Apenas 7% das famílias
quilombolas vivem em áreas tituladas. Na
busca pelo reconhecimento dos territórios, comunidades enfrentam ameaças,
confisco de objetos históricos e resistência até do órgão de preservação do patrimônio
Por Stefano Wrobleski*
Na última sexta-feira (13/05), a canetada da
Princesa Isabel que aboliu oficialmente a escravidão no Brasil completou 128
anos. Com a Lei Áurea, muitos dos libertos engrossaram os quilombos já
existentes ou se organizaram em novas comunidades. Mas o reconhecimento do
direito dos povos negros a seus territórios tradicionais só viria cem anos
depois, com a Constituição de 1988. Apesar de prever a propriedade definitiva
das áreas remanescentes de quilombos, até hoje apenas 16 mil famílias – de um
total de 214 mil – vivem em áreas devidamente tituladas, de acordo com dados do governo federal.
A titulação é a última etapa de um longo
processo que tem início com a “auto-definição” das comunidades quilombolas –
assessorada pela Fundação Palmares, entidade ligada ao Ministério da Educação e
Cultura – e prossegue em órgãos estaduais e federais, como Instituto Nacional
de Colonização e Reforma Agrária (Incra), responsáveis por estudos antropológicos
e desapropriações de terra (confira o passo a passo da titulação de terras quilombolas).
Dos cerca de 2.700 quilombos de todo o país já
certificados pela Fundação Palmares, só 163 chegaram à etapa final e foram
titulados. No Incra, a morosidade é absoluta: “A questão é que há mais de 1.500
processos abertos no Incra, mas o órgão não tem capacidade de encaminhá-los”,
afirma Otávio Penteado, assessor da Comissão Pró-Índio de São Paulo,
organização que também lida com a questão quilombola. Para Otávio, a falta de
titulação das terras ocorre por “desinteresse político”, o que se traduz em
cortes orçamentários na área.
A mudança na composição dos ministérios que o presidente interino Michel Temer (PMDB)
realizou assim que Dilma Rousseff foi afastada pelo Senado, na semana passada,
agravou as preocupações das entidades ligadas à questão quilombola. Na última
quinta-feira (12/05), o deputado federal ligado à bancada ruralista Osmar Terra
(PMDB-RS) foi nomeado para a pasta de Desenvolvimento Social e Agrário, que é
responsável pelo Incra. Também foi extinto o Ministério das Mulheres, da
Igualdade Racial e dos Direitos Humanos, que coordenava o Programa Brasil
Quilombola e executava políticas voltadas às comunidades negras tradicionais.
O governo interino de Michel Temer ainda não
detalhou as medidas que vai tomar com relação à titulação de territórios
quilombolas. Porém, Fernando Prioste,
assessor jurídico da organização Terra de Direitos, acredita que a legislação
atual pode ser substituída por uma que atenda pleitos da bancada ruralista,
“como não fazer desapropriações e reverter a questão da auto-definição”.
O confisco
da panela
Além dos entraves políticos e institucionais,
comunidades quilombolas de todo o Brasil, de tradição essencialmente oral,
também enfrentam dificuldades para comprovar sua presença ancestral nas áreas
que reivindicam. Em alguns casos, sofrem até ameaças de morte enquanto aguardam
pela homologação de seus territórios.
Há um ano, as lideranças de diversos povoados da
zona rural do município de Codó, no interior do Maranhão, reclamam a devolução
de uma grande panela do século XIX. Em 2015, o artefato foi confiscado com
ajuda da Polícia Militar por funcionários do Instituto Histórico e Geográfico
de Codó (IHGC), órgão local de preservação do patrimônio histórico.
A panela, além de ter um valor afetivo e
religioso para a população, é peça-chave no processo de reconhecimento da
comunidade como área remanescente de quilombo. O imbróglio coloca em risco a
posse da terra ocupada tradicionalmente pela comunidade de São Benedito dos
Colocados. “A panela é importante porque é um símbolo real, de resistência da
comunidade”, afirma Valdivino Silva, um dos principais responsáveis por reunir
e contar as histórias do povoado, que espera há um ano e meio pela titulação do
território.
Os negros dos mais de 200 povoados rurais de
Codó – 85% da população do município se definem como preta ou parda, de acordo
com o Censo de 2010 – são lembrados por Valdivino como descendentes daqueles
que trabalharam à força em plantações de algodão para os grandes latifundiários
da região até a Lei Áurea de 1888, que acabou com a escravidão.
Trazida da Inglaterra, a panela de ferro fundido
e de um metro de diâmetro era usada para alimentar os escravos das lavouras.
Renato Barbosa, morador do povoado, conta que o artefato foi resgatado do
esquecimento no início do século XX, na comunidade de São Benedito dos
Colocados. Lá, a história parece brotar do chão. Vez ou outra, a população
encontra a poucos centímetros debaixo da terra restos de porcelana, moedas e
aparatos que eles esperam, junto com a panela, usar para comprovar a ocupação
tradicional da área aos técnicos do Incra, que têm a missão de determinar em
estudos se o território pode ser definido como quilombola.
O confisco da panela pelas autoridades de Codó
aconteceu de surpresa, conta o vereador Pastor Max (PTdoB). “Ele [José Ribamar
Amorim, presidente do IHGC] usou da truculência, usou policiais e não deu
satisfação àquelas pessoas. Não tinha nem um pedido judicial. Até hoje, o atual
presidente [do IHGC] está escondendo a panela, ninguém sabe onde ela está. Por
que ele não faz a mesma coisa com pessoas ricas que aqui têm artefatos?”,
questiona. O vereador assinou uma moção de repúdio pelo caso contra o
presidente do instituto.
Questionado pela Repórter Brasil, o presidente
do IHGC justificou a ação afirmando que a panela não pertencia a “nenhuma
fazenda quilombola ou de escravos”. Segundo José, “o neto do dono da fazenda
[onde hoje ficam alguns dos povoados quilombolas de Codó] nos doou a panela,
que tinha sido quebrada por essa comunidade”. Ele afirma que, nos próximos
dias, pretende abrir ao público a exposição do artefato, na sede do IHGC.
Porém, não é isso que o povoado deseja: “O nosso
acervo histórico, de nossa comunidade, nós mesmos vamos construir um espaço
para conservar. Nós somos protagonistas da nossa própria história e nós podemos
guardar aquilo que é nosso”, reclama Valdivino, a liderança local.
Como os moradores dos povoados não têm a posse
da terra, o Ministério Público estadual afirmou que não poderia fazer nada para
resolver o impasse.
R$12 mil
por cabeça
Em outro povoado do município, a pressão contra
a permanência da comunidade chegou a ser feita inclusive por pistoleiros
armados. As famílias de Mata Virgem, que detêm desde 2012 uma certidão da
Fundação Palmares de auto-reconhecimento como quilombo, foram aterrorizadas ao longo
de um ano em suas terras, vizinhas de uma grande fazenda de um ex-deputado
estadual.
Segundo José Rodrigues Magalhães,
vice-presidente da associação local, quatro pistoleiros andavam recorrentemente
pelo local, atirando para o alto para assustar as 23 famílias do povoado.
Ele e Antônio Santana da Silva, outra liderança
local, dizem ter ouvido dos pistoleiros que o preço pelas suas cabeças chegava
a R$12 mil, caso ultrapassassem os limites impostos pelos capangas. “Fiquei
preocupado porque não tinha o direito nem de ir, nem de vir. A qualquer
momento, eu podia ser morto”, diz Antônio.
As ameaças cessaram depois de diversas denúncias
encaminhadas à polícia e a organizações de direitos humanos. Agora, os
moradores da comunidade tentam preservar uma casa grande abandonada pelos
herdeiros de um senhor de engenho da região enquanto aguardam os servidores do
Incra para comprovar que aquela terra de uso comum, onde seus antepassados
foram escravizados, pertence de fato a eles.
Antiga sede da fazenda, a casa grande era o
local de moradia da família que detinha a propriedade. A história de Mata
Virgem simboliza o destino de parte dos negros que, em 1888, saíram da
escravidão e organizaram comunidades próximas aos locais de origem –
diferentemente dos quilombos existentes até então, formados em áreas distantes
das fazendas por homens e mulheres fugidos, do tempo em que a escravidão ainda
era legal.
Hoje em ruínas, a antiga casa grande é usada
pelas crianças quilombolas para brincar.
Apesar de saberem das histórias dos antepassados, o local foi apropriado
pela nova geração, que pode inventar novos significados para o seu território.
*Fonte: Repórter Brasil - Fotografias: Lilo
Clareto