Por Márcio Santilli e Raul
do Valle*
Ganhou espaço na Folha de
S.Paulo a divulgação de pesquisa encomendada pela Confederação da Agricultura e
Pecuária do Brasil (CNA) com a pretensão de traçar um perfil da população
indígena do país.
Uma de suas conclusões deixa
clara a tese que pretende comprovar: "A situação territorial também causa
preocupação, mas não é o maior problema, como afirmado por ONGs, movimentos
sociais e certas áreas de governo".
A pesquisa foi feita entre
junho e julho, mas só foi divulgada agora, quando voltam à mídia os conflitos
territoriais entre fazendeiros e índios guarani-caiová (MS) e xavante (MT). Os
bens de consumo usados pelos índios caracterizariam "urbanização". A
enquete aponta que a principal preocupação dos índios seria seu precário
atendimento de saúde.
Sempre houve interesse dos
índios por bens de consumo que não produzem, desde ferramentas, alimentos,
remédios até televisão e celular, o que não implica serem eles menos índios ou
necessitarem de menos terra. Os demais brasileiros, a começar pelos
patrocinadores da pesquisa, têm interesse por bens importados e nem por isso
deixam de ser brasileiros.
A própria enquete mostra que
94% dos indígenas entrevistados praticam agricultura, 85% caçam e 86% pescam
frequentemente, atividades que dependem de áreas extensas e preservadas. Mostra
ainda que 68% dos índios da região Sul, que têm apenas 0,18% das terras
demarcadas, recebem cestas básicas, apesar de a maioria (52%) ter trabalho
remunerado. No Norte, que abriga 81% das terras, só 7% dos índios depende de
cestas básicas, embora poucos tenham emprego.
A tese de que a terra não é
importante para os índios não é confirmada pela própria pesquisa, mas a CNA
pretende deformar seus resultados para defender a aprovação de projetos no
Congresso que buscam alterar a Constituição para inviabilizar a demarcação de
novas terras, sobretudo quando ocupadas por grandes produtores.
A estratégia de propagar
teses infundadas para justificar uma posição política já foi usada pela CNA
para fragilizar o Código Florestal. Agora, pretende-se induzir a ideia de que
os próprios índios não querem mais terra, embora 57% dos entrevistados na
enquete tenham respondido que seus territórios são menores do que o necessário
(o número chega a 92% no Sul).
A CNA sugere que "há
muita terra para pouco índio", já que 520 mil indígenas aldeados vivem em
113 milhões de hectares de terras indígenas. Ocorre que 98,5% dessa área está
na Amazônia, onde vivem 60% dos indígenas do país. Os outros 40% dispõem de
apenas 1,5% de todas as terras, em geral em áreas exíguas. O Mato Grosso do Sul
é um caso emblemático.
Muita terra têm os grandes
produtores rurais, representados pela CNA. Segundo o IBGE, os 67 mil maiores
proprietários possuem 195 milhões de hectares, 72% a mais que os índios. Além
disso, as terras indígenas preservam 98% da sua vegetação nativa e prestam
serviços ambientais a toda sociedade.
Quem mais precisa de terra
são os 45 mil guarani-caiová, alvo principal da CNA, confinados em 95 mil
hectares oficialmente reconhecidos, mas ainda ocupados em grande medida por
fazendeiros. Eles dispõem de área muito menor que os 700 mil hectares
destinados a 28 mil famílias assentadas da reforma agrária no Estado.
Melhor faria a CNA se, em
vez de insistir em impedir a demarcação de terras, trabalhasse para que os
governos estaduais que, no passado, emitiram títulos de propriedade inválidos,
porque incidentes sobre área indígena, sejam agora responsabilizados a
indenizar aqueles que, de boa fé, hoje os detêm.
*Texto publicado na seção
Tendências e Debates da Folha de S.Paulo de 29/11/2012 e reproduzido no sítio do Instituto Socioambiental. (Desenho Latuff incluído apenas aqui no blog).
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