Por Felipe Milanez*
A violência explodiu no campo e nas
florestas. Ano passado foram 50 assassinatos. E a impunidade reina, 20 anos
depois do Massacre de Eldorado dos Carajás. Poderia ser pior, sempre pode: 59
pessoas sofreram tentativas de assassinatos e por pouco não morreram para
aumentar as "estatísticas", como outras 144 receberam ameaças de
morte, e vivem sabendo que podem ser mortas em breve. Uma barbárie que, em
termos quantitativos, não ocorria desde 2004. O pior ocorre na Amazônia,
sobretudo Pará e Rondônia: nesses
estados 40 pessoas foram mortas.
Estes dados do teatro da crueldade que
se transformou o Brasil estão compilados no Caderno Conflitos no Campo da Comissão Pastoral da Terra,
lançado nesta sexta-feira 15 de abril simultaneamente em Brasília e Marabá. Em
Marabá, ocorre a Conferência Internacional da Reforma Agrária, organizada pela
Via Campesina, em memória aos 20 anos do massacre de 19 sem-terra em Eldorado
dos Carajás, enquanto em Brasília acontece o Acampamento pela Democracia.
Os dados sobre o ano passado não dão
conta de acompanhar a barbárie em curso: nesse primeiro trimestre de 2016 já
foram 13 mortes. Dois sem-terra foram mortos pela Polícia Militar do Paraná na
semana passada, em uma aparente emboscada criminosa que ainda feriu outras seis
pessoas.
"Os números às vezes confundem a
cabeça da gente, por isso o caderno é acompanhado de textos analíticos ",
afirma o advogado da CPT em Marabá, José Batista Afonso. Os conflitos, segundo
ele, estão presentes em todo o País e decorrem de causas estruturais
relacionadas à expansão do capital no campo e o aumento da concentração da
terra. "A aceleração do processo de concentração da terra significa mais
gente com pouca ou sem terra e menos gente com muita, mas muita terra
mesmo".
Em
um dos textos analíticos, escrito pelo professor de geografia da USP Ariovaldo
Umbelino de Oliveira, ele aponta que 97,9 milhões de hectares foram
concentrados durante os governos Lula e Dilma.
Oliveira
sustenta que o elevado índice de violência nos conflitos no campo são
decorrência direta da não realização da reforma agrária, e as mortes absurdas,
no total de 50, ou seja, quase uma por semana, nada mais são do que "a
continuidade da barbárie assolando as terras do País". O Bico do Papagaio,
a tríplice fronteira do Pará, Maranhão e Tocantins, é, hoje, segundo a análise
de Oliveira, a região mais conflituosa do Brasil.
Nesse sentido, Batista, da CPT de
Marabá, descreve em um outro levantamento a violência no Pará como decorrente
do "aumento da impunidade": aqueles que são responsáveis não são
punidos.
"Não são apenas crimes só contra
a pessoa mas também praticado contra o meio ambiente onde a impunidade
predomina, como exemplo o desastre de Mariana, ou o desmatamento na Amazônia.
Mas contra a pessoa é mais grave ainda no Estado do Pará, onde o número de
violência praticado contra os camponeses é maior do que qualquer outro Estado
da Federação. Desde que a CPT tem feito os registros, 1/3 ocorreu no Pará. A
cada três assassinados, um ocorreu aqui no Pará."
Em um levantamento específico, a CPT
indica que ocorreram 846 assassinatos desde 1980 até 2014, e em apenas 293
houve algum tipo de investigação: "em 65% das mortes no Pará, sequer houve
investigação das responsabilidades, nem sequer um inquérito policial",
explica Batista. Somados os 19 assassinatos no ano passado, nos últimos 35 anos
861 camponeses e camponesas foram mortos e mortas no Pará.
Essa impunidade é a prova, segundo o
advogado, de que a atuação do Poder Judiciário tem sido insuficiente para
combater o problema da impunidade. "O pistoleiro que pegou uma morte de
encomenda e recebeu dinheiro para assassinar o camponês e não é punido, e ele
vai estar no outro dia à procura de uma nova encomenda: é o assalariado da
morte. Da mesma forma o mandante vai estar resolvendo o problema do conflito na
base sempre da bala, porque tem a certeza de que a lei não o vai atingir."
O avanço violento do capital ocorre
junto do que Paulo Cesar dos Santos, da executiva nacional da CPT, chama de
"violência institucional" e "violência legislativa":
"há ao menos 26 projetos de lei ou emenda constitucional que querem
diminuir ou acabar com os direitos conquistados no campo".
Como exemplo, ele cita o projeto que
pretende alterar o conceito de "trabalho escravo" para inviabilizar a
atuação dos grupos móveis. "Os projetos estão em voga no Congresso mais
conservador da história", ou seja, o mesmo que no domingo 17 promete dar
um golpe derrubando o governo eleito pelo voto.
"O território amazônico, as
comunidades tradicionais e os posseiros que migraram para cá estão sofrendo uma
violência enorme", explica Santos. São violências de diversos tipos, que
operam da forma mais cruel possível. Como exemplo, a chacina em Conceição do
Araguaia, em 17 de fevereiro do ano passado, que matou uma família inteira:
Washington Miranda Muniz e sua esposa, Leidiane, assassinados junto de três
filhos e um sobrinho.
Também no Pará, duas vítimas foram
assassinadas enquanto lutavam contra a hidroelétrica de Belo Monte. Esse foi o
ano em que mais se registrou conflitos pela água, com 135 ocorrências, sendo a
maioria relacionados com a expansão da mineração, que representa 56% desse tipo
de conflito.
Por outro lado, os dados levantados
pela CPT indica que se intensificou as manifestações da classe trabalhadora,
com um aumento de 40% do número de participantes, "o que significa que
mais e mais pessoas estão indo para as ruas", afirma Santos. E, nesse
sentido, aumentou a criminalização dos trabalhadores e trabalhadoras rurais,
daqueles que vão continuar a lutar contra o sistema capitalista que está ai.
Como exemplo, há duas semanas a prisão do cacique Tupinambá Babau, no sul da
Bahia.
Quilombolas e indígenas estão em luta
pelo território, camponeses em luta pela terra, e estão todos sendo
exterminados, assassinados, despossessados. Os "condenados da terra",
como escreveu Frantz Fanon, são as vítimas do trabalho escravo e da pistolagem,
excluídos do acesso à terra, à água, ao espaço para viver e se reproduzir, que
se concentra na mão de fazendeiros, banqueiros e das grandes mineradoras,
protegidos por um Poder Judiciário injusto e por representantes políticos fieis
à oligarquia que os financia.
Aquela cerca colocada em Brasília para
dividir a sociedade brasileira parece ter um efeito simbólico além da linha da
direita e da esquerda: a divisão daquela/es que podem viver, daquela/es que
devem morrer; aquela/es que se beneficiam de um Estado injusto e desigual,
daquela/es que são espoliados, criminalizados e eliminados como obstáculo ao
insano ciclo de acumulação predatória e extremamente violenta. Como escreve
Ariovaldo Umbelino de Oliveira:
"Esse
é o quadro da violência e, portanto, da barbárie que reina no campo, enquanto
isso os governos nada fazem. A reforma agrária não é feita. Os crimes não são
apurados. As policias militares não prendem os assassinos [quando ela mesma não
é a própria assassina]. A justiça não julga, e quando julga nem sempre condena
os criminosos. Enfim, o direito não se respeita e a justiça não se faz."
*Publicado originalmente no Blog de Felipe Milanez no sítio da Carta Capital