria entrou no quarto ao lado, bateu a porta. Não conseguiram abri-la, embora não estivesse trancada. Por uma fresta, viram quando ela amarrou uma corda e se enforcou. No momento seguinte, contam, a porta finalmente abriu. Ela já estava morta.
Maria é a vítima mais recente de uma tragédia assombrosa que se repete com enredo semelhante há pelo menos dez anos em São Gabriel da Cachoeira e que foi traduzida em números pelo Mapa da Violência 2014, da Secretaria-Geral da Presidência da República. De acordo com o relatório baseado em dados do Sistema de Informação da Mortalidade do Ministério da Saúde, São Gabriel é o recordista nas estatísticas de suicídio por habitante dos municípios brasileiros. Em 2012 foram 51,2 suicídios por 100 mil habitantes – dez vezes mais que a média nacional. Isso corresponde a 20 pessoas que se mataram, mais ainda do que no ano anterior, quando foram 16 suicídios.
Leia a matéria completa de Natália Viana no sítio dA Pública
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