Por Telma Monteiro*
Um ano conturbado esse 2014. Vai ficar
como mais um capítulo da história dos governos Lula e Dilma Rousseff, pautados
pela corrupção. Corrupção, também, que pode estar entranhada no setor elétrico.
A sanha de construir hidrelétricas nos rios amazônicos com a coparticipação das
mesmas empreiteiras envolvidas no esquema de propinas da Petrobras, como mostra
a Operação Lava Jato, é sinal inequívoco de metástase.
Busquei escrever uma retrospectiva
resumida dos processos das grandes hidrelétricas em construção nos rios amazônicos,
nos últimos doze anos. É preciso expurgar a Eletrobras também.
Mensalão, julgamento, condenação e
prisão de autoridades do governo, campanhas eleitorais que envergonharam os
eleitores, presidentes e vice-presidentes de grandes empreiteiras e diretores
da Petrobras indiciados marcaram o Brasil nos últimos doze meses. Nada mais que
um resumo do que temos assistido nos últimos doze anos.
As obras das grandes hidrelétricas nos
principais rios amazônicos, iniciadas no governo do PT, a partir de 2003, caminharam
silenciosamente, na sombra dos escândalos midiáticos.
Mesmo temas como o aumento do
desmatamento na Amazônia, a imposição de projetos hidrelétricos na bacia do rio
Tapajós, a discussão da PEC 215, que quer dar ao Congresso a atribuição de
decidir as demarcações de terras indígenas, a luta do povo Munduruku para
auto-demarcar a terra Sawré Muybu, a queda de braço entre o Ministério Público
Federal e o judiciário nas ações que apontam as irregularidades nos
licenciamentos das hidrelétricas, o uso da Suspensão de Segurança (instituto da
ditadura), não ganharam a sociedade. Não ganharam as ruas e nem os corações dos
brasileiros.
O Novo Modelo Institucional de Energia
(Lei nº 10847/10848 de 2004) foi concebido por Dilma Rousseff a partir de 2003,
como ministra de Minas e Energia (MME). Lula e Dilma não perderam tempo. A
galinha dos ovos de ouro do PT passou a ser o setor energético, que ficou nas
mãos do seu principal aliado, o PMDB, sob a batuta de José Sarney. O Ministério
das Minas e Energia (MME), Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) e Empresa
de Pesquisa Energética (EPE) ficaram com Edison Lobão, Márcio Zimmermann e
Maurício Tolmasquim, respectivamente. Elas formam, há doze anos, uma espécie
troika institucional indevassável e inacessível.
A construção das usinas incluídas no
Plano de Aceleração do Crescimento (PAC) tem como objetivo satisfazer a volúpia
por grandes obras do cartel de empreiteiras, maiores doadoras das campanhas de
Lula e Dilma. Paralelamente, o aumento do consumo de energia na região Norte,
devido à instalação de novas plantas eletro-intensivas ligadas à mineração, deu
ao governo federal mais uma desculpa para aprovar mais hidrelétricas. Esse
consumo, segundo dados que constam no Estudo de Impacto Ambiental (EIA) da usina
hidrelétrica (UHE) Teles Pires, cresceu de 6,3% para 8,6%.
Para completar esta introdução,
relembro que o Plano Nacional de Energia (PNE) 2030 prevê o incremento de mais
88 mil MW (megawatts) de geração com hidrelétricas e de apenas quatro mil MW em
geração eólica para os próximos 25 anos. Esses 88 mil MW equivalem a 20 usinas
como a UHE Belo Monte ou 93 como a UHE Teles Pires.
Um ofício de 21 fevereiro de 2011,
assinado por Amílcar Guerreiro, diretor da EPE, para a Funai, ressalta que, de
48 projetos hidrelétricos, 18 atingem áreas de Terras Indígenas (TI). Afirma
que 16 projetos, embora não estejam diretamente em TIs, estão a menos de 50
quilômetros delas, como a UHE São Manoel e a UHE Foz do Apiacás. Ainda confirma
que os projetos hidrelétricos no PAC 2 somam 80% com algum grau de
interferência com TI.
Parece uma promessa de que vai piorar.
Hidrelétricas Santo Antônio e Jirau –
rio Madeira
Com Lula já eleito, no final de 2002,
a Odebrecht conseguiu aprovar os estudos de viabilidade das usinas do Madeira
em velocidade de trem-bala. No início de 2003, a construção do então chamado
Complexo do Madeira já era comemorada na Aneel.
Dilma Rousseff era a ministra de Minas
e Energia de Lula. Os dois juntos meteram os pés nas portas da Amazônia,
escancarando-as, ao defender a imprescindibilidade das usinas do Madeira.
Começava aí a era do estupro dos rios amazônicos.
De 2003 até 2014, as hidrelétricas
Santo Antônio e Jirau, no rio Madeira, não saíram da pauta da mídia. Quando obtiveram
a Licença Prévia (LP), em julho de 2007, contaram com a ajuda da diretoria do
Ibama e, talvez, da ingenuidade e arrogância (imperdoáveis) da então ministra
do Meio Ambiente, Marina Silva. Contrariando a decisão da equipe técnica do
próprio Ibama, que concluiu pela inviabilidade dos empreendimentos, a LP foi
concedida.
O processo das usinas do Madeira
chegou a surpreender. Uma só licença prévia para duas hidrelétricas foi um fato
inédito. O primeiro leilão, da UHE Santo Antônio, em dezembro de 2007, foi
arrematado pela dobradinha Furnas e Odebrecht. Cartas marcadas. Afinal, a
concepção e os estudos preliminares foram elaborados pela Odebrecht, lá nos
idos de 2002.
O segundo leilão, da UHE Jirau, trouxe
a grande surpresa. Com um deságio maior, a concorrência tirou a UHE Jirau das
mãos da dupla Furnas e Odebrecht. A Camargo Corrêa e a GDF Suez entraram para
vencer o lobby de Furnas e Odebrecht, que até então dava como favas contadas o
arremate dos dois empreendimentos. Economia de escala.
Dois leilões, dois ganhadores, duas
das maiores empreiteiras do Brasil e o Ibama concedeu duas Licenças de
Instalação (LI) para uma só LP. A partir daí começou uma verdadeira avalanche
de irregularidades: violações dos direitos humanos, alijamento dos povos
indígenas do processo de licenciamento, descumprimento da Convenção 169 da OIT
e falta de consulta prévia. O consórcio vencedor de Jirau decidiu, então,
alterar a localização da usina no rio Madeira. Outro fato inédito.
Os dois consórcios vencedores passaram
a se digladiar. Vieram as greves nos canteiros das duas obras, denúncias de
trabalho semiescravo, ações na justiça ajuizadas pelos ministérios públicos, a
destruição da margem direita a jusante da barragem da UHE Santo Antônio, que
levou consigo o bairro Triângulo, a alteração da cota do reservatório de Santo
Antônio, que resultou no aumento da área alagada. Para coroar tanta insensatez,
aconteceu a maior cheia da história do rio Madeira, agravada pelas
hidrelétricas, que quase fez desaparecer Porto Velho, no início de 2014.
Custo atualizado da UHE Santo Antônio:
R$ 19,5 bilhões – Construtora: Odebrecht; custo atualizado da UHE Jirau: R$ 18
bilhões – Construtora: Camargo Corrêa
Hidrelétrica Belo Monte – rio Xingu
Não precisou muito tempo para o
retorno do espectro do monstro chamado Belo Monte, no rio Xingu. Esse sim, o pesadelo
em forma de hidrelétrica. Quem pensou que as usinas do Madeira eram o pior se
enganou. Começou uma sensação de déjà vu.
A Eletrobras desengavetou o projeto no
rio Xingu. Enfiar Belo Monte goela abaixo da sociedade foi num átimo. Afinal, a
desculpa do governo tem sido a de que estamos na iminência de outro apagão
igual ao de 2001. Ou se construiria Belo Monte ou o Brasil pararia! Mensagem
subliminar que funcionou.
Lula em plena campanha, em 2002, num
documento chamado O Lugar da Amazônia no Desenvolvimento
do Brasil, condenou
a construção de mega-obras de hidrelétricas na Amazônia. Citou Belo Monte.
Enquanto se dava o processo de licenciamento das usinas do Madeira, em 2006,
Belo Monte emergia das cinzas dos anos 1980, numa nova versão.
A sociedade civil assistia atônita a
mais uma surpresinha do governo petista. O projeto defendido pela Eletrobras,
com total apoio de Lula e Dilma, está desviando as águas do rio Xingu. Uma das
regiões mais ricas em biodiversidade do planeta, a Volta Grande do Xingu vai
secar. E Belo Monte, em construção, só vai gerar um terço da energia que sua
estrutura de R$ 30 bilhões comportaria.
Em 2007, as empreiteiras Camargo
Corrêa, Odebrecht e Andrade Gutierrez surgem para elaborar os estudos de Belo
Monte. Odebrecht e Camargo Corrêa, mais uma vez, no centro do plano de
construir mais hidrelétricas na Amazônia.
Entre avanços e recuos do processo de
licenciamento, ações do MP, novas audiências públicas e adiamentos do leilão,
em fevereiro de 2010, o Ibama concedeu a LP e em abril o leilão foi consumado.
Restou selada a destruição do Volta Grande do Xingu.
O leilão de Belo Monte foi um
equívoco. Estava inicialmente prevista a participação de três grandes
empreiteiras: Odebrecht, Camargo Corrêa e Andrade Gutierrez. As mesmas que
estão envolvidas no esquema de corrupção da Petrobras. As três foram as responsáveis,
junto com a Eletrobras, pela elaboração de todos os estudos de Belo Monte.
As empreiteiras Odebrecht, Camargo
Corrêa e Andrade Gutierrez formaram um consórcio que constrói Belo Monte.
Afinal, fazer a obra sem a responsabilidade dos custos ambientais e sociais, e
sem o ônus das batalhas na justiça, é muito mais rentável. Mamata.
Em 2010, Lula e o PT se preparavam
para eleger Dilma Rousseff presidente da República.
A construção da UHE Belo Monte tem
consolidado os mesmos problemas do caos que se instalou em Porto Velho com as
usinas do Madeira. A história se repetiu e recrudesceu o movimento indígena
contra as usinas nos rios amazônicos. Atores e diretores de Hollywood,
denúncias na OEA e ONU, protestos nas capitais da Europa, protestos indígenas
em Brasília, greves nos canteiros de obras, destruição ambiental, prejuízos.
Nada disso demoveu o governo do PT. Belo Monte está lá, fantasmagórica com seus
esqueletos de concreto, com umas poucas castanheiras gigantes poupadas no
desmatamento do sítio Pimental.
A construção de Belo Monte está
destruindo a vida e a natureza. Pescadores, povos indígenas, populações
ribeirinhas, pequenos agricultores, floresta e rio sagrado. As engrenagens da
justiça estão lentas para salvar o Xingu. Uma ferrugem sórdida as emperra.
Custo atualizado da UHE Belo Monte: R$
25,9 bilhões – Consórcio Construtor: Odebrecht, Camargo Corrêa e Andrade
Gutierrez
Hidrelétrica Teles Pires – rio Teles
Pires
O aproveitamento hidrelétrico do rio
Teles Pires está nos planos governamentais desde os anos 1980, quando foi feito
o inventário da bacia hidrográfica. Do projeto inicial, que permaneceu
esquecido até 2001, já constavam outros seis aproveitamentos hidrelétricos. Mas
foi sob o governo do PT que o projeto emplacou.
Em 2005, um consórcio formado pelas
empresas estatais Eletrobras, Furnas e Eletronorte resolveu desengavetá-lo
e manter os planos para as seis hidrelétricas. O rio Teles Pires tão ameaçado
não teve sequer estudos dos impactos sinérgicos e cumulativos da região. O
Ibama iniciou o processo de licenciamento em 2010.
A hidrelétrica Teles Pires já está
afetando duramente a região situada no trecho onde começa uma sequência de cachoeiras
chamadas Sete Quedas, no baixo curso do rio Teles Pires. A hidrelétrica, em
construção, está na divisa entre dois grandes municípios em dois estados:
Jacareacanga, no Pará, e Paranaíta, no Mato Grosso.
As empresas Neoenergia (50,1%),
Eletrosul (24,5%), Furnas (24,5%) e Odebrecht (0,9%) formam o consórcio
vencedor do leilão.
A UHE Teles Pires não ultrapassará 50
anos de vida útil, se for levado em conta o agravamento das características
hidrológicas da região. As mudanças climáticas, os períodos cada vez mais
intensos de regimes de cheias e vazantes, o aumento do aporte de sedimentos
devido à ocupação a montante (rio acima em direção às nascentes),poderiam reduzir
ainda mais o tempo de geração comercial. Esse projeto anacrônico se transformará,
em menos de cinquenta anos, num fóssil jovem em meio a um deserto induzido no
coração da Amazônia.
Sob o governo do PT se deu a Rio+20.
Os impactos da hidrelétrica afetarão
as terras indígenas Kayabi e duas Unidades de Conservação - a Reserva Estadual
de pesca Esportiva, no Pará, e o Parque Estadual do Cristalino, em Mato Grosso.
No município de Jacareacanga (PA), 59%
são terras indígenas. A área rural afetada pela usina Teles Pires tem 66 mil
quilômetros quadrados, 20 mil habitantes, é de difícil acesso, de vegetação
nativa e é ocupada por terras indígenas. O sistema de transmissão da energia
desse complexo hidrelétrico está previsto para ter cerca de mil quilômetros e
um corredor de 20 quilômetros de largura.
Custo atualizado da UHE Teles Pires:
R$ 4 bilhões – Construtora: Odebrecht
Hidrelétrica São Manoel – rio Teles
Pires
As TI Kayabi e TI Munduruku, mais a
jusante, já sofrem os impactos da construção das usinas no rio Teles Pires. A
UHE Teles Pires e a UHE São Manoel, também em construção, estão afetando 16
importantes sítios arqueológicos. Vinte quilômetros separam a UHE Teles Pires
da UHE São Manoel.
O processo de licenciamento da UHE São
Manoel começou em 2007. Já datam dessa época as falhas gritantes nos estudos
ambientais e no Estudo do Componente Indígena (ECI). No parecer técnico do
Ibama, de 2010, foram apontadas 33 pendências. O EIA/RIMA foi rejeitado pela
equipe técnica do Ibama, uma vez que ele não atendia ao Termo de Referência.
O processo de licenciamento da UHE São
Manoel ficou praticamente parado até abril de 2013. O Ibama marcou as
audiências públicas para setembro de 2013. O leilão de compra de energia
elétrica foi realizado em dezembro de 2013 e o vencedor foi o Consórcio formado
pelas empresas EDP Energias do Brasil (66,67%) e Furnas Centrais Elétricas
(33,33%), que constituíram a sociedade de propósito específico denominada
Empresa de Energia São Manoel S.A.
Em 2014, o ministro de Minas e
Energia, Edison Lobão, assinou o Contrato de Concessão para exploração do
potencial hidrelétrico da UHE São Manoel, localizada no rio Teles Pires,
município de Jacareacanga, estado do Pará. Até outubro deste ano, o Ministério
Público Federal havia ajuizado sete ações contra a construção da UHE São
Manoel. Todas apontam irregularidades no processo de licenciamento. A LP foi
concedida pelo Ibama em novembro de 2013 e a LI em agosto de 2014.
As obras já começaram. A destruição do
rio faz chorar.
Custo atualizado da UHE São Manoel: R$
3 bilhões – Construtora: Consórcio Constran-UTC.
Hidrelétrica São Luiz do Tapajós – rio
Tapajós
Em processo de elaboração dos estudos
ambientais. Ficou para o próximo mandato de Dilma Rousseff. O leilão está
marcado para o segundo semestre de 2015. O rio já está condenado?
*Telma Monteiro é ativista socioambiental, pesquisadora, editora do blog , especializado em projetos infraestruturais na Amazônia. É também pedagoga e publica há anos artigos críticos ao modelo de desenvolvimento adotado pelo Brasil