Jairo Saw: "Não queremos ser peça de museu,
e sim um povo vivo" - Mauro
Ventura / O GLOBO |
Na terça-feira passada, Dia do Índio, Jairo Saw tinha grandes motivos para
comemorar: o relatório da Funai sobre a demarcação de sua terra Sawré Muybu foi
publicado no Diário Oficial após três anos de espera. Se em 90 dias não houver
contraditório, o decreto será homologado pela presidência. “É histórico”, diz
ele, de 47 anos, uma das lideranças do povo Munduruku, que veio ao Rio pela
primeira vez, para a Semana Cultural Indígena. A razão da celebração é que
agora vai ficar muito mais complicado fazer hidrelétricas na região. Pelos
planos do governo, serão construídas 43 grandes barragens no complexo
hidrelétrico do Tapajós, onde vivem 12 mil Munduruku. “Estão previstas cinco
hidrelétricas, que alagarão uma área de floresta igual à da cidade de São
Paulo”, diz ele, que mora numa aldeia urbana, Praia do Mangue, no município de
Itaituba, no médio Tapajós, no Pará. O leilão da usina São Luiz do Tapajós,
obra prioritária do governo, foi anunciado para o segundo semestre, mas não
sairá, se depender dos Munduruku, um povo estrategista e politizado. Em
dezembro, eles receberam o prêmio Equador, da ONU, pela luta para proteger seu
território. O esforço também virou HQ online, "O jabuti resiste", do
Greenpeace, que apoia os Munduruku.
REVISTA
O GLOBO: Por que a luta contra as hidrelétricas?
JAIRO
SAW: Somos
tratados como empecilho para o desenvolvimento econômico do país. Mas não somos
contra o desenvolvimento. Queremos é que nossos direitos sejam respeitados. As
barragens trazem progresso do ponto de vista do capital, mas existe um povo que
vive ali desde sempre e que vai perder sua ciência, sua educação, sua
sabedoria, seu conhecimento, sua tradição, seus locais sagrados, o registro dos
antepassados. É a cultura e a memória de um povo que se perdem. É uma forma de matar
a gente sem precisar de armas. E o rio nos dá vida, é fonte de alimentação e
meio de transporte. Sofreremos consequências culturais, econômicas, ambientais,
psicológicas e espirituais.
E
que consequências há para a sociedade em geral?
Não
é só o índio que vai sofrer os impactos. O pariwat (não índio) também. O agronegócio, por
exemplo, vê a floresta como terra improdutiva, mas ela é fundamental para o
equilíbrio ambiental, e nós nos preocupamos com as mudanças climáticas.
Prestamos um serviço ao planeta. Ao nos destruir vocês também estão se
destruindo. Ao proteger com unhas e dentes o patrimônio que nossos antepassados
nos deixaram não estamos apenas nos defendendo. A natureza tem leis, se as
violarmos ela se vinga. A barragem vai alagar terras indígenas, alterar o curso
do rio, prejudicar os peixes, pode causar a extinção de espécies. Ninguém
melhor que nós para cuidar da Amazônia. Quem diz “é muita terra para pouco
índio” não leva em conta que o Brasil era território indígena. Lutamos por um
pedaço do que era nosso. E a terra não é grande: estamos sempre nos deslocando.
Caçamos, coletamos frutos, frutas e raízes, fazemos rituais. Andamos para
manter a floresta viva.
Mas
as usinas não são prioritárias para gerar energia?
Há
alternativas, como energia eólica, solar, biomassa. E sabemos que não é só uma
usina que vai ser construída. Ela é pretexto para entrar na floresta e abrir
caminho para mineração. É uma porta aberta para outros “progressos”:
garimpeiros, madeireiros, pecuaristas, o crescimento das cidades, com aumento
de criminalidade, prostituição, drogas, alcoolismo, problemas de saúde, de
saneamento. Basta ver a Usina de Belo Monte. Altamira pulou de 90 mil para 150
mil moradores.
Vocês
estão nessa luta há muito tempo, não?
Somos
um povo guerreiro, está no nosso sangue. Éramos temidos. Atacávamos de surpresa
e em grande quantidade. Nossos troféus eram as cabeças dos nossos inimigos, que
simbolizavam poder. Agora, tivemos que aprender duas novas palavras que não
existem na nossa língua: preocupação e barragem. Treinamos nossas mulheres para
serem cinegrafistas do movimento de resistência dos Munduruku. Fizemos um
manual, em português e munduruku, para ensinar como usar a tecnologia, como
celular, para denunciar. Tem recomendações como “proteja o cartão de memória
após filmar”, “se estiver gravando algo importante não pare de gravar! A imagem
corrida tem mais valor como prova”. Quem nos apoia na estratégia de comunicação
é a ONG Uma Gota no Oceano. Nunca desistimos. Quando um povo desaparece só é
visto no museu. Não queremos ser peça de museu, e sim um povo vivo.