Por Plínio de Arruda Sampaio Jr.*
Hoje [04 de maio], Waldemar Rossi partiu.
Forjado na tradição da teologia da libertação, sua militância
abnegada pelo fim da exploração do trabalho o transformou em uma das
principais referências da esquerda brasileira. Dedicou mais de seis décadas à
luta da classe operária sem nunca tergiversar. A coragem e determinação para
levar até o fim suas decisões, a integridade e firmeza de sua atuação política
e sindical, a personalidade forte e alegre compunham as características de um
ser humano impar que iluminou a vida de todos que o conheceram. Lutou até o fim
pela plena realização do Homem com um ser social capaz de comandar o seu
destino. Para mim, ele é um exemplo da força e a generosidade da classe
trabalhadora.
Soube da existência do Waldemar, em 1975, logo
após a volta ao Brasil, pela voz de Jose Carlos Dias, o advogado que cuidava
dos aspectos legais da volta de meu pai do exílio. Membro da Comissão dos
Direitos Humanos da Cúria Metropolitana de São Paulo, José Carlos Dias também
era advogado do Waldemar, que amargou uma cadeia pesada pela sua luta contra a
ditadura militar e pela organização dos trabalhadores. Lembro-me até hoje do
relato sobre o comportamento do Waldemar nos porões da ditadura. Conversando
com um militante do PCB que tinha sido brutalmente torturado, José Carlos Dias
perguntou se era indispensável ser comunista para agüentar a tortura em silêncio.
A resposta foi direta. “Não! Para suportar a tortura sem abrir o bico, o
importante é ter fé na causa. Ao meu lado, era torturado um operário católico
que suportou estoicamente longas sessões de pau-de-arara, com toda dignidade e bravura,
sem entregar seus camaradas``. Esse operário era o Waldemar Rossi. Anos mais
tarde, o Cardeal Dom Paulo Evaristo Arns, me contou que, depois de muita
pressão, quando finalmente conseguiu visitar o Waldemar na cadeia, ele não
conseguia se apoiar sobre as próprias pernas e precisou de sua ajuda para
levantar-se do chão, onde tinha sido largado por dois brucutus.
Foi de Waldemar que escutei as primeiras
críticas a Lula. Líder da Oposição Sindical dos Metalúrgicos de São Paulo,
Waldemar opunha-se à orientação conciliadora e moderada de Lula na reorganização
do movimento sindical. Somente anos mais tarde compreendi a pertinência e a
profundidade de suas críticas. Na época imaginei que a sua oposição a Lula
fosse alimentada por motivos mesquinhos. Engano meu. Era um alerta contra desvios
teóricos e práticos que levaram à degeneração política e moral da CUT e do PT.
Waldemar lutava por um movimento sindical combativo, radical e intransigente.
Lula preparava sua adesão aos parâmetros da ordem, restringindo a luta dos
trabalhadores aos limites permitidos pelos patrões. A oposição frontal a Lula
custou a Waldemar o isolamento político e a renúncia do que poderia ter sido
uma promissora carreira política e sindical. Nem por isso, Waldemar titubeou.
Sabia a briga que estava comprando e não negociou seus princípios.
Numa sociedade conservadora e bruta como a
brasileira, as opções de Waldemar não passaram impunes. As longas sessões de
pau-de-arara danificaram a sua coluna provocando dores terríveis que o
acompanharam durante toda a vida. Os golpes nos ouvidos comprometeram sua
audição. A lealdade aos interesses de sua classe social teve como contrapartida
uma vida de sacrifícios materiais. A sua integridade política e moral condenou-o
ao ostracismo político. Convivi com o Waldemar por mais de três décadas. Nunca
escutei dele uma queixa, uma lamúria. Não havia nele nem uma gota de ressentimento.
Nele não existia espaço para a vaidade. Waldemar mandou no seu destino e arcou
com as conseqüências de suas opções. A sua realização como ser humano foi
medida pela sua capacidade de cumprir com o seu dever e de ser fiel ao seu ser.
Estive com o Waldemar há pouco tempo, na sua
casa e depois no hospital. Waldemar sabia que enfrentava sua última batalha.
Encontrei-o lúcido e corajoso. Lutou até o fim pela construção de uma sociedade
que não fosse pervertida pela divisão dos homens entre explorados e
exploradores – uma sociedade fraternal, sem divisão de classes, onde a
realização de cada um enriquecesse a todos e o enriquecimento coletivo abrisse
novos horizontes para o enriquecimento humano do indivíduo. Na sociedade
combatida pelo Waldemar – a sociedade do capital -, a riqueza é Ter e a
sociedade é dividida entre os que têm e os que não têm. Na sociedade do Waldemar
Rossi – a sociedade sem divisão de classes -, a riqueza será o Ser e será
acessível a todos, pois, para ser, ninguém precisará negar a existência do
outro.
Alegre e despretensioso, Waldemar Rossi foi um
Homem que honrou a sua vida, civilizou a sociedade de seu tempo e enriqueceu a
existência de todos a sua volta. Na minha vida, ele representa o tempero operário
de minha formação humana.
*Publicado originalmente no Facebook.
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